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sábado, 29 de abril de 2017

Menos gritos, mais silêncio

Reflexo da falta de autocontrole ou da nossa dificuldade de comunicação, o grito costuma gerar mais distúrbios em nossas relações do que imaginamos

Gustavo Ranieri
26/04/2017
No princípio não havia diálogos, tampouco frases completas ou, sequer, uma primeira sílaba balbuciada. Tudo eram risadas, choros de fome ou de sono e gritos, muitos gritos. Decerto não lembramos, mas, com 3 ou 4 meses de vida, deixamos de lado o silêncio para treinar aquilo que estávamos maravilhados em descobrir: as cordas vocais. Tudo era diversão, às vezes uma maneira de chamar a atenção e até um pouco de manha. Depois, o grito entrou estranhamente em nosso dia a dia. Lá estava ele nas brincadeiras com outras crianças, nas cócegas que recebíamos ou, como não, em uma ou outra reprimenda de desespero de nossos pais ao nos verem com o dedo na tomada ou próximos demais de um parapeito de janela, por exemplo. Mais tarde, já crescidos, percebemos que os gritos estariam sempre em toda a parte. Há o grito de gol; há o de saudade, quando reencontramos alguém que nos é muito querido; tem aquele que soltamos frente a uma desejada conquista; o que nos acompanha em uma volta na montanha-russa; o que precisamos dar para avisar o motorista do ônibus que esqueceu de parar no ponto que pedimos; e há até um grito  curioso, descobri eu, que é o kiai, usado em lutas de algumas artes marciais, como o judô, para o atleta se concentrar melhor em força e técnica. Mas há também o grito de dor; o de agonia diante uma chance perdida; o que vaza das janelas dos carros no trânsito caótico das grandes cidades – e a buzina, é o que senão um grito?; e o pior deles: o grito que soltamos contra alguém, o de incompreensão e intolerância. Este último, infelizmente, nos habituamos a presenciar no polarizado cotidiano do nosso país e do mundo. Diante das crises sociais e políticas, populações abandonaram a boa e velha conversa e passaram a manifestar o ódio uns contra os outros, seja na rua, seja no insulto que é escrito, gritado em páginas na web. O Facebook, por exemplo, se tornou um campo de batalha, rompendo com posts inflamados a relação daqueles que se gostam (gostavam?) e até dos que fazem parte de uma mesma família. Mas, afinal, por que gritamos tanto? E para quê? Antes de responder a essas questões, é preciso entender como o grito é assimilado em nossa mente. Em 2015, um estudo liderado por David Poeppel, professor de psicologia e neurociência da Universidade de Nova York, concluiu que a fala comum sofre pequenas variações de volume, algo em torno de 4 a 5 hertz por segundo, enquanto com o grito a taxa fica entre 30 e 150 hertz por segundo. Como é rápida demais a modalização, os gritos não são interpretados no cérebro como os demais barulhos, mesmo os mais bruscos, sendo recepcionados diretamente pelas amídalas, estrutura cerebral responsável por processar emoções e “ativar” o alarme do medo e do perigo. Diante disso, o psicólogo clínico Artur Scarpato ressalta que, quando falamos de grito de raiva, no caso da intolerância, ele “pode ser ao mesmo tempo a descarga de uma tensão emocional interna e uma forma de afetar o outro, de assustá-lo, paralisá-lo ou intimidá-lo”. A mesma descarga emocional acontece com o grito de medo, quando a pessoa acaba por comunicar como se sente, podendo chamar alguma ajuda, por exemplo. Mas quem grita frequentemente, de modo descontrolado, ressalta o especialista, demonstra incapacidade de comunicação eficiente. “Os gritadores tendem a ser pessoas dominadas internamente pelo medo e por uma raiva impotente, geralmente decorrentes de traumas não resolvidos. Essas pessoas tendem a interpretar cada discordância, cada frustração como ameaça pessoal, reagindo com um grau de raiva desproporcional à situação. O gritador descontrolado crônico revela uma fragilidade psicológica, com dificuldade de tolerar frustração, tomando tudo como se fosse um ataque pessoal, não sabendo lidar bem com o diferente, com a alteridade. Em vez de entrar em contato com seus sentimentos de rejeição, inadequação e insegurança, a pessoa ataca, mascarando os sentimentos insuportáveis e muitas vezes não conscientes que despertaram a sua raiva”, explica o especialista. Psicóloga e especialista em acupuntura pela Shandong University of Traditional Chinese Medicine e pelo Centro de Enseñanza de la Medicina Tradicional China, Analyce Claudino destaca que cada um de nós organiza uma ideia de si mesmo e do mundo com base em nosso fundo de experiências. Porém, uma vez que algo ameaça essa ideia, as reações são inevitáveis,  alternando apenas a forma e a intensidade com que elas se apresentam. “Quando chegamos a extravasar um grito, estamos no limite de uma defesa e, ao mesmo tempo, atacando para não sermos ameaçados. As consequências físicas e mentais disso começam a partir do momento que a pessoa se sente ameaçada; ela precisa se defender e todo organismo se mobiliza para um ataque ou uma possível fuga, e o grito muitas vezes é o ataque”, diz Analyce. Tal ataque inflama em alguns casos até o ambiente de trabalho. Muitos de nós, provavelmente, já tiveram de lidar com chefes cuja manobra de conduta era falar aos berros ou mesmo usá-los como uma perigosa e delicada estratégia de motivação. Se alguns colaboradores de uma empresa se sentem mais motivados e competitivos em meio a um ambiente desse tipo, a grande maioria, lembra Scarpato, fica inibida, resultando em queda de performance e paralisação das ações. “No ambiente de trabalho, geralmente os gritos constantes levam a uma diminuição da produtividade e, no longo prazo, a absenteísmo e pedidos de demissão por problemas relacionados ao estresse emocional”, afirma.

E o corpo, como reage?
 Como as Leis de Newton continuam valendo, toda ação gera sempre uma reação. O nosso corpo que o diga. Evidentemente, algumas reações são mais visíveis, enquanto outras demoram a ser percebidas. Ou então, quando se mostram, o resultado é preocupante por demais. E, como estamos falamos do grito, especialmente do tipo que vem da raiva, do descontentamento com alguma coisa ou situação, da falta de paciência, o reflexo dele no corpo será perceptível em algum momento, de alguma forma. Dentro da medicina tradicional chinesa, a madeira, o fogo, a terra, o metal e a água são os cinco elementos básicos que formam o mundo material, do qual os seres humanos são integrantes. A cada um dos elementos, baseados na filosofia de Wu Xing, é designado um fator yin (negativo) ou yang (positivo). No caso da raiva, ela é uma emoção yang, ligada ao movimento madeira, cujas características comportamentais são a capacidade de planejamento, criatividade e imaginação. “Quando estamos sob uma intensa raiva, isso implica uma alteração no movimento madeira e a desorganização da energia desse sistema. Assim, as repercussões podem aparecer no comportamento, como por exemplo nas alterações do sono, falta de criatividade e rigidez psíquica, mas também na expressão física, como as contrações musculares, já que a madeira governa os músculos e tendões”, diz Analyce Claudino, que, no entanto, enfatiza que nada é tão simples e linear, uma vez que todos os movimentos estão inter-relacionados, se comunicando, transferindo excessos e faltas entre si, sempre em uma tentativa de autorregulação. “Dessa forma, essa desorganização do movimento madeira e essa raiva podem aparecer em qualquer outro lado, em outros movimentos e nos sistemas relacionados a eles. Esse sistema estando desequilibrado vai repercutir no organismo como um todo e, dependendo das predisposições individuais, dos órgãos de choque, das constituições, pode gerar inúmeras variações de sintomas e impactos significativos na qualidade de vida e de autorregulação das pessoas. Então é possível, por exemplo, que, muitos anos depois de uma situação de explosão de raiva, a pessoa apareça no consultório com determinadas queixas e, na investigação, indo para trás, buscando quando os sintomas realmente começaram, cheguemos a acontecimentos assim que geraram um impacto e uma marca tal que repercute ainda hoje”, conta a especialista.

