Alex Castro
Prisões, Mente e atitude
08 de Setembro de 2014
Já houve época que meu objetivo de vida era ser a pessoa mais feliz e mais livre possível.
Hoje, tudo o que eu quero é simplesmente ser uma pessoa mais generosa e mais empática.
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Introdução aos exercícios de empatia
Por que é tão difícil praticarmos uma verdadeira empatia e alteridade pelas pessoas que estão à nossa volta?
Exercitamos o abdômen e exercitamos a memória. Por que não exercitar a empatia?
Os exercícios não são fáceis: é preciso primeiro levar o músculo ao colapso, para que ele então se regenere e volte mais forte.
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O mal é a falta de empatia
No nosso dia a dia, temos poucas oportunidades práticas de ativamente não-estuprar, não-roubar, não-torturar, não-cometer-genocídio.
Não-matar não é uma decisão consciente que tomo todo dia e da qual posso ter orgulho. Somente não-estuprar não faz de mim uma pessoa boa.
O mal é a falta de empatia. O mal são os olhos cegos e os ouvidos moucos. O mal é a desatenção e o autocentramento. O mal é aquilo que sinceramente não me ocorre, que realmente não enxerguei, que juro que não ouvi, que não sei como fui esquecer.
O que é um batedor de carteiras comparado ao honesto pai de família que não enxerga nada a sua volta? Que não vê a esposa insatisfeita e desesperada, as filhas confusas e autodestrutivas, a sócia abrindo a garrafa de uísque cada vez mais cedo?
O mal não é apenas arrancar a Anne Frank do sótão: o mal é cruzar todo dia pelo porteiro com o braço engessado e nunca perguntar, nunca se preocupar, nunca nem reparar.
O mal não é apenas ser dono de uma fazenda com duzentos escravos: o mal é ser contra uma nova estação do metrô porque vai destruir as arvorezinhas da sua praça e nunca te ocorrer das centenas de milhares de trabalhadores que não têm carro, passam horas e horas em ônibus e terão suas vidas significativamente melhoradas por uma nova estação.
O mal não é apenas a Estrela da Morte explodir Alderã: o mal sou eu relaxar do longo dia de trabalho curtindo um filme, depois de um belo jantar feito por minha irmã, e nunca me passar pela cabeça que ela teve um dia igualmente longo de trabalho, ainda por cima fez o jantar e agora está sozinha tirando a mesa e lavando a louça, e ainda perdendo a chance de ver o filme!
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Nossa vida cotidiana, inviável
Minha ex-mulher é de uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas.
Nunca amei tanto minha ex-esposa quanto naqueles momentos em que a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas.
Sabe por quê? Porque é.
Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todos os cariocas e paulistanos já trazem do berço.
É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror.
Não fazemos isso só com a miséria. Passamos o dia cercados por dezenas, centenas, às vezes milhares de pessoas. É impossível considerá-las todas individualmente. Não só não as olhamos, como nem mesmo pensamos nelas como se fossem gente.
Nossa vida cotidiana seria inviável se parássemos para considerar que cada uma daquelas pessoas comendo fast-food na praça de alimentação do shopping tem uma vida interior tão rica quanto a nossa. Ou, pior, que cada uma daquelas pessoas comendo restos de comida no lixão tem a nossa mesma capacidade de apreciar a beleza de uma catedral barroca.
Pois o objetivo dessa série de exercícios, se bem-sucedida, é justamente tornar a nossa cotidiana inviável.
Ao final, quem conseguir caminhar pelo centro da cidade sem se rasgar de desespero é porque não passou.
Como disse Dzongsar Jamyang Khyentse sobre a prática do caminho:
"O caminho não é terapia. Pelo contrário, ele foi elaborado sob medida para expor nossas falhas e virar nossa vida de cabeça pra baixo. Aliás, se você pratica o caminho mas sua vida ainda não virou de cabeça pra baixo, então sua prática não está funcionando."
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Entender é possuir, aceitar é amar
O que estou propondo não é um exercício intelectual para entendermos melhor umas às outras.
"Entender X" nada mais é do que uma tentativa de simplificar X ao seu mais básico denominador comum, de modo a poder defini-lo e nomeá-lo e, assim, chegar à verdade sobre X.
