– ON 18/02/2015
Ao encenar luta de Sandra contra fria lógica do lucro, “Dois dias, uma noite” inova esteticamente, renuncia a retórica e faz lembrar Rosselini e De Sica
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
O cinema mais político que se faz hoje no mundo talvez seja o dos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne.
Mas que ninguém entenda mal: nos filmes deles não aparecem grandes figuras da política, nem acontecimentos midiáticos, nem se ouvem expressões grandiosas e abstratas como “democracia”, “ajuste financeiro”, “economia global”, “imigração”, “desemprego”. Tudo se passa no plano miúdo do cotidiano de pessoas comuns. (Se bem que, visto de perto, ninguém é “comum” – mas essa é outra história.)
Em Dois dias, uma noite narra-se, simplesmente, o esforço de uma operária, Sandra (Marion Cotillard), para manter seu emprego numa pequena fábrica. Ela tenta convencer seus companheiros de trabalho a votar a favor de sua permanência. Só que o patrão, sagazmente, disse a eles que, se Sandra for demitida, todos receberão um abono salarial de mil euros. Haverá uma assembleia na empresa, e ela tem que convencer os colegas a abrir mão do abono para que ela possa ficar.
Geografia periférica
À concentração temporal, expressa já no título, corresponde uma extrema depuração narrativa e formal. Acompanhamos, basicamente, as andanças de Sandra por bairros e arrabaldes em busca do apoio dos colegas. Calçadas, bueiros, ruelas de terra, becos, garagens, lojinhas, tendas de ambulantes, pensões, botecos, campos de futebol: nessa geografia empoeirada e periférica está condensado todo um amplo contexto histórico-social, toda a perversidade de um sistema que joga os pequenos, os fracos, uns contra os outros.
Mas, como nos outros filmes dos Dardenne, há uma luz – no sentido real e também no metafórico – que faz os personagens escaparem do determinismo social, do funcionamento cego da engrenagem em que estão inseridos. Uma luz que está nos olhos de Sandra e que às vezes se reflete nos olhos dos outros. Os homens e mulheres que aparecem na tela não são fantoches, não são “tipos” nem estereótipos, são complexos e ambíguos seres morais, com seu arbítrio, seus princípios, suas hesitações.
Por onde passa, Sandra parece fazer aflorar tensões e conflitos que estavam latentes: entre marido e mulher, pai e filho, irmão contra irmão. É uma mulher-bomba cujo artefato explosivo é um dilema moral: ser solidário com o outro ou garantir o interesse próprio (e muitas vezes também o da família, o que complica tudo).
Ética e estética
A ética e a estética dos Dardenne consistem em manter seu olhar literalmente colado à personagem, à altura de seu ombro, sem abandoná-la sequer por um instante. Ouvimos os passos de Sandra e quase sentimos sob nossos pés o cimento, a terra, o asfalto, o cascalho. Tudo se resume a um corpo em movimento, num mundo extremamente concreto, cheio de curvas, ladeiras, desvios e arestas. Um cinema que mostra em vez de discursar e que busca na superfície do visível as realidades mais sutis.
Essa singular combinação entre um realismo áspero e uma elevada espiritualidade (em falta de palavra melhor) faz pensar nos melhores momentos do neorrealismo de Rossellini e De Sica, em que pesem as grandes diferenças entre estes últimos.
Cinema político, em suma, mas que não se esgota num comentário da conjuntura imediata. Política com maiúsculas, que pensa nos conflitos do homem com seus semelhantes e consigo mesmo.
Uma última palavra sobre Marion Cotillard, atriz-camaleoa capaz de dar vida tanto a Edith Piaf como a uma obscura imigrante polonesa na América. Aqui ela é uma mulher “comum”, operária e mãe, vestida com roupas de dia de semana. Não é uma beldade glamorosa. Sua beleza, em última instância, está no seu incansável caminhar.
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