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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Crianças na fogueira do divórcio

Em livro infantil, a advogada Alexandra Ullmann narra histórias verídicas de um sofrimento sem fim: alienação parental.

ISABEL CLEMENTE
22/02/2015

Advogada especializada em Direito de Família, Alexandra Ullmann acompanha, há dez anos, histórias de divórcios que não caminham bem. Sem acordo, viram uma batalha e os filhos, armas a serem manipuladas. Carioca, mãe de uma moça de 21 anos, divorciada e amiga do ex-marido e sua atual companheira, Alexandra lança, no dia 3 de março, no Rio, um livro infantil em que retrata, com belas ilustrações de Gregório Medeiros, as angústias contadas por crianças vítimas da disputa dos pais. Em Tudo em dobro ou pela metade (Cassará Editora), a voz infantil ganha força e recorre à imaginação para encenar, num teatrinho, a mensagem perfeita para uma família que se dividiu: no coração de uma criança cabe tudo em dobro. Crueldade é exigir que ela fique só com metade. Formada também em Psicologia, a advogada conversou sobre o tema do livro. Seguem os principais trechos.

ÉPOCA – Crianças sempre sofrem no divórcio dos pais?

Alexandra Ullmann – Lidamos com muitos litígios. Raros são os casos de acordo consensual e as crianças sempre sofrem. Os pais, na grande maioria dos litígios, não poupam as crianças. Acham que a dor vai passar, que elas vão esquecer, ou pior, que elas têm que conhecer os defeitos do pai e da mãe. São frases muito comuns. Comecei a ver que não adiantava aconselhar, sugerir terapia, algo que a maioria até faz, porque, no fundo, essas pessoas não conseguem elaborar de forma racional a separação, sobretudo quando há briga, traição e partilha de bens. Num litígio, até os mais sensatos perdem a sensatez. Eu costumo chamar a família para um papo e escutar a criança, que sempre fala claramente o que acontece. O livro traz exemplos da realidade. As crianças dizem assim "meus pais acham que eu não sei de nada. Eu prefiro mentir para minha mãe dizendo que é ruim ficar com meu pai". Eu aviso ao pai e à mãe que a criança, para sobreviver, é obrigada a viver numa mentira. Uma criança me disse certa vez que o pai tirava o chip do celular para a mãe não poder telefonar quando ele estava com ela (essa história está no livro). Ouvi aqui o relato de um pai que recebeu o telefonema da filha de sete anos perguntando se ele tinha postado o vídeo da apresentação do balé dela e quantos likes o vídeo tinha recebido. A conversa acabou mas, como a menina não desligou o telefone, ele ouviu o diálogo que se seguiu com a mãe dizendo para a criança "tá vendo como seu pai não tem amigos? Ninguém gosta dele."

ÉPOCA – A criança é a maior vítima da alienação. Ela pode fazer algo para estancar esse processo?

Alexandra – Algumas crianças conseguem. Uma juíza do Mato Grosso me contou um lance que me emocionou. Ela leu o livro para uma menina que estava desesperada durante uma audiência. A menina foi se acalmando e disse "tia, eu achava que era só eu que passava por isso". Conheço um caso de alienação grave, que começou quando os gêmeos tinham seis meses. Aos seis, o menino não falava com o pai. Hoje, aos 12, numa nova tentativa da mãe de reduzir o tempo das crianças com o pai, o menino colocou de forma bem direta: "Minha mãe fala mal do meu pai o tempo inteiro, e ela quer que eu faça isso, mas não dá, não vou falar mal do meu pai porque gosto dele." Firme assim. Mas tem criança que não suporta a pressão, e aí a história fica triste demais. Teve criança que tentou se matar com uma facada na barriga aos sete e, aos 12, ameaçou pular do parapeito. Isso aconteceu numa família abastada, em que os pais não se entendem. Outra criança, de 12 anos, cortou os pulsos. Perdi muita a fé em tudo. Lido com o pior do ser humano todos os dias, são pessoas que não se importam com uma criança. O bullying é um tema que vem se popularizando no ambiente escolar. A alienação parental, não.

ÉPOCA – As escolas estão preparadas para tratar do assunto?

Alexandra – A maioria das escolas não está preparada para lidar com essas questões. São poucas as que promovem debates sobre esse assunto. Há mais de cinco anos, falo com os pais sobre responsabilidade civil pelos atos dos filhos e com a garotada também. Com esse livro, minha ideia é montar uma peça para levar às escolas porque a mensagem principal é para os pais mesmo. Além do mais, a nova lei da guarda compartilhada, aprovada em dezembro, prevê multa para todo estabelecimento, público e privado, que não fornecer aos genitores - independentemente de quem tem a guarda - informações sobre o filho. A grande maioria das escolas desconhece isso porque a lei é muito nova ainda.

ÉPOCA – Como a senhora lida com clientes que incidem em alienação parental?

Alexandra – Se eu perceber que há alienação, não entro no processo. Eu me recuso. Mas se eu não souber e vir que meu cliente está fazendo isso, oriento porque muitos não percebem, fazem por raiva ou vingança, mas exijo "ou enquadra, ou eu não continuo". E já mandei vários embora.  Somos humanos, todos erramos, mas é preciso se dar conta do dano causado à criança. Existem inúmeros casais que alienam enquanto casais com aquela história do "seu pai não presta para nada" ou "sua mãe parece não gostar tanto de você assim". Quando vem a separação, aquela estrutura rui porque as pessoas não separam o casamento da parentalidade. Os casais que conseguem manter os filhos longe da separação certamente terão adolescentes mais tranquilos e adultos sem problema de relacionamento no futuro. Filho é 50% um e outro, ao anular a outra metade, o alienador está destruindo metade da origem de uma criança.

ÉPOCA – O que o pai ou a mãe consciente, que não chantageia o filho, pode fazer para atenuar o sofrimento imposto pelo outro genitor?

Alexandra – É muito complicado. Tentamos mostrar ao juízo que a situação exige terapia e laudos que comprovem a alienação. O problema é que o tempo do Judiciário não é o tempo da criança. Para o alienador, quanto mais tempo demorar, melhor. E um advogado mal intencionado pode esticar um processo de um para dez anos.

ÉPOCA – É possível dizer a partir de que idade a criança consegue romper com a manipulação?

Alexandra – Não dá. Depende do laço estabelecido antes entre o filho e o genitor alienado. Crianças muito pequenas com ótimos laços são menos esponjas. Outras passam a crer na mentira. É tão fácil implantar memórias em crianças. Elas repetem tudo, como se lembrassem de histórias que lhes foram contadas. Se o pai ou a mãe estabelecer alguma relação com uma ponta de verdade, basta. Acabou a verdade e ficou a mentira.