Entre pais e filhos 
Ok, nem sempre fomos os mais comportados. Quantas vezes fizemos travessuras, mesmo infringindo o que nossos pais nos disseram? Ou então, ousamos mostrar a língua para eles, em um misto de rebeldia e demonstração de que podíamos (doce ilusão!) tomar conta de nosso nariz, ainda que só tivéssemos 7 ou 8 anos? Alguns de nós, inclusive, continuam fazendo uma bagunça enorme, mesmo na fase adulta da vida. Já as pessoas que se tornaram pais, como é o meu caso, encararam ou encaram um dos papéis mais fundamentais e desafiadores: o de educadores. Além do amor, cabe às mães e aos pais criar ambientes domésticos propícios para o crescimento saudável dos pequenos, oferecendo harmonia e liberdade. Porém, uma busca em grupos específicos na internet revela um grande número de pais e mães que relatam perder o controle com os filhos e que usam o grito como forma de conter um comportamento que consideram indesejável. Acontece que a comunicação é um sistema muito complexo. Nem sempre o que um fala é o que o outro escuta. E gritar não amplia a percepção do outro, causando geralmente o efeito contrário, como alerta Teresa Amorim, psicóloga clínica, diretora do Instituto Carioca de Gestalt-Terapia e apresentadora do Programa Vida, no YouTube. “O grito revela que existe algum tipo de conflito, que há talvez alguma coisa mal resolvida naquela relação. Mas gritar só vai gerar terror nas crianças. Porque elas não vão parar o que estão fazendo porque estão compreendendo a comunicação, mas porque estão temendo aquilo”, explica Teresa. O resultado, aponta a psicóloga, é uma relação tensa e distante. Todavia, lembra ela, é sempre necessário analisar em que nível de estresse os pais estão, como está o ambiente em casa, que tipos de situação eles estão atravessando. Em alguns casos, os pais foram criados também em ambientes turbulentos, na base da gritaria e, consequentemente, acabam por projetar o mesmo tipo de cenário em seus lares, acreditando que é dessa maneira que se educa. “Mas não será possível uma relação saudável assim. Não é difícil encontrar mãe, pai e filhos que acham que o outro lado só entende quando se berra. Mas será que esse grito é realmente para o outro, ou é um barulho interno que você tem? As pessoas estão cheias de barulhos internos. Talvez esse grito seja para a própria pessoa, dando um basta para ela mesma, mas quem está ali acaba recebendo essa projeção, que não deixa de ser violenta, pois o grito é uma violência verbal, um abuso emocional.” Já Artur Scarpato acredita que o grito intencional, quando usado como estratégia pelos pais para lidar com crianças pequenas, pode ser um recurso útil se o adulto precisa interromper um comportamento que poderia ser perigoso para a própria criança. Pelo fato de ela ter uma capacidade menor de autoinibição, esse recurso tem sua serventia. Ele lembra que à medida que o ser cresce o grito nesse tipo de situação tem de ser abandonado, sendo substituído apenas com o dizer de palavras com seriedade. “No entanto, o abuso do recurso do grito pode levar a criança a crescer inibida, assustada e carregada de raiva impotente por não ter conseguido se defender das agressões do adulto.”

Tudo é diálogo
 Infelizmente, a mesma crise sociopolítica mencionada no início deste texto e que aflige parte do globo não será solucionada como em um passe de mágica. Tudo leva o seu tempo de reorganização, mas não precisamos perpetuar a intolerância para nos posicionarmos com palpites e opiniões. O pior grito é o gratuito, provocado apenas para atingir o outro. A monja zen-budista Coen Roshi, ou simplesmente Monja Coen, conta que, em sua visão, por estarmos desenvolvendo atitudes muito individualistas, precisamos gritar e falar alto para alcançar o outro. “Na verdade, somos um só corpo e uma só vida, com tudo que existe. Entretanto, as pessoas desiludidas (acreditando na ilusão de estarem separadas) consideram-se incompreendidas, tendo de defender seus pontos de vista, lutar ou morrer por uma causa. Precisam defender a imagem que criaram de si mesmas. Uma imagem distorcida, um jogo de poder. Quem grita mais alto ganha? Nem sempre. Gritar é fácil. Nos momentos de desestabilização emocional, ser capaz de retornar ao eixo, de se reorganizar e ouvir para entender de onde vem a agressão é um treinamento necessário e incessante”, pondera a monja. E, se o contrário do grito é o silêncio, peça rara em nosso dia a dia e indispensável para o recarregar de energias, o caminho do meio é o diálogo. Só com ele podemos fomentar a paz e a compreensão, ainda que as ideias dos outros sejam contrárias às nossas. Afinal, qualquer democracia só se constrói com a conversa, por mais difícil que seja. “Dialogar depende de saber ouvir. Poder estar absolutamente presente para a pessoa ao seu lado, à sua frente. Presença absoluta. Sem objetivo de ganhar a discussão, sem querer defender seu ponto de vista, sem querer lutar – matar ou morrer por seus ideais ou pareceres. Afinal, nossos ideais e pareceres variam no transcorrer da vida. Além dos ideais e dos conceitos está a realidade. Estar presente no presente. Ouvir para compreender. Fazer-se ouvir para ser compreendido. Com menos gritos e palavras rudes, com mais ternura e palavras suaves podemos transformar uma sociedade violenta e agressiva em uma sociedade mais justa, menos violenta e mais amorosa”, pede a monja. E eu, do meu humilde lado, só posso engrossar o coro: “Menos grito, por favor!”. 

GUSTAVO RANIERI é jornalista, pai de primeira viagem, e se arrepende de todas as vezes em que, infelizmente, só soube gritar.

Mulheres se unem e lançam aceleradora de projetos para mães

Projeto B2Mamy auxilia mães empreendedoras a desenvolverem negócios rentáveis

Letícia Gerola
19/04/2017
Em 85% das empresas brasileiras, menos da metade das funcionárias retornam à vida profissional após a licença-maternidade. A pesquisa, realizada pela consultoria Robert Half, reflete a realidade de muitas mulheres no país, que não conseguem conciliar a maternidade à vida profissional e acabam recorrendo ao empreendedorismo como forma de geração de renda e flexibilização de horário. Foi com esse dado em mãos, somado ao nascimento de seu filho, que a empresária Dani Junco decidiu se unir a outras 4 profissionais e criar a B2Mamy, primeira aceleradora de projetos com foco em mães empreendedoras. O projeto tem como objetivo impulsionar e consolidar negócios de mulheres que vivem a realidade de sair do mercado de trabalho depois de ter filhos, mas que não perderam a vontade de trabalhar.
                Com a experiência das sócias na mentoria de empresas Startups, a B2Mamy criou uma metodologia de aceleração em uma trilha que dissemina informações essenciais para empreendedoras, preparando as mães para apresentá-los a investidores e norteando as ações estratégicas do seu negócio. “Quando não temos filhos, já é bem difícil trabalharmos com algo que não gostamos e não acreditamos. Quando nos tornamos mães, cada segundo longe dos nossos filhos tem que fazer muito sentido”, afirma Dani Junco.
                O intuito do programa não é só orientar as mães que tem ideias de negócios, mas também trazer investimento para impulsionar de forma sustentável, introduzindo essas mulheres ao mundo das startups e dando a elas oportunidade de ascensão profissional.  “Acreditamos que uma mãe pode encontrar um caminho de equilíbrio entre sucesso profissional e participação ativa na educação e criação dos filhos e é para isto que trabalhamos”, explica Dani.
B2Mamy START
Quando: 27/04/17
Local: YelloHello - Rua Arthur de Azevedo, 560 – Pinheiros – São Paulo/SP
Inscrições aqui 

