Nossa repórter topou ficar vendada para mergulhar no universo da irmã, que tem deficiência visual. A tarefa trouxe à tona suas fragilidades e algumas lembranças antigas.
Publicado em 01/02/2014
POR Cristiana Felippe e Silva
Edição 141
Tudo ficou escuro naquele início de tarde ensolarada. E eu só escutava uma voz me dizendo: "Vai, Cristiana!". E agora? Vendada com uma máscara para dormir e acompanhada de uma bengala, pensava por que queria vivenciar a rotina de um deficiente visual. A resposta era clara, só eu não enxergava: queria saber o que minha irmã mais nova, Glenda, de 37 anos, sentia. Glenda, mãe do Jonas, de 13, parou de enxergar há 20 anos, por causa da diabete, problema que a acompanha desde a infância. Eu xingava Deus naquela época e me perguntava por que Ele não levava um olho de cada uma - assim poderíamos continuar vendo a vida juntas.
Os meus primeiros passos foram no Centro de Apoio ao Deficiente Visual (cadevi), em São Paulo. Com muita precisão e sensibilidade, a instrutora Tânia Antero me deu as noções básicas sobre como usar os diferentes tipos de bengala. A dificuldade inicial foi não usar a mão esquerda para antecipar as barreiras.
Minha cabeça pesava. E não eram só os pensamentos. Eu me dava conta do quanto era incrível se movimentar carregando cinco quilos sobre o pescoço. Andava com os ombros arqueados e o bumbum empinado (foi engraçado, porque só tive noção mais tarde, quando me mostraram uma foto). Era como se eu tivesse que dominar um corpo desconhecido. Como só fecho os olhos para dormir, senti sonolência. Estava ainda assimilando o "marzão" profundo de sentimentos ao qual eu havia sido despejada.
Quando passei a andar sozinha (no início, com Tânia ao lado ou mais à frente, dando dicas quando eu me perdia), percebi como a bengala vira uma extensão do corpo, fundamental para a independência. Veio a lembrança de quando eu ficava sem jeito se a Glenda saía de bengala comigo. Primeiro, pelo meu próprio preconceito, porque vinha o constrangimento de todo mundo nos olhando. Também me sentia impotente e interpretava seu uso como falta de confiança dela em mim como guia.
Tive dificuldade no início para rastrear os degraus: eu os reconhecia, mas me imaginava rolando e isso me bloqueava. Outro flashback: muitas vezes fiz minha irmã tropeçar, porque me empolgava papeando e esquecia de avisá-la sobre os obstáculos.
Antes de sair para a rua, fui ao banheiro. Perdi alguns minutos reconhecendo o local até entender onde ficava a privada e encontrar o papel higiênico. Xii, mas e depois, como jogar o papel sem tocar no lixo? Santa bengala! Hábitos mecânicos e rotineiros eram novidade. Ao lavar as mãos, estranhei não olhar para o espelho, mas ao mesmo tempo comecei a ver meu retrato mais nítido: perdia o medo de enxergar a vida, enfrentando meu orgulho, meu preconceito e meu medo do desconhecido.
Primeiros passos
Já na rua, senti o ar fresco, um odor diferente e o barulho dos carros se aproximando. Se as calçadas paulistanas já são ruins para quem enxerga, imagine o que representam os obstáculos das muretas, postes, pisos irregulares, buracos e tantos outros empecilhos para pessoas com deficiência. O odor do combustível das motos me confundia - achava que estava próxima a um posto. Garagens sem sinal sonoro para avisar a saída de carros são apenas um dos perigos. Por isso, eu tinha que prestar atenção dobrada quando passava perto de uma. Fiquei feliz quando percebi a esquina e comecei a entender como me desviar. No começo, foi difícil manter o foco e prestar atenção em barulhos diferentes. Os pisos táteis (com bolinhas e traços em relevo) ajudavam um pouco, mas nem sempre os reconhecia. Sentia-me frágil e dependente - ao mesmo tempo, mais forte à medida que vencia cada pequena barreira.
Um moço mexeu comigo na rua, perguntou meu nome e queria saber se eu precisava de ajuda - apenas agradeci. Dá para notar a intenção de uma pessoa pelo tom de voz. Quando você não enxerga, é necessário desenvolver os outros sentidos. Pedi para a Tânia me acompanhar até uma drogaria. É quase impossível achar o produto sem ajuda: poucas embalagens estão em braile e é muito difícil circular nos corredores estreitos, esbarrando em tudo. Fiquei envergonhada na hora de pagar com cartão, porque pensava que era muito simples digitar os números, mas fiz isso várias vezes e minha senha foi negada. Ao pagar em dinheiro, percebi que é preciso ter as notas muito organizadas na carteira, lembrar da ordem e confiar que as pessoas darão o troco correto.
Nessa hora, apareceu uma lágrima escondida. Lembrei do dia em que precisei tomar consciência de que minha irmã não iria mais enxergar, depois de dezenas de aplicações a laser e muitas cirurgias. E, quando ela me disse que queria aprender braile, porque não ia parar no tempo esperando a medicina. Fizemos o curso juntas e, a partir de então, passamos a trocar cartas e letras de música.