ÉPOCA - Pessoas de fora do núcleo familiar, como avós, tios, amigos muito chegados, aprofundam a alienação?

Alexandra – Na grande maioria dos litígios, acontece um apartheid dos amigos porque as partes entram numa de dizer "se você é amigo dele não pode ser meu". Não tem mais os "nossos amigos". O alienador busca respaldo, daí espalha que está ficando sem pensão, fala mal do ex-cônjuge, reclama, e o amigo acaba ficando com raiva também e começa a repetir isso. A alienação fora da esfera familiar é comum, e vem do entorno da criança.

ÉPOCA - Como essas mesmas pessoas poderiam ajudar uma criança em conflito?

Alexandra – Já teve avó me procurando para dizer que a filha está praticando alienação e não sabe mais o que fazer. A gente pode encaminhar para tratamento psicológico, chamar para conversas. Cabe aos amigos também chamar a pessoa à realidade, caso ela esteja cega pela raiva porque é bom avisar que, se for brigar na Justiça, vai acabar perdendo a guarda do filho. As pessoas perdem a noção. Tivemos um caso em que um pai acusou a mãe de praticar swing e que, por isso, ela não poderia ser uma boa mãe. Ele tinha fotos e estava no meio. Ué, ela não pode mas ele podia? Como é isso? O comportamento que era mútuo ou aceito vira combustível para a alienação. O ódio se transforma na lenha da fogueira em que o filho vai arder. E a criança queima, ciente de tudo que se passa.

ÉPOCA - Alienação parental não é um fenômeno novo, sempre existiu, mas discutir o problema nos tribunais é recente, não?

Alexandra – Quando o pai deixa de ser provedor e quer assumir o papel na educação do filho é que esse drama veio à tona. Não existe mais a visita do pai. A palavra é convivência.  É um entendimento arcaico partir do pressuposto de que a mãe é melhor.  Pessoas são pessoas, têm defeitos e qualidades. Pais querem conviver mais. Antes, eles pegavam as crianças limpas, levavam para passear e pronto. Devolviam. Hoje os pais querem dividir responsabilidades, participar das reuniões da escola, das decisões, pegar e levar, conviver.  Eles têm um papel. Pela ótica freudiana, o pai é o limite, é quem chega para mostrar ao filho que a mãe não é a extensão dele.

ÉPOCA - A senhora consegue distinguir um perfil mais propenso a usar o filho como cabo de guerra?

Alexandra – Não tem perfil, classe social, nada. Pessoas acima de qualquer suspeita piram igual a qualquer um. As pessoas estão cada vez mais difíceis de lidar. Há muita falsa acusação de abuso sexual, que é o último degrau da alienação. Existe claramente um caminho seguido por quase todos os acusadores. O pai ganha mais tempo com o filho, entra o pernoite, a mãe começa a dificultar esse encontro, aí surge uma namorada do pai, a mãe complica mais ainda a aproximação, daí o pai entra com uma ação para reconquistar o que está perdendo e, na resposta, a ex-mulher aparece com uma acusação de abuso sexual, alegando que era uma desconfiança antiga que aumentou com o tempo. Tenho um cliente que ficou uma semana detido acusado de abusar do próprio filho, sem prova alguma, com todos os laudos dando negativo. Bastou a palavra da ex-mulher. Há um ano não conseguimos nem convivência vigiada para ele ver o filho. O tempo passa e, à medida que ele perde nos pleitos, reforça a falsa memória implantada na criança com o discurso do "tá vendo? Tanto é verdade que o juiz não deixou mais você estar com ele".

ÉPOCA - O que é mais difícil para um pai ou mãe que sofre alienação parental?

Alexandra - Educar, dizer não. Eles acham que não podem mais contrariar os filhos, temendo que eles não queiram voltar. Eu digo que, até os 18 anos, a responsabilidade é dele sim, é o pai e a mãe que tomam decisões. O genitor alienado fica fragilizado. Eu tenho um cliente que passou por isso. Disse não e a filha não quis mais voltar. É muito comum o alienador jogar a decisão no filho com um "eu deixo, ele é que não quer". Educar é dizer não e permitir que o outro diga também.

Manipuladores de sentimentos

Eles mentem para controlar os outros e serem amados. Conhece alguém assim?

IVAN MARTINS
25/02/2015

Já ouvi muita gente chamar os outros de manipuladores, mas raras vezes escutei uma explicação que justificasse a queixa. Em geral, pessoas magoadas acusam de manipulador qualquer um que as desaponte, homem ou mulher. Não foi o caso desta vez. Eu conversava com uma amiga que está furiosa com um sujeito. A história dela, apresentada com lógica rigorosa, me ajudou a entender a questão sob o ponto de vista de quem foi manipulada. Fez sentido.

O caso é simples: ela está apaixonada por um cara com quem saiu algumas vezes. Sabia que ele era galinha e começou sem expectativas. Diversão e sexo, só. Mas o sujeito é atraente, bom de cama, e faz com que ela ria e se divirta. O sentimento cresceu. Sobretudo, diz ela, por causa do que ele dizia: “nunca foi tão gostoso transar com alguém”, “estou me apaixonando”, “finalmente achei alguém com quem consigo conversar” e outras coisas do mesmo naipe. As defesas dela baixaram e ela começou a achar que rolaria um romance de verdade. Então, de uma hora para outra, o sujeito começou a se esquivar.

Uns dias antes de conversamos, ela o havia chamado para sair. Ele disse que não poderia, porque estava com um problema na família. No dia seguinte, ela soube que ele fora a uma festa. Havia mentido, portanto. Nada mais chato e banal do que isso – mas aí entra a lógica dura da amiga advogada. Por que ele faz isso? Por que mente para ir a uma festa sem ela? Por que dá a impressão de estar apaixonado quando seus atos subsequentes desmentem isso?

A resposta dela é simples: ele mente para manipular os sentimentos dela e controlá-la. Mente para que ela faça o que ele quer que faça. Mente para tê-la a disposição dele. É uma questão de poder.

Se ele dissesse que iria a uma festa sozinho, abriria a porta para que ela fizesse o mesmo. Sendo ela uma mulher bonita e independente, poderia arrumar outra companhia. Quando ele mente, tenta garantir que, enquanto vai à festa, ela não fará nada equivalente, que ponha em risco a exclusividade dele. Está mentindo para não correr o risco de dividi-la ou perdê-la – sem abrir mão de nada. Se ele ficasse com ela, também se garantiria, mas teria de abrir mão de pegar outra mulher na festa. Para não pagar o preço da escolha, ele mente.

