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sábado, 22 de abril de 2017

'Big Little Lies' lança um olhar raro e cheio de nuances sobre relacionamentos abusivos

Vítimas (e agressores) nem sempre se comportam como esperamos.

20/04/2017
Melissa Jeltsen
Editora, The Huffington Post

‘Big Little Lies’ é um retrato olhar raro e cheio de nuances do que é estar em um relacionamento abusivo.

A minissérie da HBO "Big Little Lies" é uma história sobre a complexa vida interior de mulheres privilegiadas, envolvidas em um assassinato ambientado em uma cidade rica do litoral da Califórnia. Em meio às vistas deslumbrantes e ao desenrolar do mistério sobre o crime, os telespectadores testemunham algo raramente visto na tela: um retrato cuidadoso de um relacionamento abusivo. (Atenção: spoilers a seguir.)

A trama do abuso gira em torno de Celeste, interpretada por Nicole Kidman, uma advogada que desistiu da carreira para criar seus filhos gêmeos. Para o observador externo, ela tem a vida perfeita: uma casa deslumbrante, filhos saudáveis ​​e um marido lindo, cuja adoração por ela é óbvia para todos. Mas, à medida que o show avança, a fachada desmorona. Celeste está profundamente preocupada com seu casamento. Ela usa a palavra "volátil" para descrevê-lo, mas a palavra mais precisa é "abusivo".

Embora seu carismático marido, Perry, interpretado por Alexander Skarsgård, às vezes a trate "como uma deusa", na maior parte do tempo ele é possessivo e controlador. Perry rapidamente parte para a agressão física, sufocando, espancando e jogando Celeste contra a parede. Celeste reage pelo menos uma vez, num ato de autopreservação, contrariando o papel tradicional da vítima passiva.

As brigas normalmente terminam em cenas de sexo bruto e ambiguamente consensual. Não fica claro para o espectador (e talvez nem para a própria Celeste) se ela está transando porque deseja Perry ou porque sente que não tem escolha. Depois, ele pede desculpas e a enche dá presentes.

Em três dos episódios "Big Little Lies" (3, 4 e 5), o casal faz terapia de casal. As cenas oferecem um olhar cheio de nuances sobre um relacionamento abusivo e o complicado caminho que um casal em situação semelhante tem de navegar.

Na primeira sessão de terapia, Celeste, parecendo muito pouco à vontade, fala sobre seus problemas na primeira pessoa do plural, constantemente olhando para Perry em busca de aprovação. "Só acho que as coisas podem ficar um pouco voláteis", explica ela. "Brigamos muito, gritamos. Só temos muita raiva, e precisamos de ajuda para controlá-la."

É claro que não é a raiva que precisa de controle, mas sim Perry. No fundo, a violência doméstica significa poder e controle sobre outra pessoa. A necessidade de Perry de dominar Celeste está na raiz de seus problemas.

Depois, ela vai à terapeuta sozinha. Quando é questionada diretamente sobre o abuso, Celeste continua insistindo que é igualmente culpada. "Nós dois somos violentos às vezes, eu tenho parte da culpa", diz ela. "Não sou a vítima."

É um momento surpreendente. Celeste afirma sua autonomia e ao mesmo tempo rejeita o rótulo de vítima. É discutível se ela internalizou estereótipos negativos sobre o tipo de pessoas que acabam em relações abusivas -- mulheres fracas, danificadas, dependentes, realizadas -- ou se ela realmente não se enxerga como uma mulher vítima de abuso.

Marium Durrani, advogada da Rede Nacional para o Fim da Violência Doméstica, disse que pode ser uma mistura das duas coisas. Durrani afirma que é normal que as vítimas levem tempo para processar sua situação antes de aceitá-la. "Uma vítima pode se perguntar, 'Será que nem todo mundo briga?'", afirma ela. "É difícil saber o que é normal nos relacionamentos íntimos."

Eles também precisam estar emocionalmente prontos para lidar com as consequências, acrescenta Durrani. Quando percebem que estão correndo perigo, a próxima pergunta lógica é: o que fazer a respeito? Celeste pode ainda não estar pronta para isso, diz Durrani.

