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11 ABR 2017
Em 2016 Christiane Veauvy, socióloga feminista e professora honorária do CNRS-Paris, esteve na Unicamp para participar do módulo teórico do projeto “O Mediterrâneo medieval revisitado” dedicado ao tema “Crise e sociedade”. Entre seminários e conferências, concedeu esta entrevista à professora Néri de Barros Almeida, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Christiane Veauvy relata aspectos mais gerais de sua atuação acadêmica e militância, expõe seu ponto de vista sobre os caminhos para a superação da crise – orientado pelo saint-simonismo, pelo pensamento feminista e pela obra do sociólogo Alain Touraine –, e põe em diálogo o presente e o passado para a construção de uma outra percepção de si fundante do mundo. A visita da professora à Unicamp contou com apoio da Fapesp e do Faepex.
Jornal da Unicamp – A senhora veio à Unicamp participar do seminário “Crise e sociedade”. De que crise veio falar?
Christiane Veauvy – A crise de que falei está ligada à chamada crise dos sub-primes, que começou em 2008 nos Estados Unidos. Mas para introduzir o tema gostaria de citar dois autores que se depararam com o problema da crise: o conde de Saint-Simon que viveu entre 1760 e 1825 e Alain Touraine, sociólogo nascido em 1925. Saint-Simon dirigindo-se aos homens de ciência em 1813, na França do Primeiro Império afirma: "A espécie humana se encontra engajada em uma das maiores crises que experimentou desde a origem de sua existência: que esforço vocês têm feito para encerrar esta crise?" Alain Touraine, por sua vez, em 2010 em Após a crise. A decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais escreve: "(…) quanto mais a crise é um teatro sem atores, tanto mais a saída da crise e a formação de uma nova sociedade dependem de iniciativas que terão de ser tomadas pelos governos ou serão impostas pelas próprias vítimas" .
Saint-Simon, autor de uma obra atípica da qual emergem o conceito de sociedade e a própria sociologia, é considerado nesse plano mais criativo do que seu antigo secretário, Auguste Comte. Alain Touraine, autor de cerca de quarenta livros, perseguiu sem tréguas uma empreitada complexa da qual emerge uma sociologia nova, centrada sobre o sujeito, o surgimento de atores não sociais, a subjetivação (conceito emprestado a Michel Foucault). O fim da crise é visto por um e por outro como dependente da ação desenvolvida por diversos protagonistas.
A crise que vivemos, iniciada na realidade nos anos 1970-1980, é primeiramente uma crise financeira mundial como a de 1929; dessa vez, ela é dominada pelo neoliberalismo – os significados desse termo variaram desde sua aparição em 1844. "O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é primeiramente e fundamentalmente uma racionalidade": diminuição do papel do Estado, abertura do mercado em todos os domínios em escala mundial. Esta é a "globalização" segundo os sociólogos Alain Touraine e Paul Vieille.
A visão neoliberal do indivíduo como empreendedor de si mesmo penetra a intimidade de cada um sem que nos demos conta disso. Na Inglaterra, Margaret Thatcher, primeira mulher a dirigir um governo na Europa ocidental, declarou em 1988: "O objetivo é mudar a alma".
JU – A senhora tem uma trajetória marcada pelo feminismo. O que a crise discutida pela senhora tem a ver com os feminismos?
Christiane Veauvy – As mulheres estão expostas de maneira particular aos efeitos destruidores/desubjetivantes do neoliberalismo. A filósofa Ida Dominijanni, escritora-jornalista, feminista, o mostra em seu livro Il trucco. Sessualità e biopolitica nella fine di Berlusconi (2014). Em sua prática de escrita, ela está de acordo com a problemática segundo a qual a sexualidade é central na construção de si mesmas que as mulheres realizaram no feminismo, perseguiram em seus prolongamentos ou mesmo conquistaram de maneira difusa.