OS EXCESSOS DO TURISMO

Entrevistamos Elizabeth Becker, autora de "Overtourism", sobre as mudanças sociais e ambientais promovidas pelo avanço do turismo, a maior indústria do mundo

POR GAÍA PASSARELLI 26.04.2017

Elizabeth Becker é uma premiada repórter norte-americana que, entre outras coisas, cobriu o genocídio em Ruanda e as primeiras eleições democráticas da história da África do Sul. Ela foi uma das únicas repórters ocidentais a entrar no Camboja durante o período do Khmer Vermelho e escreveu When the War Was Over, livro essencial sobre os conflitos no Sudeste Asiático na segunda metade do século XX.

E o que ela tem a ver com viagem? 

Becker também é autora de Overbooked: The Exploding Business of Travel and Tourism, uma pesquisa minuciosa das mudanças sociais e ambientais promovidas pelo avanço do turismo, a maior indústria do mundo. “É uma reportagem meticulosa e por vezes perturbadora da indústria do turismo e sobre como ela tornou o mundo menor, nem sempre melhor”, segundo análise do New York Times.

O livro, lançado em 2012, narra o impacto do turismo em países como Tailândia e França. Trata a viagem menos como um direito e mais como o que realmente é: um produto. Não é uma leitura nem fácil nem agradável mas é, na essência, uma pesquisa sobre como o privilégio de viajar impacta a poluição dos oceanos, a demarcação de terras e a indústria da prostituição mundo afora. 

Becker respondeu minhas perguntas por email no começo de abril:

Você pode falar um pouco sobre como conduziu a pesquisa e encontrou dados? Usando a pesquisa básica de um historiador e a reportagem de um jornalista. Encontrei volume considerável de dados sobre, por exemplo, a poluição da água e do ar. Li livros sobre impacto do turismo em países específicos, entrevistei especialistas para descobrir o que eles sabem e entender o que mais eu deveria pesquisar. E visitei os países mencionados para ver se a pesquisa batia com a realidade. Como esse é um livro sobre a indústria do turismo, também entrevistei pessoas da indústria, em todos os níveis. E como o turismo afeta quem vive nos destinos, também entrevistei oficiais dos governos, artistas, especialistas em transporte, trabalhadores, ambientalistas, urbanistas. Isso significa que li estudos acadêmicos e documentos oficiais e depois fui atrás de profissionais específicos para confirmar os dados. 

Como não há história do turismo global, ou mesmo uma investigação do turismo no mundo, tive que descobrir onde conseguir informações. Comecei no United Nations World Tourism Organization, em Madrid.

Essencialmente, precisei pesquisar a história de cada país para entender onde o turismo entra. Alguns exemplos de surpresas na minha pesquisa: fui a primeira pessoa a escrever sobre o papel do [secretário-geral do Partido Comunista Chinês entre 1978 e 1992] Deng Xiaoping no uso do turismo para a abertura da China. Notei isso entrevistando alguns dos primeiros agentes de turismo estrangeiros que foram à China e usei as declarações para realizar uma pesquisa extensa na agência chinesa para o turismo local. No capítulo sobre a França, como os franceses nunca escreveram um manual sobre seu incentivo ao turismo, tive que procurar estrangeiros. Meu gancho foi descobrir que o U.S. Marshall Plan ajudou a financiar o revival do turismo na França após a Segunda Guerra Mundial.

E, sobre os cruzeiros, não só obtive relatórios extensos de organizações governamentais dos EUA, mas como viajei em cruzeiros e entrevistei de garçons à bordo ao CEO da (gigante do segmento) Royal Caribbean, na sede da empresa em Miami.

Que tipo de mudanças positivas aconteceram na indústria entre a publicação de Overbooked e hoje? Muita coisa. O principal é que pessoas estão começando a pensar em como a liberdade de viajar é algo que deve ser defendido. Muitos turistas estão pensando em destinos sustentáveis. Mais turistas estão procurando experiências autênticas e aventuras.

Existem exemplos de grupos e empresas de turismo, novos ou já estabelecidos, que não apenas estão melhorando seus produtos mas melhorando as vidas das pessoas e o ambiente nos destinos. Na Europa, tenho observado como Barcelona está se recuperando do excesso de turistas. Na América do Sul tenho visto como grupos no Chile estão usando o turismo para proteger a vida selvagem e o meio ambiente.

Outro desenvolvimento é o aumento de turistas que querem que a viagem seja mais sobre experimentar o que é verdadeiros sobre um lugar e não algo artificial, criado como experiência turística. Governos estão mais alertas em relação ao poder que o turismo tem para melhorar ou destruir sua imagem — o que na América é chamado de "soft power of diplomacy".

E em relação a avanços destrutivos, há exemplos recentes que chamam a atenção? Existe uma nova percepção de que o turismo pode tornar um lugar insustentável e que o custo dessa insustentabilidade é alto demais. Hoje existe até uma palavra para isso: overtourism, que algumas pessoas associaram com Overbooked.  Também é importante o confronto entre o Airbnb e as vizinhanças onde o serviço é extremamente popular. Cidades como Nova Iorque e Vancouver estão tentando entender como permitir locação de curto prazo sem destruir ou descaracterizar áreas residenciais ou colaborar para o aumento dos aluguéis. Tenho certeza que um formato saudável será encontrado, mas isso requer negociações com as comunidades.

“O elemento destrutivo mais recente no turismo é o nacionalismo de países como os EUA, que leva ao estreitamento de fronteiras”
Elizabeth Becker

E, claro, o elemento destrutivo mais recente é o nacionalismo de países como os EUA, que leva ao estreitamento de fronteiras. As viagens aos EUA já estão mais restritas porque as pessoas estão com medo das regras ou apenas não querem ser mal tratadas na entrada ao país. Nós nos acostumamos às fronteiras abertas desde o fim da Guerra Fria. O Brexit é outro exemplo de fronteiras fechando.

“Colocar um fim no turismo sexual requer um esforço de nível nacional para reforçar a lei, o que afeta tanto hotéis quanto turistas”
Elizabeth Becker

Você dedicou parte do livro ao turismo sexual, com foco no Sudeste Asiático. Sabemos que o Brasil é um destino popular para quem procura essa atividade no mundo, mas o tema é pouco abordado localmente. Você pode falar sobre sua percepção da situação no Brasil? Eu não poderia falar sobre o problema do turismo sexual no mundo todo. Isso iria requerer um livro inteiro. Mas o Brasil sofre de problemas similares aos dos países do Sudeste Asiático. É muito fácil estar na margem da lei e colocar meninos e meninas menores de idade num círculo de prostituição. E é muito fácil pagar policiais e outros oficiais da lei. Colocar um fim a isso requer um esforço de nível nacional para reforçar a lei, o que afeta tanto hotéis quanto turistas. O Brasil não está disposto a mexer nisso.