Celeste também pode estar repetindo o que Perry lhe disse há muito tempo: ela é a causa da violência. Como muitos parceiros abusivos, Perry é um mestre da projeção, culpando Celeste por tudo o que aconteça de errado.

No episódio 3, o casal está bebendo vinho na frente de uma fogueira, um retrato da felicidade doméstica, quando Perry descobre que Celeste e as crianças vão sem ele a um show de patinação da Disney. Perry acusa a mulher de excluí-lo deliberadamente do programa e a agarra bruscamente pelo pescoço.

Quando ela diz que está machucando, ele tenta inverter a situação. "Oh, eu estou te machucando?", diz ele, sendo irônico. "Podemos falar do quanto você me machucou?"

Ele quer dizer que a culpa na realidade é dela. Ela o machucou primeiro. Ele é a verdadeira vítima.

Depois, Perry diz à terapeuta que sua raiva vem do medo de perder Celeste. "Sempre tive a sensação de chegaria o dia em que ela simplesmente não me amaria mais", diz ele. "Acho que estou o tempo todo procurando evidências."

Ele admite ser inseguro e que essa é a explicação para seu comportamento controlador. Mas, embora sua confissão pareça sincera, ela é na verdade sutilmente manipuladora. Implicitamente, Perry culpa a mulher – ele está agindo assim porque Celeste está infeliz. A mensagem subjacente: se você me amasse mais e demonstrasse isso, eu não teria de te machucar.

A série se esforça para não fazer de Perry um personagem unidimensional. Algumas das suas ações são surpreendentes: é ele quem revela o abuso à terapeuta -- Celeste tenta protegê-lo. Como ele diz, "existe uma linha entre paixão e raiva, e às vezes, talvez, nós a atravessemos."

Em uma cena particularmente marcante, a família está jantando. Ele começa a brincar e finge ser um monstro, andando ao redor da mesa. As crianças ficam encantadas com a brincadeira e fogem, gargalhando.

Nós espectadores sabemos que, para Celeste, Perry pode ser um monstro real, mas aqui ele está sendo um pai divertido e engajado. Esse simbolismo e essa dualidade revelam uma verdade assustadora: os agressores não são monstros sem sentimento ou compaixão -- podem ser pais, amantes e maridos; homens bonitos, que vivem em casas bonitas e têm mulheres bonitas.

Olhando de fora, nunca sabemos de verdade o que é a violência doméstica.
Marium Durrani, da Rede Nacional para o Fim da Violência Doméstica

Em uma cena, o casal dança a música "Harvest Moon", de Neil Young. Perry, olhando nos olhos da mulher, sussurra, "Não desista de mim, baby". Celeste olha para alguns desenhos feitos por seus filhos, e fica claro quais são suas prioridades.

Quando a terapeuta lhe pergunta por que ela não sair de casa, ela fala em se concentrar no que está certo no relacionamento, não no que está errado.

"Penso no que temos, e temos muito", diz ela. "Somos unidos por aquilo que passamos."

Brian Pacheco, diretor de relações públicas da Safe Horizon, uma organização de assistência às vítimas de violência doméstica, disse que a reação é comum.

"A violência doméstica é complicada, e muitos sobreviventes estão em conflito quando pensam nos bons tempos – porque eles existem", disse ele. "Muitas vezes os sobreviventes querem apenas o fim do abuso, não necessariamente o fim do relacionamento."

Ele disse que a equipe de responsabilidade social corporativa da HBO procurou a Safe Horizon para criar um plano caso espectadores tivessem reações pessoais às representações de violência doméstica no programa.

"Fiquei muito impressionado com o compromisso da HBO de retratar com precisão as realidades da violência doméstica e de responder às necessidades de seus espectadores se eles precisassem de apoio", disse Pacheco.

Durrani aplaudiu o show por abrir um diálogo necessário e desafiar estereótipos sobre quem passa por relacionamentos abusivos.

"Acho que uma das lições a aprender é, olhando de fora, nunca sabemos de verdade o que é a violência doméstica", disse ela. "As pessoas não acham que uma mulher linda e rica, que vive uma vida aparentemente idílica, estaria passando por algo assim. Há uma nuvem muito escura sobre ela que não é visível."

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