Mas esse processo de simplificação é redutor e autoritário: você lança o seu olhar sobre X, ignora inúmeros aspectos relevantes (praticamente qualquer objeto é mais complexo do que sua explicação), constrói uma narrativa explicativa baseada somente nos aspectos específicos sobre os quais você decidiu se concentrar, e, por fim, crava-lhe um rótulo autoritativo, dizendo “a verdade sobre X é isso!”
Nos exercícios de empatia, vamos tentar perceber, ver, ouvir, e sentir as pessoas à nossa volta não para melhor entendê-las, mas para melhor aceitá-las, de forma mais aberta, mais empática, mais generosa.
Entender é um gesto de definição e posse, redução e controle. Aceitar é um gesto de amor e generosidade.
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Quantas pessoas você OUVIU no último mês?
Tenho viajado o Brasil promovendo um encontro meio indefinível (vivência terapêutica? instalação artística? performance polifônica?) chamado "As Prisões".
Em geral, eu e as pessoas participantes passamos o dia inteiro juntas, compartilhando nossas vidas, expondo nossas histórias, chorando, se abraçando. Ao final, estamos todas exaustas, exauridas, esvaziadas, mas também sem querer sair de perto daquelas pessoas que, ao longo de poucas horas, foram de completas estranhas a quase íntimas. Muitas vezes, terminamos o dia compartilhando uma grande pizza coletiva.
Quando sabem da duração do encontro, algumas pessoas de fora ficam horrorizadas:
“Gente, deve ser insuportável ficar sentado esse tempo todo ouvindo alguém falar!”
Mas eu, Alex, falo somente por cerca de uma hora, no começo, apresentando o projeto, e por cerca de uma hora, no final, propondo alguns exercícios práticos de empatia para superarmos nosso narcisismo.
Todo o resto, o meião inteiro do encontro, são pessoas contando suas histórias de vida.
Hoje em dia, temos mil amigos no Facebook e vinte amigos de bar, com quem só falamos de trivialidades, futebol & sexo, política & fofocas — pois qualquer menção a intimidades profundas é imediatamente ridicularizada.
Por isso, às vezes passamos meses, anos, a vida inteira, sem nunca OUVIR ninguém de forma intensa e concentrada, sem nunca ter realmente acesso à subjetividade de qualquer outra pessoa.
Então, no encontro “As Prisões”, subitamente, de uma vez só, no mesmo dia, somos soterrados pela subjetividade de vinte pessoas diferentes.
E percebemos que muita gente passa pelos mesmos dilemas, sente as mesmas dores, enfrenta os mesmos demônios.
Que aquele nosso problema ó-tão-importante e ó-tão-singular… era, na verdade, comum.
Que aquele problema não nos apartava da humanidade mas, ao contrário, nos une e nos irmana a todas aquelas outras pessoas incríveis e únicas e singulares que estão passando por essa mesma exata situação.
Ou seja, que estamos juntas.
E é por isso que o dia passa voando. É por isso que saíamos exaustas e exauridas. É por isso que, muitas vezes, os grupos que participam das prisões continuam saindo, se encontrando, se amando.
E eu agradeço a todas vocês pela oportunidade de fazer parte dessa experiência.
(Para saber mais sobre o encontro "As Prisões", confira o calendário completo para todo Brasil. Para vir de graça, leia minha política de gratuidades.)
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Uma nota pessoal preliminar importante
Não estou propondo exercícios de empatia porque me considero um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado e agora está pontificando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.
Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma pessoa rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.
O único dedo que aponto é para o meu próprio reflexo no espelho. Sempre.
Esses exercícios são, antes de tudo, para mim mesmo. Uma desesperada tentativa de finalmente me tornar a pessoa que quero ser.
Entretanto, se a carapuça que costurei para mim também servir em você, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?
Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.
Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.
Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.
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Praticar um olhar generoso (Exercícios de empatia, 1)
Generosidade não é caridade.
Caridade implica uma ação de cima para baixo e é sempre, em alguma medida, condescendente. Generosidade, não.
Podemos praticar a generosidade com todas as pessoas, até com quem nos agride, até com nossos adversários, até com quem consideramos que está abaixo de nós, até com quem consideramos que está acima de nós.
