Pesquisadora Wânia Pasinato apresenta a promotores de Justiça o processo de adaptação do Protocolo (Crédito: Marisa Sanematsu) |
O Brasil será o primeiro país a adaptar o Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero. O processo, que mobiliza representantes dos sistemas de Justiça e Segurança Pública, além da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) e a ONU Mulheres, busca facilitar a aplicação da norma a partir da análise do contexto de cada Estado brasileiro por meios de grupos de trabalho. A experiência brasileira servirá para orientar outros países envolvidos nesse mesmo esforço de adaptação do Protocolo a suas realidades locais. A proposta é apoiar os sistemas de Justiça na região para enfrentar de maneira mais adequada os feminicídios. “O Protocolo é bastante didático e busca melhorar a investigação e a prova técnica a partir de uma mudança do olhar nos casos de homicídios de mulheres”, explica a pesquisadora Wânia Pasinato, consultora da ONU Mulheres envolvida na adaptação do documento para o caso brasileiro.
Para garantir sua capilaridade, a ideia é que, depois de adaptado ao contexto nacional, os diferentes Estados brasileiros formem grupos técnicos envolvendo atores-chaves, como os sistemas de Segurança, Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça Estaduais, para promover uma segunda etapa de adaptação e apropriação, ajustada à realidade local, o que permitirá que o Protocolo torne-se uma ferramenta prática em diferentes contextos.
A expectativa é que o próprio processo de adaptação já seja um caminho de reformulação de práticas, rotinas e procedimentos, buscando isentar as práticas dessas instituições de estereótipos e preconceitos de gênero que sustentam a impunidade, criam obstáculos ao acesso à Justiça e limitam as ações preventivas nos casos de violência contra as mulheres. “A ideia é enfatizar a qualidade do crime, não sua gravidade pura e simples. Ou seja, não estamos querendo dizer que esses crimes são os mais ou menos graves que acontecem no País, mas que têm características particulares, que não acontecem no mesmo contexto da insegurança urbana e que afetam as mulheres pela sua própria condição de existência”, destaca a consultora.
Confira a seguir a entrevista exclusiva concedida ao Portal da Campanha Compromisso e Atitude:
Em sua opinião, o debate sobre a tipificação penal do feminicídio precisa ser acompanhado de medidas como o Protocolo?
Sim, pois não adianta criar um rótulo para esse crime no Código Penal, definindo que determinados comportamentos são baseados no gênero. Na hora de aplicar isso concretamente, no caso a caso, você precisa ter elementos que ajudem a caracterizar a circunstância, o contexto, a existência da violência prévia, a forma como a violência é praticada contra a mulher, atacando justamente partes do corpo que definem o que é ser mulher, como rosto, seios e órgãos genitais. Isso tem que vir do próprio caso, tem que vir como evidência, prova, tanto na prova técnica como na prova testemunhal. O Protocolo atua justamente nisso, na construção desse processo de investigação, até o argumento final debatido perante o júri, colocando em evidência esses aspectos.
Esse processo pode ajudar a superar barreiras existentes até mesmo na aplicação da Lei Maria da Penha, como a tese do crime passional?
Exatamente. No Brasil vêm sendo discutidos tanto o tipo criminal do feminicídio, a partir do Projeto de Lei do Senado nº 292/2013, como o próprio conceito – que abrange bem mais do que a violência doméstica e familiar, englobando a violência contra a mulher que acontece em outros contextos, como a violência sexual. Considerando que uma parte relevante desses crimes no Brasil ocorre nas relações domésticas e familiares que estão a cargo da Lei Maria da Penha, uma preocupação com a adaptação do Protocolo é justamente aproximar essa discussão. A ideia é aproximar a Lei Maria da Penha do Protocolo, usar o que está na Lei para adaptação do Protocolo, e também aproveitar aspectos da investigação que possam ajudar a construir um olhar diferenciado, que coloque a violência de gênero em evidência e que ajude na própria aplicação da Lei Maria da Penha, para que se possa também ampliar nosso olhar para a violência doméstica e familiar, que hoje está muito restrito à relação conjugal e afetiva. Isso vai beneficiar o Protocolo e a investigação dos homicídios de mulheres trazendo o legado da Lei Maria da Penha e beneficia a aplicação da Lei na medida em que se fortalece o olhar de gênero.
Por que é importante garantir a incorporação da perspectiva de gênero na investigação dos crimes de violência contra as mulheres? No Brasil, essa incorporação já começa a acontecer?
Quando dizemos que é preciso dar visibilidade às mortes em razão de gênero não estamos querendo dizer que esses crimes são os mais graves que acontecem no País e por isso precisam ser punidos de forma mais grave, mas mostrar que esses crimes têm características particulares, especificidades, que o feminicídio não acontece no mesmo contexto da insegurança urbana, mas afeta a mulher pela sua própria condição de existência. E, se considerarmos que a maior parte dos casos acontece no contexto doméstico, familiar e afetivo, o homicídio se inscreve em um contexto em que a violência é recorrente e se expressa de diferentes formas, o que faz com que a mulher possa passar a vida toda exposta a uma situação de violência e acabar morrendo. O que queremos enfatizar é a qualidade do crime, não sua gravidade pura e simples, para que possa ser punido e resolver esse sério problema.
O reconhecimento como crime em razão de gênero é importante tanto para o caso especifico como para a prevenção?
Prevenção é uma parte essencial do projeto e o Protocolo enfatiza isso também nas devidas diligências que são exigidas dos Estados para os crimes contra as mulheres. Isso consta da decisão da Corte Interamericana sobre o Caso do Campo Algodonero, em Ciudad Juárez, no México.