O “greenwashing” é realidade em muitos mercados e o turismo não é diferente. Como as pessoas podem ser mais conscientes em relação a como viajam? Que tipo de ferramentas temos hoje para que o turista médio pesquise o impacto das companhias que escolhe quando viaja? Fazer a lição de casa. Turistas que querem viajar com responsabilidade precisam se tornar cientes de organizações que certificam destinos e empresas sustentáveis. Um bom lugar para começar a procurar é o Global Sustainable Tourism Council (Conselho Sustentável para o Turismo Global). Apenas lendo o site você já consegue entender seu impacto local, é uma boa educação. Depois, procure os certificados e cheque grupos ligados ao meio-ambiente. O Friends of the Earth (Amigos da Terra) publica um anuário chamado “Cruise Report Card” que é leitura essencial para antes de se decidir por viagem de navio cruzeiro. O World Wild Fund e a National Geographic também são muito úteis. Se comprometa com organizações que se provaram confiáveis e peça a elas mais informações se for necessário. Por fim, estude sobre os destinos e fale pelo menos um pouco da língua — será mais difícil te enganar assim. 

A CIDADE IDEAL DAS MULHERES

Problemas envolvendo mobilidade, acessibilidade e segurança atinjam a todos, mas de forma mais intensa as mulheres. Veja propostas para repensar o planejamento urbano, sob o ponto de vista feminino

POR CAROLINA ITO 24.04.2017

Especialistas na área de arquitetura e planejamento urbano vêm discutindo sobre as diferenças no modo como homens e mulheres usufruem do espaço das cidades. Eles mostram que problemas envolvendo mobilidade, acessibilidade e segurança pública, embora atinjam a todos, atingem as mulheres de modo mais intenso.

São Paulo, como uma metrópole modernista, prioriza a lógica do “ir e vir do trabalho”, obrigando quem mora em regiões afastadas do centro a se deslocar por horas em um trânsito caótico. Esse cenário se torna pior em relação à maioria das mulheres que, além do trabalho produtivo, são responsáveis pelo trabalho reprodutivo. Elas realizam trajetos que não integram a lógica da metrópole, como ir ao mercado, levar os filhos à escola, ao médico, entre outras tarefas ligadas ao cuidado da família.

A pesquisa “Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero”, desenvolvida por Haydée Svab, engenheira e mestre pela Poli-USP, é prova disso. Ela utilizou pesquisas “Origem-Destino”, publicadas pelo Metrô paulistano, entre 1977 e 2007, com intervalos de dez anos, e chegou a algumas conclusões:

Em uma cidade “carrocrata”, como São Paulo, a mobilidade das mulheres parece estar em desvantagem. A lógica da velocidade também transforma o trânsito em algo hostil para pessoas com mobilidade reduzida, bem como para gestantes e mães que carregam filhos pequenos.

Marina Harkot, mestranda pela Faculdade de Arquitetura da USP e membro do Grupo de Trabalho de Gênero da Ciclocidade, considera que a lógica do planejamento urbano, somada às opressões de gênero, raça e classe social, dificulta a mobilidade das mulheres.

Os problemas se tornam piores em relação às mulheres negras de periferia, conta Joice Berth, arquiteta e urbanista, que pesquisa sobre questões raciais, de gênero e direito à cidade. “A gente tem a lógica da ‘Casa Grande e Senzala’ transposta para o desenho das nossas cidades. No caso de São Paulo, os incômodos e descasos ficam nas bordas, nas periferias. Isso foi premeditado pelas políticas higienistas, no período pós-abolição e início da revolução industrial no Brasil”.

Medos cotidianos
Outro problema cada vez mais visível na mídia e em campanhas nas estações de metrô e ônibus é o assédio no transporte público. Em 2015, um caso ficou famoso nas redes sociais, em que uma garota adolescente foi ameaçada de estupro coletivo dentro de um vagão da linha vermelha do Metrô. Ela entrou em estado de choque e foi levada à Sala de Supervisão Operacional, onde apenas a instruíram a depor na polícia.

Algumas companhias de metrô, como as de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife, adotaram o modelo do “vagão rosa”, permitindo apenas a entrada de mulheres em um vagão sinalizado, nos horários de pico. A medida foi criticada com o argumento de que separar homens e mulheres não impede que o assédio continue ocorrendo em outros espaços.

Os obstáculos não aparecem apenas nos meios de transporte, mas também, em um simples trajeto a pé. Rua deserta e sem iluminação adequada é um sinal de alerta para que as mulheres não transitem em determinados lugares, o que obriga a mudança de trajeto ou maior gasto com transporte para evitar situações favoráveis a assaltos e estupros.

Celia Ferreira da Silva, 40 anos, cuida sozinha de 3 filhos e mora em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo. Ela pega três conduções por viagem para chegar às casas onde trabalha como diarista, no centro de São Paulo.

A cidade e o culto ao falo
Joice Berth considera que a própria arquitetura da metrópole informa o quanto ela é masculina. As conhecidas “curvas do Niemayer” e os prédios construídos com formato fálico poderiam transmitir informações que objetificam a mulher e favorecem o assédio. Outro aspecto que pode passar despercebido é o de que a história das mulheres que atuaram na formação da cidade parece ter sido apagada.

Para repensar a cidade
Em fevereiro de 2017, a ONG UPWIT (Unlocking the Power of Women In Technology), em parceria com o Coletivo Mola, realizou o evento “Cities for Everyone”, no Red Bull Station, em São Paulo, para pensar como as cidades poderiam ser mais adequadas às necessidades das mulheres. Fizemos um resumo das principais soluções discutidas durante o evento.

Soluções na prática
Um grupo francês começou a levantar os problemas enfrentados por mulheres que moram em Paris, em 2015, e disso surgiu a ONG Womenability, nome que remete ao conceito de sustentabilidade, só que com foco na vida das mulheres.

A ONG já percorreu mais de dez países e prioriza a visita a cidades que sejam governadas por mulheres, conta Gabriel Odin, um dos coordenadores do projeto, em entrevista feita por Skype.

Um exemplo interessante, que combina tecnologia e ações no off-line, é o projeto Safecity, desenvolvido na Índia, que, além de mapear casos de violência de gênero, orienta as mulheres a participarem ou promoverem campanhas para combater o problema, num processo de empoderamento feminino. Odin acredita que a tecnologia dos aplicativos precisa ser acompanhada de ações na esfera pública. “Os homens podem continuar praticando assédio, a única diferença é que as mulheres poderão reportar os casos em um aplicativo”.

A relação das mulheres com a cidade tem sido discutida por diversos grupos em São Paulo, como o Grupo de Estudos de Gênero do Sindicato de Arquitetos, o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) e, a nível nacional, o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil).

As discussões sempre esbarram no problema da falta de mulheres atuando nos governos e na gestão do planejamento urbano. Sem elas, as políticas públicas podem continuar sendo pensadas na perspectiva masculina – em geral, por homens brancos, heterossexuais, de classe média ou alta. A esperança é que futuras gestoras possam implementar políticas que lidem com a diversidade de gênero, classe e raça, presente entre os que vivem na grande "paulicéia desvairada".