Vale o mesmo, diz ela, para as declarações cheias de sentimentos. Fazem com que ela se envolva e não saia com outros. Se ele dissesse que era apenas sexo, seria mais um cara. Abriria espaço para que ela fosse atrás de coisa mais intensa ou duradoura. Se ele diz que está apaixonado, inibe a iniciativa dela. Está ali um cara bacana, que gosta dela. Por que sair com outros?

A  mentira neste caso é uma forma de manipulação, diz ela. Permite se aproveitar do outro sem doar nada e sem correr riscos. Acaba sendo uma maneira de obter poder sobre a outra pessoa, abusando dos sentimentos e da expectativa romântica dela. É, basicamente, uma sacanagem.

Eu concordo inteiramente. Por trás de toda mentira existe uma tentativa de se proteger – ou ganhar alguma espécie de vantagem. Mesmo quando a gente mente para “proteger o outro”, está, quase sempre, tentando se proteger da reação do outro, que pode nos magoar e nos excluir da vida dele. Quem mente tem algo a perder.

Mas, ao contrário da minha amiga, não acho que o sujeito mente apenas por ser malandro e fraco de caráter. Acho que as pessoas mentem, principalmente, porque foram ensinadas a mentir. Sobretudo os homens. As mulheres são capazes de seduzir cruzando as pernas e abrindo outro botão da blusa. É relativamente fácil para elas. Mas o contrário não é tão simples.

Para seduzir as mulheres, os homens precisam de algum tipo de conversa que toque os sentimentos ou a imaginação feminina. Em 90% dos casos, não basta ser bonito. É preciso ser envolvente. Como se faz isso? Sugerindo algo mais do que apenas sexo, por exemplo. Deixando entrever a possibilidade de paixão e envolvimento. Insinuando, ou dizendo claramente, que aquilo é mais do que apenas safadeza. Algumas mulheres precisam disso para se entregar.Outras simplesmente gostam de ouvir. Enfim, funciona com a maioria – por isso é um comportamento tão repetido.

Por que o sujeito continua dizendo coisas apaixonadas depois de transar com a moça, eu, francamente, não entendo, mas pode ser explicado pela lógica da minha amiga: ele quer manter controle. Teme perdê-la se ficar claro que aquilo é somente desejo. Ou se ela souber que é apenas uma entre outras com quem ele sai. Para se proteger da possibilidade de ser rejeitado ou virar mais um na agenda dela, o cara mente. Está maximizando as possibilidades sexuais e afetivas dele, em detrimento das dela.

Há uma terceira explicação para esse tipo de comportamento, que não exclui as outras. Os homens, como qualquer ser humano, querem desesperadamente ser amados. Dizem o que for necessário para tirar a calcinha de uma mulher, e continuarão a dizer depois, se isso provocar afeto e admiração. Somos todos, como espécie, tão carentes e tão inseguros, tão descaradamente frágeis, que não nos custa mentir para obter um grão a mais de amor, para nos assegurar um pouco mais de atenção e de desvelo, para que não nos deixem sozinhos, entregues aos nosso terrível vazio. Se o mentiroso disser que mente por amor, é verdade. Uma verdade perversa e egoísta, mas, ainda assim, verdade. Mente para ser amado.

Para que esta coluna não vire outro capítulo na disputa inútil entre homens e mulheres, deixemos claro: as mulheres também manipulam. A mesma amiga que tão lucidamente critica o comportamento do amante, me contava, tempos atrás, às gargalhadas, como escapara do bafômetro oferecendo a vista do seu decote ao guarda de trânsito que parara seu carro na saída de uma festa. Isso é manipulação, e acontece o tempo todo. As mulheres usam o corpo para embasbacar e submeter os homens. Quantas vezes você já viu uma mulher bonita flertando com todo mundo a meio metro do namorado ou do marido, na cena mais clássica de provocação desde Adão e Eva? O corpo e o poder de sedução das mulheres fazem por elas o mesmo que o comportamento mentiroso dos homens tenta assegurar para eles – mantém o outro cativo, sob ameaça de perder ou ser trocado. É manipulação e jogo de poder com outras armas. Algumas mulheres praticam esse jogo, outras não. Acontece o mesmo com os homens. Não somos todos mentirosos, embora sejamos frágeis e carentes, sem exceção.

Época

Farsa racial

No Brasil, não apenas existe preconceito, como a sociedade se recusa ao debate. Afirmam que não, não há

WALCYR CARRASCO

27/02/2015


Estou em um bom restaurante. Todas as mesas estão ocupadas por brancos. Negros, mulatos ou, como se diz na linguagem do politicamente correto, afrodescendentes estão presentes, claro. Servindo. Garçons, porteiros, manobristas. Raramente, quando saio, vejo um negro na mesa, como cliente. Outro dia estive numa loja de grife, num bom shopping. Era o único cliente. Dois vendedores me atendiam. Entrou um negro, perguntou o preço de um tênis.


– Espere um pouco, vou chamar alguém para te atender – avisou o vendedor.

E continuou falando comigo. O rapaz esperou um pouco e anunciou que ia a outra loja. Saiu, sem resposta. Claro, não era um jogador de futebol, ou uma atriz ou ator famosos. Simplesmente um negro tentando comprar um tênis.

E ainda dizem que neste país não há preconceito racial.

Não somente existe preconceito, como a sociedade se recusa ao debate. Afirmam que não, não há. Na educação, muitas universidades adotam o sistema de cotas. As notícias a respeito sempre são negativas. A pessoa é considerada afrodescendente se assim se declara. O motivo da chacota são os “espertinhos” obviamente caucasianos que burlam o sistema para conseguir uma vaga mais fácil. Fui contra o sistema de cotas, inicialmente, porque achei que estimulava o preconceito. Hoje não vejo alternativa. Como as pessoas de origem negra encontrarão bons empregos, sem estudo adequado? Quando, enfim, serão os clientes dos bons restaurantes? Quando fui escrever a novela Xica da Silva, na antiga TV Manchete, houve um grande debate interno sobre o risco de botar uma negra no papel principal. Parte da direção acreditava que o público não aceitaria. Queriam uma branca de pele amorenada, bem bronzeada. Talvez pintada de marrom com uma tinta bem forte. Mas branca, em seus traços e genética. Eu e o grande diretor Walter Avancini, já falecido, nos negamos, seria ridículo. Xica da Silva é um símbolo da negritude. Jamais poderia ser interpretada por uma branca. Teimamos. Descobrimos Taís Araújo, com 18 anos, que fez uma linda interpretação. Taís está aí até hoje. Protagonizou também novelas na Globo, sempre com sucesso absoluto.