A partir do final dos anos 1970, o neoliberalismo subverteu as referências culturais e políticas das democracias ocidentais, com variantes e nuances; essas democracias tendem a se tornar democracias autoritárias, onde o populismo toma importância. As ideias e as práticas opostas ao neoliberalismo são qualificadas de arcaicas, tanto por seus defensores quanto por aqueles que se tornam seus cúmplices inconscientes, seja porque eles não veem aí as devastações do meio ambiente, da economia, das populações, dos indivíduos, da cultura; seja porque não estabelecem ligação entre os problemas aos quais somos confrontados e o regime neoliberal, muito diferente do liberalismo clássico cujos efeitos foram expostos na crise de 1929. Um aspecto dramático da crise presente pode ser visto nas guerras no Oriente Médio, no afluxo de refugiados à Europa e outras regiões, etc.
O neoliberalismo não tem alternativa possível, como pensam alguns? Alain Touraine e Ida Dominijanni estão longe de afirmar a paralisia que ele veicula nas práticas sociais e nos domínios do saber. Dominijanni não desenvolve uma abordagem acadêmica, mas articula filosofia (Michel Foucault), feminismo italiano, auto-consciência, "pensamento da diferença", psicanálise. A partir do caso italiano, de certa maneira generalizável a situações europeias e extra-européias ela põe em evidência: (i) o lugar central da sexualidade no dispositivo político ou bio-político da governamentalidade posto em marcha por Berlusconi (ii) porquê e em quê as mulheres estão mais expostas à visão neoliberal da sexualidade e seus usos que contribuem não para libertá-la mas para enquadrá-la de forma dissimulada, perversa. As conquistas do movimento de mulheres são insubstituíveis na oposição ao neoliberalismo, notadamente graças à cultura criada por elas próprias (sintetizada na expressão "pensamento da diferença"). Para colocar fim à submissão que o neoliberalismo acarreta, a invenção, com efeito, se faz necessária.
JU – Como a senhora vê, comparativamente, a Europa e a América diante da crise?
Christiane Veauvy – O neoliberalismo tem constantes, recuperáveis sob formas variáveis segundo os continentes, países ou regiões: o desencadeamento da concorrência é uma dessas constantes. Para "compreender o que se passa em todos os níveis, em particular no nível nacional" e "para definir os diferentes modos de pensar que organizam nossas representações", convém situar-se no nível mundial. Alain Touraine "coloca o acento não sobre a crise interna da sociedade e da economia ocidentais, mas sobre as convulsões do mundo acarretadas pelo desmoronamento da utopia ocidental e sobre nossa espera apaixonada por novas referências comuns à modernidade nesse mundo fracionado por conflitos". Considerado o coroamento teórico de sua obra, La fin des sociétés, nem por isso, esse trabalho marca seu fim. Touraine desenvolve nos trabalhos seguintes um pensamento fundado sobre a subjetivação ("o direito a ter direitos"); por aí ele abre uma brecha no muro que deveria se opor a toda alternativa ao neoliberalismo. A sociologia que ele construiu se opõe à desubjetivação, hoje em dia ainda mais forte na medida em que a democracia é ameaçada.
Não poremos fim à crise sem impulsionar transformações inéditas, primeiro subjetivamente na perspectiva ativa que abre a subjetivação: ela se opõe à objetivação, uma perspectiva passiva segundo Touraine (2006) que escreve em Nous, sujets humains: "O alvo prático mais importante das ciências sociais é descobrir como se forma a subjetivação, como um indivíduo ou uma sociedade podem aumentar sua capacidade de autocriação, de autotransformação e de crítica ao poder". Essa obra que em português ganhou o subtítulo “Depois da crise” nos leva a precisar a evolução histórica do conceito de sociedade, na medida em que o autor pratica a sociologia em acordo com o biólogo Jean-Claude Ameisen (Université Paris-Diderot) quando escreve: "Para compreender o que nos rodeia, é preciso que o passado faça parte de nosso olhar".