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Mulheres usam hashtag no Twitter para relatar casos de relacionamentos abusivos

  • 11/04/2017
Mariana Tokarnia – Repórter da Agência Brasil

hashtag #EuViviUmRelacionamentoAbusivo está entre os tópicos mais comentados no Twitter nesta terça-feira (11). São milhares de relatos de abusos, agressões físicas e psicológicas a mulheres, e também homens, que evidenciam situações de abuso presentes, às vezes, em pequenas atitudes que não podem deixar de ser notadas.
"Eu vivi um relacionamento abusivo duas vezes", diz uma das usuárias da rede social. "Na primeira, eu era agredida fisicamente. Na segunda, psicologicamente. Nenhum dos relacionamentos me fez bem. E sair foi a parte mais difícil. Depois de negar o que eu passava, finalmente enxerguei o que acontecia. Duas vezes. Em ambas, eu era colocada como a louca, a desequilibrada. E pior, eu defendia a pessoa."
Em outro comentário, uma mulher lembra os abusos sofridos: "Me empurrava, gritava, por mais de uma vez tentou me socar. Depois, chorava igual a um bebê. E os amigos diziam; 'a culpa é de vocês dois, porque vocês brigam'."
Ehtre os muitos relatos, há descrições de relações que acabavam levando as pessoas envolvidas à paranoia: "Fui vigiada e seguida, tudo que eu fizesse, tinha alguém que ele mandava para olhar e contar tudo depois."
As situações aparecem também em comentários feitos pelos companheiros das mulheres, que à primeira vista podem parecer inocentes. "Eu vivi um relacionamento abusivo quando disse que cortaria o cabelo, e ele reagiu: "eu mato, se vc [você] fizer isso". Em outro comentário, uma usuária diz que "quando estava com TPM [tensão pré-menstrual], ele se recusava a falar comigo porque não queria lidar com as minhas 'frescuras'".
Para algumas pessoas, pode parecer absurdo a vítima se manter em uma relação abusiva, mas um dos depoimentos mostra a dificuldade que é sair desse tipo de relacionamento. "No começo é sempre às 10 mil maravilhas, a gente pensa que vai voltar a ser como era no começo, é horrível a sensação de estar presa a alguém que tu amas, mesmo essa criatura te deixando no fundo do poço."
"Violência doméstica não é só agressão física. É mais difícil escapar da agressão psicológica", diz outra usuária da rede social.

Hashtag
hashtag #EuViviUmRelacionamentoAbusivo começou a ser usada nas redes sociais depois de um caso de abuso ocorrido no programa Big Brother Brasil, da TV Globo. Um dos participantes do reality show foi expulso ontem (10) do programa, acusado de agredir a moça com quem mantinha relacionamento amoroso dentro da casa. Diversos movimentos, que buscam conscientizar as mulheres sobre relacionamentos abusivos, passaram a usar a mesma hashtag(expressão que traz uma palavra-chave sobre determinados assuntos com o símbolo #) em redes sociais.
Esta não é a primeira vez que uma campanha virtual contra abusos ganha dimensão. Na semana passada, mulheres se uniram sob o mote "Mexeu com uma, mexeu com todas", na campanha que surgiu após denúncia de assédio do ator José Mayer à figurinista Susllem Tonani no mesmo canal de televisão, que mobilizou também milhares de pessoas nas redes.
Segundo a cofundadora do coletivo Mete a Colher, Renata Albertim, campanhas como essas têm muita repercussão e podem ajudar mulheres que vivem relacionamentos difíceis e abusivos. "Elas vão lendo o que outras mulheres já passaram e ficam em alerta sobre o que estão passando. Ajudam a ver que não estão sozinhas, e isso as fortalece para sair de relacionamentos abusivos", disse Renata, em entrevista à Agência Brasil.
O coletivo Mete a Colher, criado nas redes sociais, tem como principal missão enfrentar a violência doméstica e ajudar mulheres a entender, evitar e se livrar de relacionamentos abusivos.

Denúncias
Um dos principais canais de apoio às vítimas é o Ligue 180, que pode ser acessado gratuitamente de qualquer lugar do país. De acordo com dados do Ligue 180, o canal registrou no ano passado aumento de 51% no número de denúncias em todo o país, em relação a 2015. Foram cerca de 1 milhão e 300 mil denúncias, em mais de 3 mil atendimentos por dia: 50% são sobre violência física, 31% sobre violência psicológica e 5% sobre violência sexual.
Em 65% dos casos, a violência foi praticada por homens contra as companheiras. E em 38%, o relacionamento entre a vítima e o agressor tem mais de 10 anos de duração.
O Ligue 180 foi criado pela então Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em 2005, para servir de canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. Hoje, a secretaria foi integrada ao Ministério da Justiça.
Está disponível na internet uma lista, por estado, da rede de atendimento disponível em cada localidade.

Edição: Maria Claudia

Sobre Elizas, Daniellas e Sandras, por Carlos Bezerra Jr.