Existe, na minha opinião, uma deformação do outro lado. Quando escrevi A padroeira, sobre Nossa Senhora Aparecida, na Rede Globo, quis mostrar o sofrimento dos escravos. Quando apareceu o primeiro, chicoteado, entidades negras se manifestaram. Segundo disseram, era uma humilhação. Um representante me perguntou por que não mostrávamos os que se destacaram na época, e não os escravos? Protestei. A escravidão foi o Holocausto dos negros. Os judeus, que sofreram também um Holocausto, fazem questão de lembrar. Há sempre novos filmes em Hollywood e em todo o mundo, monumentos aos mortos em campos de concentração, museus.

– É preciso lembrar o horror para que não se repita – comentou um judeu, meu amigo.

Quando digo Holocausto, não estou sendo leviano. Sabe-se muito menos do que se deve sobre a escravidão no Brasil. Não é novidade para os historiadores que senhoras de engenho atiravam recém-nascidos aos cães. Ou arrancavam os dentes das escravas para colocar nas falhas de suas próprias bocas. Pior: muitos eram “descascados”. Ou seja, passavam pelo suplício de ter a pele completamente arrancada. Deu enjoo no estômago? Pois é só o começo.

Esquecer disso por quê? Não temos a obrigação, como sociedade democrática, de lembrar que aqui e em toda a América Latina também houve um Holocausto? Os afrodescendentes deveriam ser os primeiros a erguer a bandeira e exigir reparação. Criar um feriado é pouco. Cotas, vagas, estágios, empregos, isso sim. Não só iniciativas do governo, mas também das empresas. O Bradesco, por exemplo, tem um convênio com a Universidade Zumbi dos Palmares, para absorver parte dos formandos. Na televisão, ao contrário do que pensam, estamos sempre à procura de atores negros. Quando surge algum bom, imediatamente tem sua oportunidade. Em minha próxima novela, Verdades secretas, procuramos muito uma modelo negra e boa atriz. Felizmente, encontramos, e já vai gravar.

Quando fui à África do Sul, também fiquei chocado com a mesma situação. Os brancos nas mesas e os negros sempre em trabalhos subalternos.

– O apartheid não terminou – concluí. Aqui também é assim, ou talvez pior. Lá, ou em países como os Estados Unidos, há uma luta clara de defesa dos direitos. Aqui fingimos que nada existe. E um apartheid velado continua, década após década. 

Não bato "porque sou homem"


“Não, porque sou homem”.

Essa foi a resposta de um homenzinho de 11 anos que se recusou a estapear uma garota durante a gravação do vídeo “Slap her: children´s reactions”. O vídeo, largamente divulgado na internet, exibe meninos consternados com a proposta do interlocutor de  desferir um tapa na garota à sua frente. Visto por pessoas do mundo todo, houve críticas à postura da linda menina, que passivamente recebe carinhos dos meninos e depois aguarda sua reação ao inusitado comando de que a agridam. Mas é certo que o vídeo convence pela expressão de incredulidade dos meninos e por suas justificativas para não praticar a violência. Convence porque a informação e a educação são as principais formas de se prevenir violência contra as garotas de hoje e mulheres no futuro. Mais do que isso, leva à reflexão:

Como os jovens enxergam a masculinidade e agem diante da violência?

A masculinidade é construída. Aprende-se a ser homem e ser mulher.  Marcos Nascimento refere que a masculinidade “não é outorgada pela natureza ou por essência masculina, ao contrário, é construída, afirmada, negociada e desconstruída ao longo da vida” (Masculinidade, juventude e violência contra a mulher: articulando saberes, práticas e políticas. In: Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, p.216).

A construção da masculinidade está diretamente relacionada ao padrão de relacionamento dos jovens. Violência e discriminação de gênero representam um padrão comportamental aprendido e naturalizado em nossa sociedade. Na verdade, a violência tem início muito antes de o tapa ser desferido. Seu nascedouro está na forma como homens e mulheres, meninos e meninas lidam com a masculinidade e  entendem seus direitos e responsabilidades.  

No final de 2014, divulgou-se a pesquisa “Violência contra a mulher: o jovem está ligado?”, produzida pelo Instituto Avon e Data Popular. Foram entrevistados 2.046 jovens de 16 a 24 anos, de ambos os sexos, em 05 regiões do país. Na pesquisa, quase todos os jovens e as jovens afirmaram que aprovam a Lei Maria da Penha e reconhecem o machismo no Brasil. Será?

Grande parte desses jovens – os mesmos que repudiam o machismo e apoiam a Lei Maria da Penha - avalia o histórico sexual das mulheres. Revela a pesquisa que, para 41% dos entrevistados, a mulher deve se relacionar com poucos homens e, para 38%, não é adequada para namorar se teve muitos parceiros. O uso de saia curta e decote é apontado por 25% como um comportamento sugestivo da vítima para os homens.

Desde cedo, jovens incorporam violência e controle em seus relacionamentos. Assim, 53% dos entrevistados procuraram mensagens e/ou ligações no celular, 35% xingaram, 33% impediram de usar alguma roupa e 18%  empurraram, sacudiram ou chacoalharam.

Por que motivo pessoas tão jovens já desenvolvem esse tipo de relacionamento?

Há inúmeros fatores. O “grupo de amigos, a turma, exerce forte influência sobre o comportamento e atitude” nessa fase da vida. Se o grupo tolera ou pratica violência contra a mulher, o jovem tenderá a agir deste modo. Ao revés, “grupos de pares não violentos, com atitudes de respeito e consideração em relação às mulheres também engendram atitudes respeitosas entre seus pares (Souza, 2003; Barker, 2005) (NASCIMENTO, Marcos. Op. cit, p. 221). Sob esse aspecto, as escolas têm papel fundamental de orientação e formação.

Outro importante fator é o convívio familiar. Presenciar a genitora ser agredida, menosprezada, ridicularizada e humilhada ensina um modelo de desrespeito e violência. A forma como os conflitos são geridos no seio familiar é um aprendizado.