Michel Foucault, em Il faut défendre la société (1997) - curso oferecido no Collège de France em 1976 e publicado postumamente - refletiu sobre a guerra e o poder encarregado de "defender a sociedade" (p. 18) – um tema, segundo ele, que se tornou corrente. No final da Idade Média, "Vê-se emergir um Estado dotado de instituições militares". Aparece então "um discurso estranho, um discurso novo. Novo primeiramente, porque creio que é o primeiro discurso histórico-político sobre a sociedade, e que é muito diferente do discurso filosófico-jurídico a que se estava habituado até então" (p. 42). "(...) uma estrutura binária atravessa a sociedade ". O discurso cuja novidade assinalou lhe parecia ser "o primeiro discurso na sociedade ocidental desde a Idade Média que se pode dizer rigorosamente histórico-político. Primeiramente porque o sujeito que fala nesse discurso (…) não procura ocupar a posição do jurista ou do filósofo, isso é, a posição de sujeito universal, totalisante ou neutro. Nessa luta geral da qual ele fala, aquele que fala, aquele que diz a verdade, aquele que conta a história, aquele que reencontra a memória e conjura os esquecimentos, está forçosamente de um lado ou de outro: ele está na batalha " (p. 44-45).
Alain Touraine se situa, com efeito, na batalha da crise, em oposição ao neoliberalismo – termo raro sob sua pluma depois do aparecimento de seu livro Comment sortir du libéralisme?, no qual se pergunta: "Nossa sociedade ainda é capaz de agir sobre si mesma, de gerar ideias e políticas econômicas e sociais ou se fechou em uma crise sem fim?". Por esse caminho chegamos ao livro de Stéphane Hessel Indignez-vous! (2010) "que teve eco em numerosos países porque se endereçava aos atores, mesmo reconhecendo que a indignação só poderia ser um primeiro passo: um apelo à mobilização que em seguida deveria se organizar em ação política". Não consiste em crítica a esse movimento (ou esses movimentos) de indignados reconhecer que não pode (ou não puderam) ir além disso. "Aqui é a mobilização subjetiva que comanda e não uma estratégia político-militar”, prossegue Touraine. “Como não ver a imensa transformação operada na ação coletiva? A despeito das aparências, aqueles que falavam de luta de classes se apoiavam sobre a análise de crises e de contradições do sistema capitalista, até desaguar numa ideia de crise geral e terminal do mundo capitalista. Ponto de vista ao qual concedo grande importância, uma vez que falo, como outros, do triunfo de um capitalismo financeiro que não tem mais função econômica. A amplitude da catástrofe econômica que se seguiu à crise dos ‘sub-primes’ na Espanha, acarretou a perda de confiança no sistema político e econômico. Mas ela suscitou igualmente o desenvolvimento de redes econômicas ‘informais’ – como são chamadas na América Latina -, entre as quais as mais importantes são o empréstimo desinteressado de dinheiro, o trabalho gratuito em outras famílias, a cultura de legumes na cidade. Tais iniciativas repousam sobre a convicção de que o sistema capitalista não pode superar essas dificuldades e de que essas redes informais têm mais chances de sobreviver que os circuitos comerciais e bancários ameaçados de falência". Longe de cair na armadilha da impotência, Touraine não considera que as forças dominantes prevalecerão sobre essas iniciativas recentes.
JU – Depois da queda do muro de Berlin (1989), falou-se muito da morte das utopias. Depois disso, em sua opinião, que vozes merecem ser ouvidas e o que dizem?
Christiane Veauvy – A utopia é uma questão filosófica, se entendemos a filosofia como uma disciplina ancorada nos problemas da atualidade; no sentido estrito do termo, aqueles nos quais o destino da humanidade está em causa. Em L'idéologie et l'utopie (1997), Paul Ricoeur afirma tratar-se "tanto de uma reflexão sobre um tema duplo (...) quanto de um percurso esclarecido através dos autores que, de uma maneira ou de outra, falaram dele: Marx, Althusser, Mannheim, Weber, Habermas, Geertz, Saint-Simon, Fourier".