25/04/2017
Em 28 dezembro de 1992, a atriz Daniella Perez foi assassinada aos 22 anos. O seu corpo foi encontrado com 18 golpes de tesoura – oito perfurações no coração, quatro no pulmão, e mais quatro estocadas no pescoço. O ator Guilherme de Pádua e sua mulher à época, Paula Thomaz, foram julgados e condenados pela morte da atriz.
Os dois passaram sete anos na prisão. Depois de cumprirem um terço da pena, vivem em liberdade.
A jornalista Sandra Gomide tinha 32 anos quando foi assassinada pelo ex-namorado e também jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves, então diretor de redação do jornal “O Estado de S. Paulo”. O crime aconteceu no dia 20 de agosto de 2000 em um haras na cidade de Ibiúna, no interior de São Paulo. Pimenta Neves assumiu a autoria horas depois do crime.
Mas o julgamento só aconteceria seis anos depois. A sentença judicial foi aplicada 11 anos após o assassinato. Em 2015, a defesa de Pimenta Neves entrou com um pedido de progressão de pena do regime semiaberto para o aberto. O Tribunal de Justiça de São Paulo, entendendo que o condenado cumpria todos os requisitos legais, concedeu o benefício. Hoje o jornalista vive em sua casa na zona oeste da capital paulista.
Eliza Samudio foi assassinada aos 25 anos em 10 de junho de 2010, no interior de uma residência em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. A jovem tinha 25 anos e pedia judicialmente o reconhecimento da paternidade do filho ao jogador Bruno, na época goleiro e capitão do Flamengo. Segundo acusados pelo crime, Eliza teria sido morta por estrangulamento, posteriormente esquartejada e partes de seu corpo teriam sido jogadas para cachorros.
Neste caso, vou me deter um pouco mais em razão dos fatos recentes. O goleiro Bruno, condenado a mais de 22 anos de prisão pela morte da ex-amante, havia sido solto, graças a uma liminar. Desde 2013, ele recorre da condenação dada em primeira instância. Como o recurso ainda não foi julgado, a prisão continuava sendo preventiva. O Supremo Tribunal Federal havia entendido que Bruno tinha passado tempo demais na cadeia para uma preventiva. Ele havia recebido, então, às vésperas do Carnaval, o direito de aguardar o julgamento do recurso em liberdade. Decisão reformada nesta terça-feira (25) pela 1ª Turma do STF.
Por três votos a um, o colegiado decidiu derrubar a liminar, levando o goleiro de volta à cadeia, como havia pedido o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
O ministro Luiz Fux, um dos que votaram pelo retorno do goleiro à prisão disse: “Estamos diante de um crime hediondo. Não se dá liberdade provisória a crime hediondo”.
Anterior à decisão, já havia um amplo debate sobre o tema, mas não podemos reduzi-lo ao punitivismo, essa não é uma discussão sobre o quanto a sociedade deseja ver que os culpados paguem pelo que fizeram, desprezando possibilidades que estão na lei, como a premissa de responder o crime em liberdade, em alguns casos.
Não creio que estamos a pedir justiçamento, como alguns querem crer. No entanto, a que se questionar a justiça que mantém na prisão por no máximo cinco, seis ou sete anos homens que, assumidamente, mataram ou mandaram matar mulheres, ou seja, nos casos em que a culpa é incontroversa. E estamos nos referindo a casos emblemáticos.
503 MULHERES BRASILEIRAS VÍTIMAS A CADA HORA. ESTAMOS FALANDO DE 12.072 MULHERES AGREDIDAS POR DIA
Ressalto que não quero fazer aqui, usando esses casos, qualquer ilação que lance dúvida sobre centenas de outros. No entanto, sabemos bem o quanto os casos de maior repercussão representam para a sociedade, sobretudo quando o que está em jogo é a percepção que temos sobre justiça.
É preciso também considerar que esses crimes foram anteriores à Lei 13.104 de 09 de março de 2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal, introduzindo uma nova qualificadora no crime de homicídio, conhecida como a “Lei do Feminicídio”, que aliás completou dois anos no mês de março que passou.
Mas apesar dos inegáveis avanços como a introdução da qualificadora no crime de homicídio e da Lei Maria da Penha, que no ano passado completou dez anos, vivemos em um país que possui estrondosos números de violência contra as mulheres, em grande parte silenciadas pelo manto do medo, pela socapa da covardia e pelo despreparo no atendimento em delegacias.
No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.
E porque vivemos em um país em que ainda é preciso que milhares de mulheres gritem nas ruas para que não calem as vozes de meninas do Piauí, barbaramente violentadas e cruelmente atiradas de um penhasco de dez metros de altura, ou da jovem do Rio de Janeiro, covardemente dopada e brutalmente estuprada por 33 bandidos.
Uma em cada três mulheres sofreram algum tipo de violência em 2015, de acordo com pesquisa Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança. Se considerarmos os casos de agressões físicas, o número é aterrorizante: 503 mulheres brasileiras vítimas a cada hora. Estamos falando de 12.072 mulheres agredidas por dia.
É preciso compreender esse cenário como algo de fundo estrutural, refletir sobre nosso programa de direito penal que coíbe a violência contra a mulher e seus resultados efetivos, porque só dessa maneira sairemos de um debate de caso isolado, de ânimos mais inflamados, de momentos tensionados pela violência. Precisamos ir na raiz do problema, na formação das pessoas, na conduta de cada um de nós – homens e mulheres – que devemos ser plenamente conscientes sobre a igualdade de gênero e sobre o respeito em toda e qualquer esfera de relação. Sem essa base, teimaremos em falar mais do mesmo, alterando apenas datas e nomes.
Carlos Bezerra Jr. é médico ginecologista, deputado estadual, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, autor da lei paulista de Combate ao Trabalho Escravo, considerada referência mundial pela ONU.

Meninos sofrem mais bullying físico. Meninas, moral

Estudo mostra que, no Brasil, 17% dos adolescentes de 15 anos sofrem com bullying na escola. Entre as meninas, esse percentual é de 9%. Os índices são menores do que a média mundial. Por outro lado, adolescentes brasileiros estão entre os mais felizes

FLÁVIA YURI OSHIMA
20/04/2017 
Entre os adolescentes brasileiros, os meninos são os que mais sofrem com problemas de bullying. Ao todo, 17,5% deles relatam sofrer bullying na escola. Entre as meninas, esse percentual é de 9,3%. Esses dados ficam abaixo da média internacional da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, de 18,7% e 10,9%, respectivamente.
Os dados são do levantamento Pisa – Programa para Avaliação de Estudante 2015: well-being. O estudo de mais de 500 páginas computou dados colhidos entre estudantes de 15 anos de 53 países no ano de 2015. Esse é o terceiro caderno de informações que a OCDE libera desde dezembro de 2016, quando os primeiros resultados do Pisa 2015 foram divulgados.

Ele também é o primeiro estudo da organização a coletar, organizar e analisar aspectos socioemocionais dos estudantes – algo considerado um avanço pelos educadores. Até então, o Pisa focou em habilidades objetivas: conhecimentos de matemática, ciências e leitura. Desta vez, o objetivo é entender qual a percepção que o estudante tem da escola, como ele se sente dentro dela e como se relaciona com o grupo. O estudo quer também averiguar de que forma o desempenho escolar e o bem-estar estão ou não relacionados.
A maior parte das informações trazidas pelo Pisa é baseada nas respostas dos estudantes. O bem-estar dos estudantes na definição do Pisa refere-se a aspectos psicológicos, cognitivos, físicos e sociais essenciais para ter uma vida feliz e significativa. Bem-estar é entendido pelo Pisa como um estado dinâmico. Mesmo que estejam bem agora, os estudantes podem ter esse sentimento comprometido no futuro se o desenvolvimento de suas habilidades no presente não for trabalhado.
O bullying é definido no estudo como um sistemático abuso de poder – pode ser físico ou verbal. Essa agressão pode ser feita diretamente – com agressões físicas e xingamentos – ou de forma indireta, como o bullying praticado pelo grupo. Ele ocorre quando a criança é ignorada, é socialmente excluída, deixa de ser convidada para jogos, brincadeiras e festas de forma sistemática. O ciberbullying, a agressão feita por meio de ambiente virtual e nas comunicações móveis, fere a criança tanto quanto a hostilidade presencial o faz. 
Globalmente, o levantamento mostrou que 10% dos adolescentes em 34 de 53 países relataram que seus colegas da escola caçoam deles ao menos algumas vezes ao mês. E mais de 10% dos estudantes de 16 dos 53 países alegam ser vítimas de rumores maldosos na escola. Os meninos são vítimas mais frequentes de bullying físico e verbal, enquanto as meninas sofrem mais do que eles com rumores maldosos e exclusão social. Adolescentes imigrantes também sofrem mais bullying do que aqueles nascidos no país em que estudam.
O cruzamento de dados do Pisa mostrou que há relação entre frequência de bullying e desempenho escolar. Escolas que apresentam um percentual alto de incidência de bullying (mais de 10%, pelo padrão internacional) têm 47 pontos a menos de desempenho em ciências do que escolas cujo percentual de bullying é inferior a 5%. Esse resultado foi relacionado à baixa concentração dos estudantes que vivem em instituições que não conseguem lidar com problemas de disciplina – o que prejudicaria todo o grupo.

