*Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta terça-feira (18/4) com o título Intolerância, embrião do ódio.
São estranhos os nossos tempos. Avanços tecnológicos extraordinários, alcances científicos inimagináveis, evolução da medicina capaz de minimizar sofrimentos seculares, visível aperfeiçoamento da proteção jurídica à dignidade, aprimoramento do combate às ações predatórias contra o meio ambiente, dentre outras conquistas, poderiam sinalizar para a construção de um mundo melhor. No entanto, paradoxalmente, a condição humana está revelando a sua fase mais cruel e abjeta, que é o ódio.
O ódio na sua exteriorização autêntica, indisfarçável, que é a violência, física ou verbal. Outras manifestações de intolerância a caminho do ódio são reveladas também pelo desprezo e pela indiferença, pela ausência de solidariedade, enfim, pela insensibilidade e pelo desrespeito ao ser humano.
Conflitos raciais e religiosos, atos de terrorismo, a trágica situação de imigrantes fugitivos desses conflitos são faces de uma crueldade que somada à violência cotidiana está a revelar uma negra faceta da condição humana. Essas mazelas estão substituindo os flagelos das ainda recentes guerras mundiais. As dolorosas experiências bélicas parecem não ter servido de escudo para proteger o homem moderno de suas tendências autofágicas.
O aprimoramento tecnológico coloca diante de nossos olhos cenas dantescas reveladoras dos piores instintos do homem, que representam a negação do humanismo, no sentido do respeito e do amor ao próximo. A reiteração e a exposição em tempo quase real da barbárie parecem não causar mais indignação. Se não há aceitação, a indiferença e o conformismo são uma constante. Estamos como que nos habituando com a violência urbana e com as atrocidades nos quatro cantos do mundo, estamo-nos acostumando com o mal e com o ódio.
Claro que monstruosidades como os cruentos atentados terroristas, as horripilantes cenas de decapitação, bem como as ações de rara crueldade dos criminosos comuns mexem com as cordas mais sensíveis do nosso emocional. No entanto, passado o impacto, os fatos ficam armazenados na lembrança, mas não de molde a que atuemos concretamente para que eles não se repitam.
A verdade é que hoje um assalto, um estupro, um latrocínio, o assassinato de um pai ou de uma mãe pelo filho, ou vice-versa, e outras tantas atrocidades nos chocam menos do que há 30 anos.
Como disse Hanna Arendt, a banalização do mal rompeu barreiras éticas, morais ou religiosas, que eram alicerçadas pela caridade, pela solidariedade e pela complacência. Com esse rompimento o mal se incorporou no nosso cotidiano com a habitualidade dos fatos normais.
Pois bem, o mal está permeando o relacionamento interpessoal e não se exterioriza apenas pelos atos de violência e de crueldade. Ele é exposto em todas as manifestações individuais ou coletivas que se apresentam antagônicas ou apenas contrárias a outras da mesma natureza. É mínima a tolerância com o antagonismo, com a contrariedade, com o pensar diferente. Até no Judiciário, imposições normativas ou decisórias inibem e cerceiam a atuação dos que contestam, ou se opõem e divergem em nome da dialética processual.
A intolerância aos opostos, na realidade, representa a negação do espírito democrático, que deveria reger a conduta individual e coletiva dos membros da sociedade e dela própria, pois ele serviria de eficiente antídoto às discriminações de toda natureza. Democracia não é o mero exercício do voto, é bem mais, é instrumento de paz social, pois conduz à convivência harmoniosa dos contrários.
A intolerância está se transformando em padrão de comportamento para aqueles que se colocam contra alguém, contra alguma ideia, contra alguma tomada de posição ideológica, ou mesmo científica e até jurídica.
A discordância conduz ao desrespeito e este, ao rancor. Fala-se sem prévia reflexão, ofende-se sem nenhum escrúpulo, macula-se reputações com desabrida leviandade, comporta-se com a emoção que é exteriorizada sem o filtro da razão. A arrogância e a prepotência regem os comportamentos. O fenômeno acima pode ser verificado diariamente visitando as redes sociais. As pessoas querem se manifestar sem limitação de nenhuma ordem, querem falar e pronto. Razões e efeitos da fala pouco importam. Noções do certo e do errado, do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso não fazem mais parte da bolsa de valores éticos e morais que deveriam balizar nosso comportamento.
Compreensão, complacência, solidariedade, piedade, humildade, que antes integravam um celebrado e desejado valor, que é o humanismo, estão sendo olvidados e desprezados. Falta humanidade no sentido dos atributos caracterizadores do ser humano e que o distinguem dos demais seres.
Manifestações políticas marcadas pela intemperança, a absurda violência das torcidas de futebol, agressividade por vezes homicida no trânsito, uma violência física sem causa emolduram o quadro dos relacionamentos interpessoais e coletivos.
Note-se que o chamado homem midiático perdeu a sua capacidade de crítica. Recebe a imagem, não usa o filtro da razão e forma juízos meramente emocionais.
Como pouco questiona, tornou-se ele presa fácil de movimentos contestatórios; de opiniões e de medidas aparentemente moralizantes, mas de duvidosa legalidade; de um discurso e de providências repressivas que desrespeitam direitos e garantias individuais, em nome de um combate ao crime de questionável eficácia, mas de pontuais ilegalidades.
Cada brasileiro precisa reassumir os valores do humanismo, sob pena de estar construindo um país, além de marcado por injustiças sociais gritantes, e por uma violência inaudita, uma sociedade estigmatizada também pela intolerância e pelo ódio.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é conselheiro honorário do MDA, ex-presidente da OAB-SP e da AASP, foi secretário de Justiça e de Segurança do Estado de São Paulo.
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