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domingo, 16 de abril de 2017

Abuso ou desencontro?

As definições de relacionamento abusivo vão ficando tão amplas – e tão pessoais – que qualquer relação, boa ou má, pode caber dentro delas

IVAN MARTINS
12/04/2017

Lembro de ter sido feliz – e muito infeliz – num namoro que deixou cicatrizes profundas. Pela definição do vídeo Não tira o batom vermelho, aquele famoso da Jout Jout, a que mais de 2,7 milhões de pessoas assistiram, era um clássico relacionamento abusivo.

A relação fez com que eu me sentisse feio, burro e chato, acabou com parte importante da minha autoconfiança e reduziu substancialmente a minha alegria. Minha sensação era de que se ela me largasse eu nunca mais acharia alguém tão perfeito. Ela era doce como mel de pequi, mas, sem violência ou coerção, fez de mim gato e sapato, emocionalmente. Quando foi embora, quase morri.

Nunca me passou pela cabeça, porém, que tivéssemos um relacionamento abusivo. Porque não tínhamos. Acontecia de eu ser louco por ela, e ela – por um monte de circunstâncias – não estar tão apaixonada por mim. Eu queria casar e ter cinco filhos. Ela gostava de mim, mas tinha planos mais importantes. Desse desencontro de biografias e sentimentos, brotou um enorme desequilíbrio de poder em favor dela, que provocava em mim sofrimento e insegurança permanentes, entremeados por espasmos de magia.

Não era uma relação muito saudável, e eu sabia disso. Mas, ao mesmo tempo, queria estar lá, talvez porque precisasse viver aquilo. Era minha escolha e minha responsabilidade.

Ontem, com a explosão de comentários na mídia e nas redes sociais a respeito do agressor do BBB, li muito sobre relacionamentos abusivos. Aprendi um bocado, mas, do ponto de vista de homem, que inevitavelmente é o meu – o meu lugar de fala –, fiquei com a impressão de que a definição vai se ampliando um pouco demais.

É evidente que o cara expulso do BBB pela polícia passou de qualquer limite aceitável, como milhões de caras passam diariamente na vida real – e foi chocante perceber que a multidão que votou nele para continuar no programa, composta de homens e mulheres, não se incomoda com a brutalidade do sujeito.

É evidente que o comportamento do José Mayer com a funcionária da Globo foi machista e canalha. Se insinuar insistentemente, tocar sexualmente e insultar qualquer pessoa em posição mais frágil é de uma covardia inominável. Ainda bem que o assunto tornou-se público, e ele sofreu as consequências.

É evidente que a maneira como Silvio Santos tratou a funcionária dele – cujo nome das Mil e uma noites eu prefiro não escrever – foi profundamente abusiva. Afirmar na TV que contratou a apresentadora apenas pela sua cara bonita, e não para dar opiniões, é (além de objetivamente falso, neste caso) um insulto para todas as mulheres do planeta.

É evidente, sobretudo, que a campanha Mexeu com uma Mexeu com Todas é um avanço na direção da luz.

Assim como existe uma força social majoritária e silenciosa que protege os homens que cometem estupro, abuso e assédio, começa a existir, na nossa sociedade, outra força – ainda minoritária, mas ruidosa – que age para intimidar e denunciar os agressores, inibindo os comportamentos abusivos.

Assim como as mulheres têm medo de sofrer a violência masculina, que se manifesta em toda parte, de diferentes maneiras, impondo um certo tipo de conduta, os homens passarão a temer as represálias femininas, que podem atingi-los de forma devastadora – como José Mayer descobriu. Essa não é a forma ideal de instaurar a civilidade e o progresso, mas a humanidade tem funcionado assim há 50 mil anos. Parece não haver civilização sem ameaça de punição.

Mas, posto isso tudo, é importante lembrar que relações humanas envolvem frustração, desencontro e sofrimento. Toda vez que a gente se aproxima de outra pessoa está sujeito a isso. Tive a impressão, nos últimos dias, lendo posts e colunas sobre relacionamentos abusivos, de que, por trás da indignação legítima e da necessidade real de proteger as mulheres, existe a ilusão de produzir relacionamentos sem dor ou conflito – e isso, todos sabemos, não é possível.

As relações passionais têm um componente conflituoso. Mesmo homens legais envolvidos em relações saudáveis às vezes causam dor a suas parceiras, por um milhão de razões que não envolvem violência de nenhuma espécie. E mesmo mulheres doces – como a minha antiga namorada – provocam sofrimento em homens que, na verdade, gostariam de proteger. O abuso nos relacionamentos existe, evidentemente, mas, se ele ficar igual a tudo que fere ou entristece, a definição perderá o sentido de apontar condutas violentas ou inaceitáveis.

O que podemos exigir das pessoas que se envolvem conosco é que nos respeitem e que nos tratem como iguais. O resto será definido pela relação.

Autorresponsabilidade é uma consequência inexorável da autonomia que conquistamos. Se homens e mulheres não se perguntarem por que se deixaram levar a essa ou aquela situação de sofrimento, se não entenderem o seu próprio papel nas relações disfuncionais, pouco adiantará fazer listas públicas cada vez maiores de atos de abuso, porque, com muita probabilidade, humilhações e violências continuarão se repetindo na vida privada.

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