O levantamento do Pisa tentou medir também a satisfação dos estudantes em relação à escola. Os alunos foram convidados a dar notas de 0 a 10 – em que 0 significa o pior possível e o 10 o melhor possível. Na média, os 53 países que participaram reportaram um nível de satisfação de 7,2 – o que indicaria que os adolescentes desses países estão satisfeitos com suas vidas.
Ao olhar caso a caso, no entanto, constata-se que a percepção sobre o próprio bem-estar do adolescente varia muito entre países. Os brasileiros estão entre os mais felizes do mundo. O Brasil é o sétimo colocado, com média de 7,6. Jovens do Japão, da China e da Coreia são os mais insatisfeitos com suas vidas.
Na Holanda, menos de 4% dos estudantes se dizem insatisfeitos com suas vidas, enquanto na Coreia do Sul e na Turquia esse índice chega a 20%. Na Colômbia, na Costa Rica, na República Dominicana e no México, "mais de um estudante a cada dois se dizem muito satisfeitos, enquanto menos de um estudante entre cinco dizem a mesma coisa na Coreia e na China (Hong Kong, Macau e Taiwan)", de acordo com o texto do estudo da OCDE. 
Há diferenças bem marcadas de gênero em relação à satisfação com a vida. Na média entre os países, apenas 29% das garotas se dizem muito satisfeitas, enquanto essa média salta para 39% entre os meninos. A discrepância entre meninos e meninas se mantém ao olhar os números de cada país. Em todos eles, as garotas responderam ter níveis muito mais baixos de satisfação com a própria vida. Em média, somente 9% dos meninos reportam um nível mais baixo que 4 de bem-estar com sua vida. Para as meninas, esse percentual chegou a 14%.
A relação entre desempenho na escola e satisfação com a própria vida é fraca. Na maioria dos países, os alunos com desempenho entre os 10% melhores e os alunos com desempenho entre os 10% piores relatam níveis similares de satisfação com a própria vida.
O professor e os pais têm um papel importante nesse aspecto. Alunos que alegaram maior nível de satisfação também relatam maior afinidade com seus professores. A abertura dos pais para conversar, o incentivo e o acolhimento aos anseios dos filhos também se mostraram mais comuns entre os adolescentes com o maior nível de bem-estar.
A satisfação dos adolescentes

Países com as dez melhores notas. Escala de 0 a 10, sendo 0 muito ruim e 10 ótimo
República Dominicana……………………………………………. .....8,5
México…………………………………………………………...….…..8,3
Costa Rica……………………………………………….…...…….…..8,2
Colômbia, Croácia, Lituânia e Finlândia………………………...…  .7,9
Rússia, Islândia e Holanda………………………………….....……...7,8
Uruguai, Tailândia, Suíça……………………………………….....…..7,7
Brasil e França…………………………………………………….......7,6
Peru, Áustria, Estônia e Bélgica……………………………….....…..7,5
Bulgária, Catar, Alemanha, Estados Unidos e Espanha.....………..7,4
Média da OCDE…………………………………………………..…. .7,3
Adolescentes expostos a bullying
Países com os mais altos índices de ocorrência. Em %
Hong Kong…………………………………………………….32
Letônia………………………………………………………...30,6
Tunísia………………………………………………………...28
Emirados Árabes, Tailândia e Macau……………...………..27,3
Nova Zelândia…………………………………………..…….26
Cingapura e Catar……………………………………..……..25
Austrália…………………………………………………..…...24
Reino Unido…………………………………………….…….23,9
Colômbia, China e Eslováquia………………………….…...22
Média da OCDE…………………………………………......18,7
Brasil………………………………………………………….17,5

Criança e Natureza: O que fazemos juntos ajuda a definir a família que somos

Oferecer oportunidades de convívio com a natureza é uma das maneiras mais saudáveis de fortalecer o vínculo entre pais e filhos

RAIKA MOISÉS*R
27/04/2017

Quando trancamos nossas crianças em casa, normalmente elas reclamam de tédio, mesmo tendo diversos brinquedos ou entretenimentos eletrônicos à disposição. Isso acontece porque elas precisam de mais do que telas ou do “conforto” do sofá para gastar toda a energia ou esgotar toda a curiosidade que é característica nessa fase da vida. Vivemos tempos em que oferecemos as nossas crianças poucas experiências ou interações com o ambiente natural. Para muitos, a natureza está distante, passando em algum programa na TV. Se você pensa dessa forma, talvez seja hora de rever suas ideias.

Experimente sair da zona de conforto e imergir com sua família na natureza. Um dia em um parque urbano ou um final de semana em uma unidade de conservação já vão proporcionar momentos de brincadeiras, explorações e experiências que se tornarão grandes histórias de aventuras para todos. Se você acha que o jantar à frente da televisão é a hora da família reunida, vai se surpreender ao perceber quanto a liberdade proporcionada por essas experiências na natureza aproximará a todos.  

Como inspiração, o Criança e Natureza, do Instituto Alana, conversou com a médica, mãe e cineasta Suzanne Crocker. No vídeo a seguir, nos conta as lindas descobertas que ela, seu marido e três filhos pequenos fizeram ao longo de nove meses vivendo em uma cabana, imersos na natureza de uma floresta gelada de Yukon, no Canadá, uma experiência transformadora para toda a família.


* Raika Moisés é jornalista, mestra em comunicação e cultura, desde 2017 integra a equipe do Criança e Natureza, do Instituto Alana.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Cresce presença das mulheres no funk e no hip hop


Antropóloga da USP mostra como as mulheres constroem sua identidade através destas expressões culturais
Por 
26/04/2017
Tanto funkeiras quanto as artistas do hip hop têm dado um viés feminista às letras e performances. Na foto, apresentação no Centro Cultural Grajaú – Foto: Divulgação/Frente Nacional Mulheres no Hip Hop
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Funk e hip hop ainda são expressões culturais predominantemente masculinas. Contudo, é visível uma presença maior de artistas mulheres na cena musical nos últimos anos. Uma pesquisa do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP estudou como jovens artistas constroem suas identidades e lidam com questões como sexualidade e erotismo dentro dos movimentos.

A antropóloga Izabela Nalio Ramos conduziu seu mestrado entre 2012 e 2015 com entrevistas e frequentando shows, reuniões e demais atividades dos coletivos Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop e Liga do Funk, que desenvolviam ações educativas no centro de São Paulo.
A autora começou a pensar os dois movimentos a partir de suas semelhanças e diferenças: ambos são reconhecidos como de periferia, feitos por e para jovens da periferia. A politização do hip hop é mais próxima de uma linguagem de esquerda, de contestação, com uma forte presença do movimento negro.
Já o funk tem uma característica de blasfemar, contrariar, com humor e brincadeiras. “Não conseguimos distinguir se o funk é feminista ou machista, por exemplo. É uma linguagem mais cifrada. Temos dificuldade de aceitar que pode ser as duas coisas ao mesmo tempo”, explica a pesquisadora.
No caso das mulheres, o erotismo, a sexualidade, o corpo são questões importantes. Para Izabela, existe um fetiche sobre o corpo da mulher negra. “No hip hop havia resistência das meninas em falar sobre erotismo e sexualidade tanto nas conversas quanto nas músicas e obras que produziam”, explica.
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Foto: Divulgação/Frente Nacional Mulheres no Hip Hop
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A pesquisadora conta que, durante muito tempo, grande parte das músicas exaltava a inteligência ou “consciência” das mulheres, de modo a marcar uma contraposição à ideia de exaltação do corpo. “Muitas meninas falavam que precisavam se vestir de ‘mano’ para serem aceitas naquele contexto, com roupa larga, boné e sem parecer uma mulher no palco. Não era uma coisa de ‘eu sou mulher e sou superfeminina mesmo’, era o contrário”, conta.

Já as mulheres do funk falam muito sobre o corpo, erotismo, relações afetivas, ostentação. Há uma estética que valoriza mulheres com muitas curvas, com roupas justas, curtas. “O corpo da mulher negra é hipersexualizado na sociedade como um todo. Muitas militantes negras falam sobre como ela é vista como aquela com quem não se casa ou não se sai de mãos dadas na rua, aquela com quem se transa escondido”, analisa. Para Izabela, quando elas próprias falam sobre erotismo e sexo, elas tomam para si essa discussão de uma forma que pode ser empoderadora.