O historiador Francesco Pitocco, em Utopia e riforma religiosa nel Risorgimento. Il sansimonismo nella cultura toscana (1972), mostrou que o saint-simonismo tinha sido visto muito unilateralmente como uma utopia entendida como algo pouco sério. Alain Touraine, por seu turno, chamou a atenção para os perigos da utopia que obedece a um princípio único, “Não deixando nenhum espaço para o debate político aberto”.
A propósito da queda do muro de Berlin, os discursos ouvidos na época sublinharam a reunificação da Alemanha como um evento feliz e como uma possibilidade do ponto de vista da extensão da democracia à Alemanha do Leste. No entanto, esse evento e de maneira mais geral as tensões do final do último século, tiveram efeitos múltiplos cuja gravidade não foi percebida então e, em parte, ainda permanece não pressentida. Dela resultou uma situação bem menos clara do que acredita o senso comum. O filósofo Jacques Rancière considera que os tempos em que "o discurso oficial opunha as virtudes da democracia ao horror totalitário (...) se foram". Ele se inquieta com essa "mutação ideológica" que exige, para ser compreendida, "remontar ao escândalo originário representado pelo 'governo do povo' e perceber os laços complexos entre democracia, política, república e representação " (Ibid.).
Georges Corm, economista e historiador, autor de uma obra que se nutre de sua experiência e de sua vasta cultura forjadas a partir do Sul e do Norte do Mediterrâneo, convida a uma reflexão de fundo para que as lógicas de guerra que dilaceram o Oriente Médio sejam compreendidas depois da Guerra Fria. É preciso ultrapassar a visão binária do mundo que está estabelecida para sermos capazes de pensar o real e suas complexidades, de criticar o imaginário de "retorno do religioso", de desfazer a manipulação da memória e da história. "Contrariamente à opinião difundida, nos encontramos diante de um estado supremo de ideologização do mundo pela instrumentalização do fato religioso conectada à verdadeira matriz dos totalitarismos modernos, a saber as guerras de religião na própria Europa".
JU – Suas pesquisas e ativismo político se desenvolveram em torno do saint-simonismo e do feminismo. Como essas duas correntes dialogam?
Christiane Veauvy – Saint-Simon, cujo nome foi por muito tempo mais célebre do que seu pensamento, deixou uma obra considerável mas cuja primeira edição crítica completa data apenas de 2012! O saint-simonismo, ou seja, sua posteridade, é considerado hoje como um movimento específico cuja definição é delicada, sabendo-se que não há unidade em seu seio mas "uma multiplicidade de iniciativas e de correntes, saídas de diferentes sismas internos ". A história do saint-simonismo comporta três grandes momentos: "o primeiro, de 1825 a 1831, visa a uma reformulação da doutrina, sua difusão e a criação da Igreja. O segundo, mais breve, do final do ano de 1831 a 1832, é um período de crise e de transformação (...).O terceiro momento, muito longo, de 1833 a 1870, marca a passagem da teoria à prática".
Saint-Simon, mais conhecido no século XIX do que no século XX na França, se beneficia de um interesse renovado a partir de meados dos anos 1950, o mesmo acontecendo com o saint-simonismo. Ele beneficiou as saint-simonianas de forma limitada, antes que elas ressurgissem por outras razões a partir de um outro movimento: o feminismo contemporâneo. O retorno concreto às saint-simonianas, particularmente às proletárias (que tinham escolhido se chamar assim para se distinguir das “damas da doutrina” ou “damas de chapéu”) se estabeleceram na França no movimento feminista, principalmente, dos anos 1970.
