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terça-feira, 3 de maio de 2011

As guerreiras da África

Como as mulheres de Burkina Fasso estão mudando a face do terceiro país menos desenvolvido do mundo, onde apenas 26,5% da população sabe ler e escrever


Hélio Gomes, enviado especial a Burkina Fasso
29.04.11

Assista à reportagem :



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IDENTIDADE
As cicatrizes no rosto da burquinense são típicas de sua tribo e de sua família

Enquanto o norte do continente africano vive uma verdadeira epidemia de movimentos em prol da democracia, um tipo diferente de revolução ganha força na terceira nação menos desenvolvida do mundo. Burkina Fasso, pequeno país desprovido de litoral encravado no oeste da África, exatamente abaixo do deserto do Saara, é o cenário de um movimento que tenta reverter um quadro trágico. Ali, milhares de mulheres unem forças para conquistar sua dignidade e escapar da miséria, do analfabetismo e da violência secular de uma sociedade machista e ainda tribal por meio do cooperativismo.

Na cidade de Léo, localizada a 140 km da capital Uagadugu, quatro mil mulheres trabalham na colheita e no processamento do karitê. Depois de transformado em manteiga, o fruto típico da África é utilizado na fabricação de cosméticos de algumas das maiores marcas do planeta. O trabalho, realizado ao longo de quatro meses por ano, garante US$ 140 a cada cooperada. Parece pouco, mas é mais do que a renda média do país. Segundo o Banco Mundial, os mais de 16 milhões de burquinenses vivem com menos de um dólar por dia.

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TRABALHO
Membro da cooperativa de Léo separa o karitê para a fabricação de manteiga

“Consegui mandar meus filhos para a escola com o que ganhei com o karitê”, diz Pignan Bassia Mariam. Aos 58 anos, casada há quase quatro décadas com um professor, ela narra uma história que serve de exemplo para suas companheiras. Uma exceção à regra em um país onde apenas 26,5% da população sabe ler e escrever, Mariam é o motor de uma grande família. Além de criar seus oito filhos, ela ainda cuidou de dois sobrinhos depois da morte de sua irmã. “Comecei a trabalhar com o karitê nos anos 70. Antes, apenas colhíamos as frutas e as vendíamos no mercado. Agora, com a manteiga, temos mais trabalho e nos­sa renda melhorou muito”, afirma a senhora de sorriso fácil e largo.

O cérebro por trás da cooperativa UGPPK (União dos Grupos de Produtoras de Karitê), no entanto, é masculino. Tagnan Abou Dradin, 45 anos, é diretor-geral da organização desde 2007. “Lidar com as mulheres não é difícil, mas tudo depende da sua postura. Você está perdido se acha que é superior pelo simples fato de ser homem”, diz. Formado em história e arqueologia pela Universidade de Uagadugu, onde também cursou pós-graduação em comércio internacional, ele comanda uma operação que gerou US$ 550.000 de receita em 2010. Abou também coordena parcerias estratégicas com ONGs e fundações internacionais, que financiaram a construção de 11 centros de alfabetização para adultas em Léo e o ajudam a manter um programa de microcrédito que beneficia as cooperadas.

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ESTUDO
Mulheres aprendem a ler e escrever em escola de Uagadugu, capital de Burkina Fasso

“O futuro do continente está nas mãos das mulheres”, diz Saddo Ag Almouloud. Presidente da associação Fórum África, o professor de matemática da PUC-SP nasceu no Mali e está no Brasil há 18 anos. Segundo ele, o sexo feminino ganha cada vez mais importância política, social e econômica na região. Em Burkina Fasso, por exemplo, o governo do presidente Blaise Comparoé – que chegou ao poder depois de um sangrento golpe de Estado em 1987 – criou o Ministério para a Promoção das Mulheres. Não por acaso, o grau de alfabetização entre elas é de 33%, quase sete pontos porcentuais acima da média nacional. “A África está mudando muito rápido e os governos sabem que precisam atender às demandas da população”, afirma a socióloga britânica Amy Niang, especialista no continente africano.