Transformações

O movimento feminista viveu um boom nos últimos anos, e tanto funkeiras quanto as artistas do hip hop tiveram um contato crescente com o tema ao longo do período estudado. Izabela observou, por exemplo, uma diminuição na resistência das meninas do hip hop em falar da própria sexualidade. “Elas passaram a considerar posturas do tipo se eu quiser, eu rebolo sim”, explica.
Com as funkeiras, o caminho foi inverso: elas tiveram contato com as feministas negras dos coletivos, participando como produtoras na Liga do Funk e em outras atividades. “É como se elas tivessem partido de pontos diferentes e durante esse tempo foram se aproximando, apesar de ainda pautarem a questão da mulher negra de formas diferentes”, explica a pesquisadora.
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Foto: Divulgação/Frente Nacional Mulheres no Hip Hop

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O preconceito é musical?

Izabela acredita que seu trabalho contribui para aproximar ciência e o universo funk e hip hop. Ela considera principalmente o funk uma expressão cultural estereotipada como alienada, sexualizada e criminalizada. “As pessoas não se aproximam para ver que há múltiplas características, que é muito ambíguo. Ouvimos muita gente falando mal mesmo antes de conhecer.”
Foto: Liga do Funk
Ela lembra que no Rio de Janeiro, na década de 1990, os bailes funk foram proibidos nas comunidades, sob o argumento de que teriam envolvimento com o tráfico e outros crimes e que, ainda hoje, em São Paulo, é comum bailes terminarem com violência policial. “Como diz a professora Adriana Facina, os bailes foram proibidos nas comunidades, mas continuavam tocando nas festas da zona sul do Rio. Então, ela pontua, o que é criminalizado, o funk ou o funkeiro?”.
E o estigma se estende às mulheres. Para Izabela, criticar o funk pode ser um pretexto para reforçar preconceitos contra a mulher negra naquele contexto. “Acontecem críticas de gênero especificamente, como chamar a mulher de vagabunda, e mandá-la parar de ter filhos e ir trabalhar. Não é com a música”, diz.
(Adriana Facina é professora na UFRJ e orientou o mestrado MY PUSSY É O PODER. A representação feminina através do funk no Rio de Janeiro: Identidade, feminismo e indústria cultural, de Mariana Gomes Caetano).
Mais informações: e-mail izanalio@gmail.com, com a professora e antropóloga Izabela Nalio Ramos
Paulo Andrade / Serviço de Comunicação Social da FFLCH

USP

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Oprah Winfrey faz justiça para Henrietta Lacks

Nueva York 

Rose Byrne e Oprah Winfrey no longa 'A Vida Imortal de Henrietta Lacks'
Rose Byrne e Oprah Winfrey no longa 'A Vida Imortal de Henrietta Lacks' HBO

medicina deve muito a Henrietta Lacks. Era uma mulher única. Morreu de câncer há mais de seis décadas, aos 30 anos. Suas células continuaram vivas e se transformaram na ferramenta biológica que ajudou a desenvolver terapias para combater a poliomielite, o câncer e a aids. Mas a identidade dessa lavradora de tabaco ficou enterrada com a sigla das duas primeiras letras de seu nome e seu sobrenome. Oprah Winfrey agora faz justiça com A Vida Imortal de Henrietta Lacks. O melodrama dirigido por George Wolfe, que estreia na HBO na madrugada de sábado para domingo, é a adaptação do livro homônimo publicado por Rebecca Skloot em 2010 (Companhia das Letras). Jornalista especializada em ciência, Skloot revelou a origem dessas células com capacidade excepcional de se reproduzir fora do corpo humano.

A história remonta a 1951, no hospital Johns Hopkins de Baltimore – cidade onde também começou a carreira de Oprah. “Percorri as ruas onde sua família mora, buscando notícias. Nem sei quantas vezes estive no hospital. Também fui à igreja, mas nunca escutei nada sobre essa mulher”, afirma. “Soube da história porque alguém da minha equipe falou do livro.” Winfrey faz o papel de Débora, a filha mais velha de Henrietta Lacks. Os familiares nunca foram informados sobre a coleta de amostras de tecidos do tumor em seu colo uterino. E, claro, os laboratórios farmacêuticos nunca lhes deram uma compensação pelos avanços que revolucionaram a medicina. A comunidade negra, por outro lado, tinha medo na época de que os cientistas usassem seus integrantes como porquinhos-da-índia.
A história da ciência fica então num segundo plano, e a trama se concentra no périplo de uma mulher negra que tenta conhecer quem foi sua mãe. “Ninguém tem células que revolucionam a medicina moderna”, afirma Wolfe, “mas todos queremos saber quem nos criou.” Débora, diz Oprah, “precisava saber de onde vinha para definir sua identidade”. Rebecca Skloot, interpretada por Rose Byrne, foi ao seu encontro. O filme mostra a persistência da jornalista para ganhar sua confiança. Precisou demonstrar que não era outra pessoa branca que tentava se aproveitar. Oprah conta que a família queria manter a história enterrada, “ou porque a recordação era dolorosa, ou porque simplesmente não era tão importante”.
O grande desafio do diretor foi concentrar em 90 minutos uma história complexa e emotiva, que mistura as conquistas da ciência com questões raciais, religiosas, culturais e éticas. Poderia ter seguido qualquer rumo. A solução, explica, foi fazer um filme em que o público aprende com Débora à medida que ela descobre coisas sobre sua mãe e a ciência. “Ela organiza”, explica Wolfe. “Quando você conhece sua própria história, pode delimitá-la. Do contrário, fica preso pela definição que as outras pessoas criam sobre você.” Esse processo de descoberta alimenta a força de sua personalidade. E a intensidade alcançada pela relação com Rebecca o transforma numa aventura de duas pessoas. “Creio que o filme levará as pessoas a se fazerem muitas perguntas”, diz Winfrey.
E não só sobre a ciência, mas também sobre a questão racial. “Somos humanos”, afirma. “Se não fosse assim, teria sido outra forma de discriminação.” E aproveita para anunciar: “Sim, aqui estamos a negra Oprah e o negro George contando a história de uma mulher negra que ninguém sabia quem era e cujo filme estará na HBO. Isso, para mim, é um grande avanço.”


CONTADORA DE HISTÓRIAS

Oprah Winfreu em 'A Vida Imortal de Henrietta Lacks'
Oprah Winfreu em 'A Vida Imortal de Henrietta Lacks'

Oprah Winfreu se transformou na mulher mais poderosa do mundo do entretenimento. Fez isso durante 25 anos. Suas entrevistas eram sensacionais e, muitas vezes, polêmicas. Seu sucesso se baseava justamente no valor que dava ao relato dos participantes sobre como haviam chegado a ser o que eram.
Com a determinação que a caracteriza, Oprah considera importante contar a história de Henrietta Lacks. “Tanto faz que seja 1961, 1991 ou 2017”, diz. Fazer isso com um filme “permite definir, redefinir e afinar” a trama. Ela conta que precisou meditar muito sobre o papel. “Estava traumatizada”, admite, mas confessa que o trabalho lhe permitiu liberar uma raiva contida. Segundo a artista, o drama toca as pessoas de uma maneira que não se consegue com uma entrevista.

El País