O saint-simonismo inicial foi o lugar de emergência da "questão da mulher" na medida em que as mulheres aí tiveram desde a origem um lugar que aumentou após a Revolução de julho de 1830, com a entrada das "proletárias". A "questão da mulher" foi central na maior parte das crises atravessadas pelo saint-simonismo a partir de 1831. O periódico La Femme libre (1832-1834) foi criado sobre o fundo dessa crise interna por três jovens mulheres, uma das quais passou ao fourierismo (movimento corporativista fundado pelo socialista francês Charles Fourier). No estado atual de nossos conhecimentos, foi a primeira vez na história que mulheres se reuniram para compor um periódico destinado às mulheres.
Os escritos numerosos e variados das saint-simonianas (brochuras, jornais, correspondência, autobiografias), da mesma maneira que seus percursos, foram objeto de uma verdadeira supressão na França no século XIX e, salvo exceção, no século XX, até que o feminismo contemporâneo redescobrisse seu sentido. O ocultamento é particularmente forte em relação a Claire Démar, autora de duas brochuras reeditadas em 1976 pelo sociólogo Valentin Pelosse, que conservam uma atualidade perturbadora (sexualidade feminina, corpo, amor, morte). Desde seu suicídio em 1834, com cerca de 34 anos, ela foi demonizada enquanto figura de "mulher livre", identificada a um "monstro" portador de "veneno" – expressões de Ernest Legouvé, professor do Collège de France, autor de Histoire morale des femmes reeditada quatro vezes entre 1849 e 1864. Então, reputado favorável à causa das mulheres, ele é considerado como tal por vezes nos dias que correm – prova de que não é fácil situar a contribuição e as dimensões do feminismo contemporâneo e de seus antecedentes "esquecidos", como indiquei em minhas publicações concernentes às saint-simonianas.
Mais do que um diálogo entre feminismo e saint-simonismo, convém falar de relações complexas e variáveis de um momento ao outro (aliança, imbricação, oposição...) entre esses dois movimentos. O feminismo contemporâneo não é um movimento social mas antes um movimento em si, destinado a se prolongar ao se transformar profundamente, ainda dificilmente apreensível como bem mostrou Touraine: a transformação da relação de si consigo é, em sua opinião, uma das contribuições maiores do feminismo (cf. 2006 e 2013). Hoje importa a religação com as origens do feminismo francês inscritas em particular no saint-simonismo e nas obras de Saint-Simon, confrontar as diferentes leituras que dele são feitas e delas tirar consequências respectivas. Essa via permitirá contribuir para a compreensão da importância sempre atual do saint-simonismo, dos saint-simonianos e das saint-simonianas, em particular, daquelas da margem sul do Mediterrâneo.
JU – Suas pesquisas tomam como quadro de observação a região mediterrânea cujas dificuldades atuais (guerras, ondas migratórias) atraem as atenções do mundo. O que sugere aos interessados em conhecer melhor esse espaço controverso?
Christiane Veauvy – Há diferentes formas de olhar o Mediterrâneo dependendo da problemática estabelecida. Em L'alternativa mediterranea (2007), trabalho coletivo que Franco Cassano coordenou com o filósofo do direito Danilo Zolo, esse sociólogo da Itália do sul (ele é da Universidade de Bari) intitula "Necessidade do Mediterrâneo" seu capítulo introdutório. Levar em conta o Mediterrâneo na mundialização tem repercussões sobre a Europa – na medida em que ela deverá deixar de se pensar como a margem leste do Atlântico – e sobre a escolha de temas (exportação da democracia, formas de cultura, migrações, Palestina, direitos das mulheres e feminismo, instalações militares e penitenciárias, projetos euro-mediterrâneos).