Aliás, praticar um olhar generoso é um bom ponto de partida para acabarmos nos dando conta que ninguém está nem abaixo nem acima de nós.
Crescemos pensando que, do lado de cá dessa camada de pele, existe o eu; do lado de lá, o universo, as outras pessoas, os passarinhos, os meteoros.
Mas só existe o universo.
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Julgamos pelas ações, queremos ser julgadas por intenções
Somos maquininhas de inventar justificativas para os nossos comportamentos.
Quando fazemos tudo certo, o mundo precisa reconhecer isso e nos premiar — ou é muita injustiça! Quando agimos errado, é porque foi um lapso, uma fraqueza, uma exceção, e o mundo precisa reconhecer isso e nos entender — ou é muita injustiça!
De um modo ou de outro, julgamos as outras pessoas por suas ações, mas queremos ser julgadas por nossas intenções.
Uma maneira de quebrar esse nosso narcisismo egocêntrico é tentar olhar para as outras pessoas com a mesma generosidade com a qual olhamos para nós mesmas.
Se uma motorista me corta agressivamente no trânsito, talvez seja uma pessoa terrível e malvada que dirige pela cidade cortando motoristas inocentes e atropelando gatinhos idem.
Como um exercício mental de empatia, porém, quando começo a sentir os primeiros lampejos de raiva por alguma pessoa estranha na rua ("é por isso que esse país não vai pra frente!"), eu escolho pensar que essa pessoa é uma mulher incrível, mãe de três meninos lindos, ralando em dois empregos, que acabou de descobrir que tem osteoporose, e que, além de tudo, está tendo um dia terrível, sua mãe idosa está passando mal e ela precisa correr para ajudá-la.
É verdade? É mentira? Jamais saberei.
Mas sei que não tenho controle sobre as ações, e motivações, e biografia, e etc e etc, da pessoa que está dirigindo o carro que acabou de me cortar.
Tenho controle apenas sobre mim, sobre minha própria raiva, indignação, narcisismo.
Meu olhar generoso sobre aquela pessoa não vai influir nada em sua vida. Não vai tornar o mundo um lugar melhor. Não vai impactar a realidade.
Talvez apenas tenha o efeito de me tornar uma pessoa mais generosa.
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Um exercício para praticar um olhar mais generoso
Faça uma lista de cinco pessoas com as quais você convive, ou conviveu, não por escolha própria. Pode ser cinco colegas de trabalho ou de time esportivo, pessoas com quem você já dividiu casa, familiares, etc.
(Melhor não usar nem ex namorados ou namoradas, nem amigos ou amigos, pois teoricamente essas são pessoas que escolhemos ter em nossas vidas.)
Agora, escreva um pequeno parágrafo sobre cada uma delas.
Não inclua críticas, julgamentos de valor, ou comentários que possam ser interpretados como negativos ou pejorativos.
(Uma boa dica é não escrever nada que a pessoa em questão ficaria magoada ou chateada se lesse.)
Evite usar conjunções adversativas, como "mas", "entretanto", "porém" e afins. Considere as duas frases abaixo:
"Ela era perfeccionista e fazia seu trabalho muito bem."
"Ela era perfeccionista mas fazia seu trabalho muito bem."
O "mas", apenas por estar ali, já transforma "perfeccionista" de elogio em crítica velada.
Não inclua nada relativo a você ou à relação dessa pessoa com você:
"Ele sempre me dava carona", "ela roubava minha comida da geladeira", "admiro muito essa pessoa", "foi minha orientadora", etc.
Escreva sobre essa pessoa sem se incluir na história, seja como observadora, seja como a pessoa com quem ela foi rude ou gentil.
(Evitemos esse costume tão narcissista de ver os outros não como pessoas, mas como obstáculos ou apoios, amigos ou inimigos, sempre em relação a nós.)
Não seja tolerante — pois só toleramos o que é ruim.
Não tente entendê-la ou decifrá-la — ela não é um quebra-cabeça.
Simplesmente pratique um olhar generoso sobre essa pessoa. Não por caridade ou condescendência, mas porque ela é tudo tanto quanto você.
Uma pessoa humana.
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