Reconhecer a importância da família na raiz da violência significa  olhar além do ato e enxergar o contexto que legitimou o comportamento. A conduta dos pais treina os filhos para o futuro. Sabe-se que a “experiência de conviver com a violência desde tenra idade faz com que esta seja percebida como algo natural e esperado nas relações”. Então, essa violência será “absorvida como fazendo parte da dinâmica familiar e como algo que não poderia ser evitado” (Koller, Silvia Helena; Narvaz, Martha Giudice. Famílias, gêneros e violências: desvelando as tramas da transmissão transgeracional da violência de gênero. In: Violência, gênero e políticas públicas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004, p. 162).

Jovens que presenciam a violência tendem a repetir esse padrão. Segundo a pesquisa citada, 64% dos entrevistados que praticaram  violência haviam testemunhado violência contra a sua mãe. Ser submetido – direta ou indiretamente – à violência gera para a criança e jovem “mecanismos de identificação com aquele que a vitimiza e a introjeção da figura daquele que a vitimizou”.  Futuramente, “nesse estado de inconsciência e negação da dor, resta a essas pessoas desempenhar o papel de vitimizador(a) mediante a repetição de ações violentas – a atuação como forma de alívio de uma possível dor da revivência”  (VECINA, Tereza Cristina. Do tabu à possibilidade de tratamento psicossocial: um estudo reflexivo da condição de pessoas que vitimizam crianças e adolescentes. In: O fim da violência familiar.  São Paulo: Ágora, 2002, p.205).

O caminho para desconstruir padrões é longo, mas satisfatório e necessário. Se queremos uma sociedade justa e sem violência, devemos ensinar aos jovens – com nossas condutas – o caminho do respeito e igualdade de gênero. Como se diz: “é vendo que se aprende”.

Terceira Turma autoriza desconstituição de paternidade mesmo após cinco anos de convívio


25/02/2015 

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso de um homem para permitir a alteração do registro de nascimento de uma criança em que ele constava como pai. A desconstituição da paternidade registral foi autorizada diante da constatação de vício de consentimento: o homem, que vivia com a mãe da criança, só descobriu que não era o pai biológico após fazer exame de DNA.

Embora a relação paterno-filial tenha durado cinco anos, os ministros levaram em conta o fato de que o pai registral rompeu os laços de afetividade tão logo tomou conhecimento da inexistência de vínculo biológico com a criança.

O recorrente viveu em união estável com a mãe e acreditava ser mesmo o pai da criança, que nasceu nesse período. Assim, registrou o menor e conviveu durante cinco anos com ele. Ao saber de possível traição da companheira, fez o exame de DNA.

Em ação negatória de paternidade, ele pediu o reconhecimento judicial da inexistência de vínculo biológico e a retificação do registro de nascimento.

Paternidade socioafetiva
Após o exame de DNA, a mãe – que antes negava a traição – passou a alegar que o companheiro tinha pleno conhecimento de que não era o genitor, mas mesmo assim quis registrar o menor como seu filho, consolidando uma situação de adoção à brasileira.

A sentença concluiu que a paternidade socioafetiva estava consolidada e devia prevalecer sobre a verdade biológica. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) confirmou a decisão de primeiro grau e julgou improcedente a ação negatória de paternidade, afirmando que a criança tem no pai registral “seu verdadeiro pai” e estruturou sua personalidade “na crença dessa paternidade”, conforme teria sido demonstrado no processo.

No recurso ao STJ, o autor da ação sustentou que foi induzido a erro pela mãe da criança, que teria atribuído a paternidade a ele.

De acordo com o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, ficou claro que, se o recorrente soubesse da verdade, não teria registrado a criança, “tanto é assim que, quando soube dos fatos, rompeu definitivamente qualquer relação anterior, de forma definitiva”.

O ministro considerou as conclusões do tribunal catarinense ao reconhecer a ocorrência efetiva do vício de consentimento do recorrente, que, ao registrar a criança, acreditou verdadeiramente que ela era fruto de seu relacionamento com a mãe.

Segundo o relator, se até o momento do exame de DNA a genitora alegava que o menor era filho do recorrente e que nunca houve ato de infidelidade, é “crível” que ele tenha sido induzido a erro para se declarar pai no registro de nascimento.

Disposição voluntária
Para Bellizze, a simples incompatibilidade entre a paternidade declarada no registro e a paternidade biológica, por si só, “não autoriza a invalidação do registro”.

Há casos, acrescentou o relator, em que o indivíduo, ciente de que não é o genitor da criança, “voluntária e expressamente” declara ser o pai no momento do registro, estabelecendo a partir daí vínculo de afetividade paterno-filial, como ocorre na chamada adoção à brasileira.

O ministro afirmou que a doutrina considera a existência de filiação socioafetiva apenas quando há clara disposição do apontado pai para dedicar afeto e ser reconhecido como tal. É necessário ainda que essa disposição seja voluntária. “Não se concebe, pois, a conformação dessa espécie de filiação quando o apontado pai incorre em qualquer dos vícios de consentimento”, concluiu.

Quando a adoção à brasileira se consolida, segundo o relator, mesmo sendo antijurídica, ela não pode ser modificada pelo pai registral e socioafetivo, pois nessas situações a verdade biológica se torna irrelevante.

Relação viciada
Bellizze destacou que no caso em julgamento não houve adoção à brasileira, mas uma relação de afeto estabelecida entre pai e filho registrais, baseada no vício de consentimento originário, e que foi rompida completamente diante da ciência da verdade dos fatos, há mais de oito anos – período superior à metade dos atuais 15 anos de vida do menor.

“Não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que voluntária e conscientemente o queira”, afirmou.

O relator disse que a filiação socioafetiva pressupõe “a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente”, circunstância ausente no caso.