A reportagem de ISTOÉ assistiu a uma das aulas ministradas nos centros de alfabetização da cooperativa de Léo. Ali, com os olhos grudados no quadro negro, mulheres de todas as idades aprendem a ler e escrever em francês e em alguns dos quase 60 dialetos falados no país. Além disso, elas recebem noções de economia doméstica e informações sobre saúde. Muitas frequentam as aulas com seus filhos no colo. Damase Zouré, coordenador nacional da ONG Aide et Action, é o responsável pelo programa. Formado em sociologia pela Universidade de Uagadugu, ele lida com as mulheres de Léo desde 2004 e já foi convidado a fazer um curso na sede da ONU, em Nova York, graças ao sucesso do seu trabalho. “Nosso método é baseado na filosofia criada pelo brasileiro Paulo Freire”, con­ta Zouré.

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CELEBRAÇÃO
O canto em uníssono das mulheres de Burkina Fasso é ouvido constantemente no país

Infelizmente, o analfabetismo está longe de ser o único problema para as mulheres de Burkina Fasso. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 70% delas tiveram seus órgãos genitais extirpados. Prática corriqueira em muitos países africanos e em parte do Sudeste Asiático, a mutilação sexual feminina consiste na retirada total ou parcial do clitóris e no fechamento de parte dos lábios vaginais. Considerado crime no país desde 1997, o ato ainda é realizado em comunidades rurais e grandes cidades. Geralmente, as meninas enfrentam o ritual de passagem a partir dos quatro anos de idade. “A lei que proíbe a mutilação sexual ajuda na conscientização das novas gerações, mas tenho certeza de que ela vai continuar a ser realizada por muitos anos”, afirma Muriel Cote, geógrafa e pesquisadora da Universidade de Edimburgo (Escócia) que passou dois anos trabalhando na África.

SUSTENTO
A céu aberto e em condições precárias, as mulheres
da cooperativa de Léo fabricam a manteiga de karitê (abaixo)
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Mesmo sofrendo com todas as agruras de uma sociedade em que a dignidade é uma conquista diária, as mulheres de Burkina Fasso jamais abandonam sua alegria de viver. De certa forma, seu canto uníssono e constante, que dita o ritmo do trabalho e marca suas celebrações, é a prova concreta de que o prazer pode ser encontrado de diversas formas. O caminho para sua emancipação pode ser tortuoso, mas aponta uma direção clara para o desenvolvimento do país. “Sobrevivemos com o que ganho na cooperativa e a aposentadoria do meu marido. Eu tenho o meu dinheiro, ele o dele. E cada um paga sua parte das despesas”, diz Pignan Bassia Mariam. Nada mais justo.

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“Há muitas mulheres que lucram com a mutilação sexual das
meninas. Mas a situação está mudando em Burkina Fasso”
Tagnan Abou Dradin, diretor-geral da cooperativa UGPPK

Um verdadeiro choque de realidade
Até o mais experiente dos viajantes leva um baque com a falta de infraestrutura em Burkina Fasso. No único salão de desembarque do aeroporto da capital Uagadugu, uma reforma que parece durar anos transforma o espaço em uma arena de vale-tudo. Sem o auxílio de esteiras rolantes, a bagagem de centenas de passageiros é empilhada sobre caixotes de madeira. Lute para encontrar a sua.
Já no melhor hotel da cidade, ironicamente batizado de Palm Beach (não há praias em Burkina), a qualidade da água é o maior problema. Banhos com a boca cerrada e higiene bucal com água mineral são obrigatórios. Quem entra no país precisa mostrar o comprovante de vacinação contra a febre amarela. Mas a malária, combatida com doses excessivas de repelente, é o maior temor dos forasteiros. Comer também é um desafio – apesar dos sabores marcantes e do talento das cozinheiras. Como confiar na quali­da­de de peixes, legumes e verduras lavados em água da torneira?
Diferentemente de destinos como a Índia ou o Egito, nos quais a pobreza convive com um verniz de civilidade aplicado para seduzir os turistas, Bur­kina Fasso recebe seus visitantes sem disfarces. Prepare-se para mergulhar no quarto mundo. E sem escafandro.

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