Saindo de lá, Tânia deve ter percebido que eu estava me sentindo diferente e perguntou se eu queria parar. Mas, estimulada pelo cheirinho delicioso de pão que vinha da rua, decidi ir sozinha à padaria de um supermercado. É uma sensação muito estranha depender dos outros, e o atendente percebeu meu nervosismo, porque puxou conversa dizendo que muitas pessoas com deficiência compravam ali. Pedi apenas três pães, mas fiquei imaginando o quanto é difícil fazer a compra inteira. Glenda até hoje vai com a nossa mãe.
Alívio ao pagar em dinheiro no caixa e sentir que a missão estava parcialmente cumprida. Tânia me recebeu lá fora e disse que já era suficiente para um dia. Minha cabeça doía muito, mas ao abrir os olhos recebo um presente do Universo. Não percebi que tinha anoitecido e uma linda lua cheia me esperava. Ver deixa-nos acomodados: estamos tão acostumados a ter os olhos à disposição que agimos mecanicamente e nos esquecemos de apreciar ao nosso redor - ligamos o botão do automático e lá vamos nós, mas para onde? Passei a perceber a cor da vida de forma mais intensa e seus contrastes. Glenda me contou que, até hoje, sonha colorido.
Cinco dias depois
Fiz a experiência em várias etapas, por recomendação de Tânia. Ela já havia passado por esse processo para conseguir trabalhar com isso e, assim, sabia que é um choque emocional muito grande. Foram cinco dias não consecutivos para terminar o que pensava fazer em apenas uma tarde. Em casa, tentei ter outras experiências. Lavei louça de olhos vendados e até que o resultado não foi tão mal: não quebrei nenhum copo, mas, quando abri os olhos, tinha um prato ainda bem sujo. O mais engraçado foi a perda do celular, porque costumo acordar com o despertador dele na minha cabeceira. Ao arrumar a cama sem enxergar, nem percebi que tinha caído entre os travesseiros. Descobri pelo som quando liguei do fixo e foi uma ótima oportunidade para rir de mim mesma, o que preciso fazer mais vezes em outras situações.
Como parte da experiência, convidei Glenda para ir comigo a um teatro com audiodescrição. A cena que mais chamou a atenção não foi a da peça, mas a que contracenamos. De olhos vendados, falei alto demais com ela, que me chamou a atenção. Quase chorei naquele momento, mas logo acabamos rindo juntas, porque ela me serviu uma bala e eu não peguei, porque não percebi. "Esqueci que você está cega!", disse ela.
Para terminar
A parte final desta reportagem seria escrever a matéria utilizando um software especial. Como não tenho o hábito de olhar para o teclado enquanto escrevo, achei que isso seria fácil. Mas não foi bem assim. Quando o computador falava uma espécie de japonês robótico, eu tinha que repetir muitas vezes para entender. Também me dispersava completamente caso alguém viesse conversar. Era horrível começar tudo de novo. Exercícios simples do "asdfg" (para tentar pegar mais prática e escrever pelo menos o primeiro parágrafo) me deixavam irritada: fada, afaga, safada. Mal consegui escrever o meu nome sem mouse, em uma hora e meia.
E, de tudo o que fiz vendada, uma das coisas mais difíceis foi me deixar ser conduzida por minha irmã da casa dela até o metrô. Fiquei insegura: será que ela daria conta do trajeto? Nesse instante, lá veio a memória funcionar de novo, com a cena do dia em que segui Glenda escondida, com medo de deixá-la pegar o ônibus sozinha pela primeira vez. E agora, vendada, tive dificuldade para descer escadas. Eu segurava a Glenda pelo braço e também usava a bengala. Pedi para que fosse mais devagar. Quase abortei a operação, mas persisti. Uma mulher nos ajudou a atravessar a rua e, como ela foi muito rápida, quase tropecei. Um tempo depois, Glenda me confessou que essa inversão de papéis havia feito ela se sentir insegura, sem saber o que fazer, querendo me pegar no colo. Isso a ajudou a ter uma pequena noção do que eu senti, tantas vezes, ao tentar superprotegê-la. Glenda então se despediu e me deixou só. Tomei coragem e fui até o fim, esperando algum segurança do metrô me ajudar a comprar um bilhete e embarcar na plataforma. No trem, fui ajudada e logo pude me sentar. A mesma pessoa depois me ajudou a chegar ao meu destino.
Passei por várias fases com a perda de visão da Glenda: da revolta e descrença à superproteção. Mas, com o tempo, compreendi que ela precisava seguir seu caminho sozinha. E também já me culpei, em momentos difíceis, por ficar mal ou triste - depois que minha irmã perdeu a visão, passei a achar que deveria superar tudo, porque eu tinha os olhos perfeitos e ela não. Mas vendar os olhos me fez enxergar que todos nós temos as nossas dificuldades a superar. Hoje, consigo ver minha irmã como uma vencedora, a quem admiro muito - a propósito, Glenda é campeã brasileira de xadrez para pessoas com deficiência visual. Sei que ainda vamos aprender mais lições uma com a outra, compartilhar vitórias e derrotas. E, principalmente, o nosso olhar para o mundo.
Cristiana Felippe e Silva é jornalista e dançarina de tango (das boas) e está envolvida em vários projetos de dança.
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