Segundo o ministro, “cabe ao marido (ou ao companheiro), e somente a ele, fundado em erro, contestar a paternidade de criança supostamente oriunda da relação estabelecida com a genitora, de modo a romper a relação paterno-filial então conformada, deixando-se assente, contudo, a possibilidade de o vínculo de afetividade vir a se sobrepor ao vício, caso, após o pleno conhecimento da verdade dos fatos, seja esta a vontade do consorte/companheiro (hipótese que não comportaria posterior alteração)”.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Violência pode provocar câncer, doenças mentais e obesidade

Estudo adverte sobre consequências de um fenômeno que afeta especialmente a América

Médica e sua paciente em uma consulta. / BANCO MUNDIALr
Apesar de que desde o ano 2000 os homicídios em todo mundo estejam em queda, só em 2012 morreram assassinadas 475.000 pessoas, a maioria homens entre 15 e 29 anos, e entre eles a maioria vítima de armas de fogo.
A cifra está no “Relatório sobre a situação mundial da prevenção da violência 2014”, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com dados fornecidos por 133 países.
O fenômeno da violência interpessoal (quando uma pessoa lesiona outra intencionalmente) é considerado pela OMS como um problema de saúde pública disseminado em todo o mundo e que pode ter severas consequências em longo prazo.
Segundo o relatório, uma de cada quatro crianças foi vítima de abusos físicos (a cifra cresce até 3 entre 4 se for contemplado outro tipo de abuso), uma de cada três mulheres foi atacada física ou sexualmente pelo parceiro, enquanto um entre cada 17 idosos foi maltratado nos últimos 30 dias.
Além das consequências imediatas (ferimentos, maus-tratos, dias perdidos de trabalho ou escola), segundo o relatório “a violência contribui para que a má saúde se prolongue durante toda a vida -especialmente no caso das mulheres e das crianças- e para uma morte prematura”.
O documento acrescenta que “muitas das principais causas de morte, como as doenças coronarianas, os acidentes vasculares cerebrais, ocâncer e a AIDS estão estreitamente vinculadas com experiências de violência por meio do tabagismo e do consumo indevido de álcool e drogas e pela adoção de comportamentos sexuais de alto risco”.
Também enumera outras consequências, como transtornos do sono ou da alimentação (anorexia, obesidade), depressão e ansiedade, gravidezes involuntárias e diabetes.
“Um problema de saúde pública”
O relatório foi apresentado nesta semana na sede do Banco Mundial, em Washington, por Christopher Mikton, da Unidade de Doenças não Transmissíveis, Deficiência, Violência e Prevenção de Lesões da Organização Mundial da Saúde.
“Já faz algum tempo que apresentamos a violência interpessoal como um problema de saúde pública e apenas agora está começando a haver consciência de que ela efetivamente o é, especialmente por todas essas outras consequências ao longo da vida”, explicou Mikton.
Acrescentou que o processo de os países entenderem e assumirem o tema da violência interpessoal como um problema “muito importante” de saúde pública foi “muito lento”. “Fizemos alguns progressos, mas falta muito por fazer”, disse.
Além de entender que se trata de um assunto de saúde pública, outro dos desafios para quem trabalha na área da violência é estimar o custo real do fenômeno para as economias dos países. Algo que, acreditam os especialistas, ajudaria a dar mais relevância ao tema para os governos.
“O relatório expressa em números algumas coisas que já havíamos percebido em nosso trabalho. O aspecto positivo é que pode servir como incentivo para a ação nos países nos quais o problema é mais sério”, comentou Rodrigo Serrano, especialista em Segurança Cidadã do Banco Mundial.
O relatório revela que apenas pouco mais da metade dos países estudados têm programas para a prevenção da violência juvenil e apenas 22% deles possuem programas para prevenir a violência durante o namoro.
Embora cerca de 80% dos países tenham conjuntos de leis para a prevenção da violência (evitá-la antes que aconteça), apenas metade deles tem mecanismos ou vontade para garantir sua correta aplicação.
Finalmente, o documento recomenda melhorar os programas de prevenção, melhorar a aplicação das leis, garantir o apoio às vítimas, fortalecer a coleta de dados para detectar as regiões, horas e circunstâncias em que acontecem os delitos e estabelecer metas para poder avaliar os progressos em matéria de prevenção da violência.
José Baig é Editor Online do Banco Mundial

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

ABEP2014: A violência no Brasil: Perspectiva ética, política e de gênero

25/11/2014

O XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais recebeu trabalhos com dados consistentes e preocupantes para a sociedade brasileira de forma geral. Coordenada por Mário Monteiro (UERJ) a mesa redonda “A violência no Brasil: Perspectiva ética, política e de gênero” abordou questões como: violência contra a mulher, vulnerabilidade à violência e a proporção de homicídios masculinos no país.

Mário Monteiro (UERJ) introduziu ressaltando as diferentes formas de violência à mulher e possíveis motivos que levam essas mulheres a continuarem com seus cônjuges mesmo nessas condições. A luta das mulheres pelos seus direitos é recente, data basicamente da década de 70. No Brasil têm-se algumas leis que são objetivas e tem contribuído para a redução da violência contra a mulher como a Lei Maria da Penha e a Lei federal 10.778/2003 que estabelece notificação compulsória, no território nacional, dos casos de violência contra a mulher.

Apesar disso, as promessas de uma realidade melhor ainda não se materializaram para as mulheres, adolescentes e crianças do sexo feminino. A distribuição dos óbitos em consequência de agressões as mulheres concentra-se no período de maior fecundidade da mulher, que é dos 20 aos 29 anos, mas começa a ser significativa já no grupo mais jovem de 15 aos 19 anos, sugerindo uma conexão com a violência sexual.

De 2002 a 2006 foram registrados 8.665 óbitos de mulheres de 15 a 29 anos em consequência de agressões, com uma taxa média de 6,8 óbitos por agressão por 100.000 mulheres de 15 a 29 anos. Os estudos de Monteiro ainda mostraram as microrregiões com maiores taxas de óbitos por 100.00 mulheres de 15 a 29 anos. Nas primeiras posições ficaram as microrregiões: Caracaraí, Recife, Penedo, Belo Horizonte, São Mateus, Linhares, Vitória, Macaé, Bacia de S. João. Segundo o autor o que mais impressiona no mapa dos estudos é que as taxas de mortalidade por agressão por 100.000 mulheres, por microrregião, tem uma distribuição bastante diferencial no território nacional.

Um outro fator observado foi a questão da gravidez resultante de estupro. Uma gravidez indesejada pode também levar a um aborto inseguro, realizado em clínicas clandestinas, visto que o aborto é proibido, ou por meio de chás, substâncias causticas e que resultam em mortes, perfuração do útero e esterilidade.

Fátima Cecchetto (Fiocruz) deu suas contribuições dentro da temática de violência por meio de seus estudos das taxas de homicídio de homens no Brasil. Conforme os resultados a proporção de homicídio levando em consideração o sexo no Brasil, no ano de 2010 são de feminino 9% e masculino 91%.

A autora falou também da diferenciação de galeras e quadrilhas onde os homens estão inseridos no Rio de Janeiro. A diferença está nos códigos de comunicação, disposição para matar, disposição para morrer, armamento, conquista de poder. A população masculina morre mais no Brasil e morre para mostrar que são “homens de verdade”, querem ser mais “fortes”, mostrar “poder”. Para finalizar, Fátima afirma que as conquistas sexuais são importantes e entram no lugar da qualidade da relação, levando os homens a buscar grande quantidade de parceiras, independente de qualquer outro tipo de satisfação a não ser a sexual.