Quais são as barreiras enfrentadas hoje para garantir que a perspectiva de gênero esteja presente?
Essas barreiras poderão ser identificadas na hora de se implementar o Protocolo. Uma característica que temos no Brasil é que o Sistema de Justiça é estadualizado e podemos gerar, a partir do governo federal ou como um organismo internacional, um conjunto de diretrizes que servirão para todo o País. A partir desse momento vai se iniciar uma nova fase, quando esses documentos serão levados para todos os Estados e serão trabalhados junto às instituições para que as diretrizes sejam aprimoradas no que for necessário para sua implementação. Isso significa que ainda temos uma série de etapas até termos um Protocolo, porque não queremos produzir uma lista de itens, mas sim um modelo que seja aplicável e realmente útil para mudar essa realidade. Seguramente vamos ter muitos obstáculos a superar porque teremos muitas pessoas e instituições envolvidas no processo, daí a importância das oficinas e debates, para que se vá construindo uma certa familiaridade com o documento.
O que imaginamos como fluxo é que tenhamos no final os Estados – por meio das Secretarias de Segurança, Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça – se apropriando desse documento e fazendo a adaptação necessária, em um primeiro momento considerando o tipo de violência que possa existir localmente. Nos Estados que têm região de fronteira pode haver violência envolvendo exploração sexual de meninas ou tráfico de mulheres. Há outros Estados que têm uma grande população indígena e temos que considerar que há uma série de especificidades que afetam essa população.
E uma outra adaptação tem a ver com a própria arquitetura do Sistema de Justiça criminal – a organização judiciária e a administração da Segurança Pública a cargo dos Estados. Nessas áreas ainda é muito difícil trabalhar a questão do gênero e há uma resistência em mudar esse olhar, o que se percebe na aplicação da Lei Maria da Penha. Precisamos então elaborar estratégias para quebrar essa resistência e encontrar formas de atuação mais integradas, interativas e próximas dessas instituições para que, ao final desse processo, este seja um documento delas, que será apropriado em sua prática cotidiana.
Que mudanças esses protocolos introduzem para os serviços de investigação e perícia, e também para o Ministério Público em relação ao trabalho que esse órgão realiza hoje em dia?
O que se pretende é justamente aprimorar a qualidade da investigação policial e da prova técnica, ajudando a direcionar o olhar desses profissionais para aquilo que vai caracterizar a violência de gênero. O protocolo é bastante didático, porque diz para o que se deve olhar para fazer essa mudança. Esperamos que tenha impacto tanto na produção da investigação quanto das provas técnicas, saindo da lógica que temos hoje que olha quem é o agressor e quem é a vítima. Se é um marido que mata a mulher fica evidente que havia uma relação afetiva/conjugal e isso ainda é compreendido como crime passional. Queremos que saia dessa lógica para que o crime seja compreendido como feminicídio, para que se olhe muito mais o contexto e as circunstâncias.
Se esse fluxo for efetivado, podemos esperar como resultado adicional uma maior sensibilização dos profissionais?
A própria adaptação do modelo para o Brasil e sua implementação não se resumem à produção do documento, mas vêm apoiadas por uma série de ações que incluem o desenvolvimento de um sistema de informação sobre as mortes das mulheres, o monitoramento e a produção das ementas para os cursos de formação das Escolas de Magistratura, do Ministério Público e das Academias de Polícia. Essa estrutura contribuirá para criar mais elementos que favoreçam a implementação.
Para pensarmos em um sistema nacional precisamos ter bons sistemas estaduais de informação. O Rio de Janeiro, com o Dossiê Mulher, é o melhor exemplo que temos de manejo de informação para trabalhar com o enfrentamento à violência contra as mulheres. É um sistema que pode ser usado como ponto de partida sobre quais são as variáveis que se pode ter para a criação desse sistema, possibilitando desenvolver um sistema informatizado que permita caracterizar o contexto e a circunstância da violência. O sistema de informação é essencial para construir o monitoramento.
Qual é a perspectiva de esses protocolos serem efetivamente implementados? E como será feita a implementação?
Até o final do ano vamos ter o primeiro documento estruturado, que reorganiza o Modelo do Protocolo já adaptado para a nossa realidade com a pesquisa documental que dá apoio para a reformulação, com base na experiência que já temos com a perspectiva de gênero. Essa primeira versão será discutida internamente por um grupo composto pela Secretaria de Políticas para Mulheres, ONU Mulheres e a Secretaria Nacional de Segurança Pública. A constituição dos grupos de trabalho ficarão para o início do próximo ano porque a proposta é que o grupo tenha representantes das instituições estaduais, envolvidas na investigação de homicídios em alguns Estados, que ainda serão definidos, mas que sejam representativos da nossa realidade nacional. Também estamos na fase de organizar oficinas. Fizemos uma com o Ministério Público e temos a previsão de realizar até o final do ano outras três, com a magistratura, com os defensores e as polícias (civil e científica conjuntamente). Paralelamente, vamos trabalhar no sistema de informação e de monitoramento.
O Brasil foi escolhido como piloto para esse processo de adaptação. A expectativa é que depois esse trabalho sirva de exemplo para outros países?
A estratégia do Escritório Regional da ONU Mulheres e Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos foi escolher alguns países que façam essa adaptação e documentem o processo para depois compartilhar e discutir com outros países. O Brasil foi o primeiro a fazer esse trabalho. A partir desse primeiro processo de adaptação, o documento será finalizado e socializado com os países e esperamos que possa ser feito esse intercâmbio e que isso sirva de insumo para cada país pensar o seu próprio processo.
Compromisso e Atitude
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