"Será possível um diálogo entre a Europa e o mundo islâmico?" Essa questão crucial, examinada na conclusão de L'alternativa mediterranea, esteve no coração da revista Peuples méditerranéens, criada por Paul Vieille (1977-1997). Como sociólogo, ele projetou instaurar trocas interdisciplinares entre pesquisadores das três margens, começadas com dificuldade, à época. Centrado na questão da unidade do Mediterrâneo contemporâneo, sua problemática inicial se transformou no decorrer das trocas para se articular ao redor do Mediterrâneo enquanto lugar a partir do qual se interroga o mundo. Sua abordagem científica foi se diversificando também à medida em que as ciências sociais abriram um espaço mais amplo para a literatura, a crítica literária, a filosofia. Os temas ("a identidade despedaçada", "mulheres do Mediterrâneo", "O Mediterrâneo entre as superpotências", por exemplo), assim como os países estudados (Líbano, Irã, Iraque, Argélia, Itália, Egito, entre outros), recortam questões sempre atuais, como se percebe a partir da consulta a essa revista disponibilizada em linha no site da Universidade de Illinois. Méditerranée, mondialisation, démocratisation. Hommage à Paul Vieille, trabalho que acaba de ser publicado (2017), oferece uma reconstrução inédita do itinerário atípico de Paul Vieille (entre França, Irã, Estados Unidos) e da dinâmica de seus trabalhos pessoais (a Provença nos séculos XIX e XX, a revolução iraniana, o Estado e o Mediterrâneo), que permanecem sem equivalente. A fecundidade de seu percurso e de sua obra se mostra também nas interrogações múltiplas que suscitam.
A obra de Georges Corm forma um patrimônio construído com audácia sobre e com o Mediterrâneo considerado como "o epicentro da fratura imaginária entre Oriente e Ocidente". Ele convida cada um a pensar por si mesmo a partir de questões concretas situadas historicamente e geopoliticamente, como na entrevista que me deu e foi publicada no site da Fondation Maison des Sciences de l’Homme sob o título “Proche-Orient et conscience historique”. Um de seus grandes méritos é estudar conjuntamente o Mediterrâneo, as relações Europa/Oriente cuja abordagem supõe uma releitura da história europeia e a mundialização. La nouvelle question d'Orient foi seu último livro (março de 2017). Georges Corm tem menos preferência pelo estudo da unidade do Mediterrâneo do que pelo estudo de sua pluralidade: Mediterrâneo balcânico, árabe, europeu (entre outros), fazendo aparecer seus conteúdos respectivos e variações em suas relações no tempo e no espaço. Essa perspectiva rompe com toda binaridade esquemática e enganosa – unidade ou conflitualidade?. No quadro das épocas tornadas clássicas para a pesquisa histórica, um grande trabalho se impõe ao redor desses Mediterrâneos sem medo de reconhecer o ou os recortes que uma pesquisa inovadora fará emergir, caso a ocasião, o interesse ou a necessidade se apresentem.
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1 - Pétropolis, Editora Vozes, 2011.
2 - Dardot e Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale, 2010.
3 - Méditerranée, mondialisation, démocratisation. Hommage à Paul Vieille, 2017.
4 - Sunday Times, 7 de maio.
5 - Ecrits féministes italiens; Touraine, A. Le monde des femmes, 2006.
6 - A.Touraine, Carnets de campagne, 2012.
7 - La fin des sociétés, 2013.
8 - Comment sortir du libéralisme?, 1999.
9 - La fin des sociétés, 2013, p. 102-103.
10 - Qu'est-ce que la démocratie? 1994.
11 - La haine de la démocratie, 2005.
12 - Pour une lecture profane des conflits. Sur le "retour du religieux" dans les conflits contemporains du Moyen-Orient, 2012, p. 57.
13 - Pierre Musso, 1999.
14 - Cf. "Inventons l'avenir. Claire Demar (?-1833): Ma loi d'avenir", in Diamo corpo al futuro, organizado por Marisa Forcina, 2013.
15 - Orient-Occident. La fracture imaginaire, 2002.
16 - http://www.fmsh.fr - FMSH-WP-2015-87.
17 - Le Proche-Orient éclaté; Pensée et politique dans le monde arabe.
18 - L'Europe et l'Orient. La construction d'une histoire.
19 - Le nouveau gouvernement du monde. Idéologies, structures, contre-pouvoirs, 2010.
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