CCR

LANÇAMENTO do livro “ABORTO E CONSTITUIÇÃO”

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Onde estão as cientistas?

Pouco espaço, machismo e falta de equidade são alguns dos desafios que as mulheres enfrentam para seguir a carreira acadêmica

postado em 23/02/2015

Gláucia Chaves

Graças a histórias em quadrinhos, filmes e seriados, o cientista está no imaginário das pessoas como um homem excêntrico, descabelado, imerso em cálculos incompreensíveis por nós, meros mortais. Tente, agora, buscar na memória a imagem de uma mulher cientista. Difícil? Para pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, isso se deve à sub-representação feminina em áreas científicas — não apenas nas telas, mas, principalmente, na vida real. O mote do estudo, publicado este mês na revista científica Science, foi responder à pergunta: afinal, onde estão essas mulheres?

De acordo com dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), hoje, no Brasil, há 63.349 doutores bolsistas de mestrado do sexo masculino — 7.075 a mais que do sexo feminino. A maioria delas concentra os estudos em áreas das ciências humanas (10.856) e da saúde (10.088), enquanto eles dedicam-se às ciências sociais aplicadas (7.236), exatas e da terra (6.258). A equipe de psicólogos norte-americanos testou três hipóteses para a falta de estrogênio nos laboratórios: a) mulheres tentariam evitar carreiras que as obrigam a trabalhar muitas horas seguidas; b) mulheres seriam menos capazes de entrar em campos altamente seletivos; e c) mulheres seriam superadas por homens em carreiras que exigem raciocínio analítico e sistemático.

No estudo, os pesquisadores entrevistaram 1, 8 mil estudantes de graduação, pós-doutorado e docentes de 30 disciplinas diferentes. O objetivo principal foi analisar a cultura de diferentes campos do conhecimento. Entre outras coisas, eles perguntaram quais qualidades eram necessárias para que os participantes tivessem sucesso em seus campos de atuação. As mulheres sentiam-se (e eram) subrepresentadas em ambas as áreas: humanas e exatas. Historicamente consideradas inferiores intelectualmente, mulheres que se interessam por campos como física, engenharia, matemática e outras que "idolatram gênios" costumam encontrar resistência. Ao fim do experimento, os pesquisadores chegaram à mesma conclusão das que se aventuram no mundo científico: há poucas mulheres na ciência porque a ciência não dá espaço.

O estereótipo de que elas não têm as habilidades intelectuais necessárias para encabeçar uma pesquisa científica, para os estudiosos, ajuda a explicar a pouca representação delas na ciência. "Não estamos afirmando que ser brilhante ou valorizar quem é brilhante é uma coisa ruim", frisou Andrei Cimpian, um dos psicólogos envolvidos no trabalho. "Também não estamos dizendo que mulheres não são brilhantes ou que ser brilhante não é útil para a carreira acadêmica. O que nossos dados sugerem é que transmitir aos alunos uma crença de que o ‘brilho’ é necessário para o sucesso pode ter efeito diferenciado sobre homens e mulheres que estão tentando seguir essa carreira."

Para Márcia Cristina Barbosa, professora de física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora do CNPq, membro da Academia Brasileira de Ciências e doutora em física, antes de se pensar nas diferenças entre homens e mulheres que explique a desproporção nas ciências exatas, é preciso analisar se há equidade. Márcia explica que na pesquisa em geral e, em particular, em exatas, a produção científica é quantificada com base em algumas variáveis: número de artigos, de citações, parâmetro h (número de artigos com até h citações) e de estudantes formados. Em um mundo com igualdade homens e mulheres, esses índices devem estar no mesmo nível. "Em física, descobrimos em 2005 que esse não era o caso. As mulheres no nível 2 e no nível 1B (primeiros níveis) tinham, em média, mais artigos do que os homens."


Gustavo Diehl


A conclusão veio a partir de um levantamento feito pela professora para avaliar a entrada e saída no sistema e para as alterações de nível em bolsas de Produtividade em Pesquisa, oferecidas pelo CNPq. Entre os dados, a pesquisadora descobriu que, de 2005 a 2010, os homens produziram apenas um artigo a mais que as mulheres. "Pergunto, então, se isso é equidade. Não, isso é igualdade e não há coisa mais injusta que tratar profissionalmente com igualdade quem tem, no mundo privado, tratamento desigual", argumenta. "As mulheres ainda são as responsáveis por administrar o lar, os filhos e os velhos. Como poderíamos esperar uma produção igual em condições desiguais?".

O artigo "Mulheres na física do Brasil: por que tão poucas? E por que tão devagar?", também de autoria de Márcia, mostra que o percentual de mulheres na física é pífio: menos de 15% estão entre os bolsistas do CNPq. Dessas, apenas 5% ocupam o topo. Outra questão, então, vem à tona: por qual motivo seria desejável ter mais mulheres nos postos de maior importância? Afinal, por que a física precisa delas? "Não vou trazer questões como democracia ou justiça. A física precisa de mulheres porque ciência precisa de diversidade", resume a cientista. "Hoje, a ciência se faz em grandes grupos, em grupos que precisam juntar o diferente para gerar o novo."

Valorização profissional, diferença de salários e/ou de tarefas não são questões que incomodam as cientistas. O que atrapalha (ao menos na opinião das pesquisadoras ouvidas nesta reportagem) é justamente a dificuldade em alcançar o topo. Júlia Vasques, biomédica e pesquisadora do Laboratório Sabin, foi vencedora da medalha de melhor trabalho científico da Annual Meeting and Clinical Lab Expo 2013, evento promovido pela American Association for Clinical Chemistry (AACC). Ela endossa a opinião de Márcia Barbosa: há, sim, mulheres na ciência. O problema é onde elas estão alocadas. "Percebo que a participação vem crescendo muito, mas, os grandes chefes da produção científica, principalmente na área da saúde, são homens."


Maternidade sob o microscópio

Ascender em uma carreira que exige constante estudo, produção e aulas transforma-se em missão quase impossível quando também é preciso administrar tarefas domésticas e, sobretudo, a maternidade. A ideia de que ciência e família são duas retas paralelas é amplamente difundida nos corredores da academia. "Escutei muito que mulher que estuda demais não se casa", conta Júlia Vasques. "Existe também algum preconceito quando a cientista está grávida ou quer engravidar. A ciência torna-se incompatível em certos momentos da vida."

