Problemas envolvendo mobilidade, acessibilidade e segurança atinjam a todos, mas de forma mais intensa as mulheres. Veja propostas para repensar o planejamento urbano, sob o ponto de vista feminino
POR CAROLINA ITO 24.04.2017
Especialistas na área de arquitetura e planejamento urbano vêm discutindo sobre as diferenças no modo como homens e mulheres usufruem do espaço das cidades. Eles mostram que problemas envolvendo mobilidade, acessibilidade e segurança pública, embora atinjam a todos, atingem as mulheres de modo mais intenso.
São Paulo, como uma metrópole modernista, prioriza a lógica do “ir e vir do trabalho”, obrigando quem mora em regiões afastadas do centro a se deslocar por horas em um trânsito caótico. Esse cenário se torna pior em relação à maioria das mulheres que, além do trabalho produtivo, são responsáveis pelo trabalho reprodutivo. Elas realizam trajetos que não integram a lógica da metrópole, como ir ao mercado, levar os filhos à escola, ao médico, entre outras tarefas ligadas ao cuidado da família.
A pesquisa “Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero”, desenvolvida por Haydée Svab, engenheira e mestre pela Poli-USP, é prova disso. Ela utilizou pesquisas “Origem-Destino”, publicadas pelo Metrô paulistano, entre 1977 e 2007, com intervalos de dez anos, e chegou a algumas conclusões:
Em uma cidade “carrocrata”, como São Paulo, a mobilidade das mulheres parece estar em desvantagem. A lógica da velocidade também transforma o trânsito em algo hostil para pessoas com mobilidade reduzida, bem como para gestantes e mães que carregam filhos pequenos.
Marina Harkot, mestranda pela Faculdade de Arquitetura da USP e membro do Grupo de Trabalho de Gênero da Ciclocidade, considera que a lógica do planejamento urbano, somada às opressões de gênero, raça e classe social, dificulta a mobilidade das mulheres.
Os problemas se tornam piores em relação às mulheres negras de periferia, conta Joice Berth, arquiteta e urbanista, que pesquisa sobre questões raciais, de gênero e direito à cidade. “A gente tem a lógica da ‘Casa Grande e Senzala’ transposta para o desenho das nossas cidades. No caso de São Paulo, os incômodos e descasos ficam nas bordas, nas periferias. Isso foi premeditado pelas políticas higienistas, no período pós-abolição e início da revolução industrial no Brasil”.
Medos cotidianos
Outro problema cada vez mais visível na mídia e em campanhas nas estações de metrô e ônibus é o assédio no transporte público. Em 2015, um caso ficou famoso nas redes sociais, em que uma garota adolescente foi ameaçada de estupro coletivo dentro de um vagão da linha vermelha do Metrô. Ela entrou em estado de choque e foi levada à Sala de Supervisão Operacional, onde apenas a instruíram a depor na polícia.
Algumas companhias de metrô, como as de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife, adotaram o modelo do “vagão rosa”, permitindo apenas a entrada de mulheres em um vagão sinalizado, nos horários de pico. A medida foi criticada com o argumento de que separar homens e mulheres não impede que o assédio continue ocorrendo em outros espaços.
Os obstáculos não aparecem apenas nos meios de transporte, mas também, em um simples trajeto a pé. Rua deserta e sem iluminação adequada é um sinal de alerta para que as mulheres não transitem em determinados lugares, o que obriga a mudança de trajeto ou maior gasto com transporte para evitar situações favoráveis a assaltos e estupros.
Celia Ferreira da Silva, 40 anos, cuida sozinha de 3 filhos e mora em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo. Ela pega três conduções por viagem para chegar às casas onde trabalha como diarista, no centro de São Paulo.
A cidade e o culto ao falo
Joice Berth considera que a própria arquitetura da metrópole informa o quanto ela é masculina. As conhecidas “curvas do Niemayer” e os prédios construídos com formato fálico poderiam transmitir informações que objetificam a mulher e favorecem o assédio. Outro aspecto que pode passar despercebido é o de que a história das mulheres que atuaram na formação da cidade parece ter sido apagada.
Para repensar a cidade
Em fevereiro de 2017, a ONG UPWIT (Unlocking the Power of Women In Technology), em parceria com o Coletivo Mola, realizou o evento “Cities for Everyone”, no Red Bull Station, em São Paulo, para pensar como as cidades poderiam ser mais adequadas às necessidades das mulheres. Fizemos um resumo das principais soluções discutidas durante o evento.
Soluções na prática
Um grupo francês começou a levantar os problemas enfrentados por mulheres que moram em Paris, em 2015, e disso surgiu a ONG Womenability, nome que remete ao conceito de sustentabilidade, só que com foco na vida das mulheres.
A ONG já percorreu mais de dez países e prioriza a visita a cidades que sejam governadas por mulheres, conta Gabriel Odin, um dos coordenadores do projeto, em entrevista feita por Skype.
Um exemplo interessante, que combina tecnologia e ações no off-line, é o projeto Safecity, desenvolvido na Índia, que, além de mapear casos de violência de gênero, orienta as mulheres a participarem ou promoverem campanhas para combater o problema, num processo de empoderamento feminino. Odin acredita que a tecnologia dos aplicativos precisa ser acompanhada de ações na esfera pública. “Os homens podem continuar praticando assédio, a única diferença é que as mulheres poderão reportar os casos em um aplicativo”.
A relação das mulheres com a cidade tem sido discutida por diversos grupos em São Paulo, como o Grupo de Estudos de Gênero do Sindicato de Arquitetos, o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) e, a nível nacional, o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil).
As discussões sempre esbarram no problema da falta de mulheres atuando nos governos e na gestão do planejamento urbano. Sem elas, as políticas públicas podem continuar sendo pensadas na perspectiva masculina – em geral, por homens brancos, heterossexuais, de classe média ou alta. A esperança é que futuras gestoras possam implementar políticas que lidem com a diversidade de gênero, classe e raça, presente entre os que vivem na grande "paulicéia desvairada".
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