A visão machista, contudo, não a incomoda. Júlia ainda não se casou, mas não descarta a possibilidade nem sente medo de deixar a carreira de lado por conta disso. "Sempre senti que os meus parceiros tinham orgulho de mim. Ficava feliz com a forma que falavam sobre mim para a família e amigos. Acho que nenhum homem quer uma mulher medíocre." Inês Staciarini Batista, física, pesquisadora sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e doutora em ciências espaciais atmosféricas, já ouviu poucas e boas entre um tubo de ensaio e outro. "Hoje, não enfrento mais problemas dessa natureza, mas encaro como um desafio grande conciliar carreira, filhos e casa." Ela tem três filhos e 40 anos dedicados à pesquisa e à ciência.


 

Atualmente, a pesquisadora confessa que não faz ideia de como conseguiu dar conta de tudo. Competitividade, participação em congressos e produção de artigos e pesquisas quando se tem filhos são alguns motivos que, para ela, fazem com que muitas colegas retardem a carreira ou mesmo abortem o desejo de serem cientistas. "Esse é um ponto mais complicado para nós, mas nada que não possa ser compensado quando as crianças estiverem maiores", pondera. A fórmula mágica, como sempre, é persistir.

Na visão de Inês, o que afasta as mulheres da carreira científica, contudo, não são horários prolongados, a quantidade de artigos científicos ou a obrigatoriedade de produzir tanto quanto os homens e ser mãe ao mesmo tempo. O que falta é despertar o interesse delas para esse mundo. "Falta oportunidade de ter contato, na escola, com o que essas carreiras exigem da pessoa", opina. "Tornar a matemática atrativa para meninas, por exemplo, seria um dos caminhos.

Norma Teresinha Oliveira Reis formou-se em pedagogia, mas resolveu enveredar por outros caminhos após a graduação. Hoje, é mestra em Administração Espacial pela International Space University. Passou três meses em estágio na Agência Espacial Americana (Nasa). Ao longo de todo esse tempo, notou que, em função do gênero, recebia "um tratamento mais condescendente". "Os homens tendem a valorizar mulheres submissas em detrimento das mais competitivas", analisa. "Aquelas que demonstram um perfil mais agressivo são, de certa forma, discriminadas." Além da mentalidade machista que ainda permeia a ciência, Norma acredita que a própria autoestima das mulheres não trabalha a favor das que querem ser cientistas. "Em muitos casos, elas não acreditam no próprio potencial e acabam se excluindo. Um exemplo disso é que apenas cerca de 20% dos alunos de física são do sexo feminino."

A falta de políticas públicas efetivas voltadas para o incentivo da mulher na ciência e mesmo ações compensatórias — como bolsas de estudo e prêmios — também reforça esses números, na opinião de Norma Reis. "O grau mais alto da pesquisa do CNPq tem apenas 3% de pesquisadoras de alto nível", argumenta. "O Estado deveria oferecer creches, instituições para ajudá-las a fazerem ciência e ter filhos ao mesmo tempo."


Entrevista // Christina Helena Barboza

Muito a conquistar

Christina Helena Barboza é doutora em história e pesquisadora titular da Coordenação de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTI)



Qual foi o papel feminino na história da ciência?

Desde a emergência da ciência moderna, no século 17, até a década de 1970 pelo menos, a verdade é que as mulheres desempenharam papel secundário. Claro que há variações conforme as áreas do conhecimento e os países, e podemos citar várias exceções, mas essa afirmação pode ser comprovada por um dado significativo: a primeira vez que uma mulher foi admitida em uma das mais antigas e prestigiosas instituições científicas, a Academia de Ciências de Paris, foi em 1979!

Quais mulheres mais se destacaram em campos científicos até hoje? Quais estão em destaque atualmente?

A resposta a essa pergunta sempre terá um cunho muito subjetivo, mas, para muitos, a mulher que merece um destaque especial na história das ciências é Marie Curie (1867-1934). No início do século 20 — portanto em um contexto marcado ainda por muita discriminação —, ela conseguiu a proeza de receber dois prêmios Nobel (o primeiro deles, em 1903, de Física, com o marido Pierre e Henri Becquerel, pelas pesquisas em radioatividade; e o segundo, em 1911, de Química, sozinha, pela descoberta dos elementos rádio e polônio). Se tomarmos o Prêmio Nobel como um indício de destaque na carreira científica, a grande maioria das mulheres que se destacaram ao longo do século 20 não trabalharam em física, química ou matemática, áreas ainda hoje dominadas pelos homens. Aturam mas na área da medicina, como Gery Theresa Cori (1947), Barbara MacClintock (1983), e Gertrude Elion (1988). Outras cientistas frequentemente lembradas trabalharam em campos de menos prestígio no mundo acadêmico, também mais abertos à participação feminina, como Margaret Mead (antropologia), Jane Goodall (primatologia), Melanie Klein (psicologia), e Rachel Carson (biologia e ecologia).

Carreiras que exigem mais horas de trabalho, como a de um pesquisador, afastam as mulheres ou o próprio mercado as descrimina?

A carreira de pesquisador, na medida em que se progride, não exige apenas o trabalho de pesquisa (e o de ensino, que quase sempre vem junto) em si, mas um esforço de negociação com os pares e demais agentes sociais em busca de apoio em diversas formas (recursos financeiros e humanos, publicações). Isso implica participação em eventos, bancas, reuniões, muitas viagens, e, sob esse ponto de vista, elas têm mais dificuldade de acompanhar o ritmo dos homens.

Quais são os principais problemas enfrentados por elas? São os mesmos colocados aos homens?

Os obstáculos são os mesmos, pelo menos na área de história (das ciências). Acho que em outros campos do conhecimento, como a matemática, as engenharias e as ciências exatas de um modo geral, as questões são maiores, já que se deve acrescentar a discriminação de gênero, que ainda acontece. E o que é pior, acontece de maneira velada. Recentemente, conversei com uma astrônoma importante no cenário brasileiro, cujo nome prefiro não citar, que relatou ter ouvido de um colega que a bem-sucedida carreira dela no exterior tinha de ser atribuída aos contatos conseguidos pelo marido, também cientista.

O que falta para que elas tenham o mesmo reconhecimento no mundo científico?

Investimento maior na educação básica, que venha acompanhado de mudança na visão da ciência. Enquanto prevalecer a ideia de que a ciência é atividade para inteligências excepcionais e que o sucesso depende mais do talento individual do que do esforço coletivo, será difícil avançar.