Esse filme é uma pequena pérola que condensa vários dramas masculinos em uma potente história, recomendo
Guilherme Nascimento Valadares
Cultura e arte, Homens possíveis
Ivan Locke é um homem sólido.
Pai de dois filhos e casado há quinze anos, é um diretor de construção especialista em concreto. Admirado por seus empregados, amado pela família e respeitado por seus chefes.
Começamos a seguir sua história à noite, no momento em que ele deixa uma obra e parece seguir de volta pra casa. No semáforo, ao invés de dobrar à esquerda, subitamente muda de ideia e segue para o lado oposto. Faz uma ligação para alguém desconhecido dizendo apenas:
"Estou a caminho, vou estar aí."
Logo entendemos que há algo grave em curso, algo capaz de colocar em cheque toda a sua vida meticulosamente estruturada.
A segunda ligação é sobre concreto, para o seu assistente de obra.
A terceira para sua família, pra dar uma notícia nada agradável.
Cada uma delas nos apresenta uma nova camada da narrativa e do universo de Locke.
Os oitenta e cinco minutos do filme se passam inteiros dentro do carro. O que seria claustrofóbico se torna uma narrativa inescapável, graças a uma atuação foda de Tom Hardy, acompanhada de um potente roteiro assinado pelo também diretor Steven Knight.
Locke precisa chegar a um lugar específico em menos de duas horas, ao mesmo tempo em que tenta impedir sua família de desmoronar e luta para garantir que a maior entrega de concreto da história da Europa, sob sua responsabilidade, não se torne um desastre na proporção de U$100 milhões. Ah, e está gripado.
Temos um diretor de construção lutando por sua família, sua reputação, sua consciência e por... concreto. Num BMW a 140km/h, munido de uma conexão telefônica e nada além de sua engenhosidade para resolver a situação.
Nunca imaginei que fosse dar a mínima para concreto, mas esse filme nos leva a esse ponto.
Um drama masculino por excelência.
De alguém que parece ter feito tudo certo. Em cuja vida há um festival de tensões. Fica óbvio o conflito latente nas relações entre trabalho e família. Que ele soa como o mais controlado dos homens, enquanto reprime, engole e armazena as piores emoções. Que carrega traumas antigos no banco de trás do carro.
O vemos então numa encruzilhada sem volta: não há decisão possível sem um alto preço a ser pago. Ainda que ele tente dizer a todos com quem conversa pelo telefone que vai "consertar tudo".
Qual homem nunca se pegou afirmando cegamente que vai consertar tudo, seja um cano, uma traição, a família, o trabalho, a vida?
Não importa o quanto escale a situação, e a história consegue levar isso até o limite entre o trágico e o cômico, Locke respira, pondera, planeja, age, segue.
Preso em sinucas sem fim, joga com o que tem à mão.
Calha que a vida não é um edifício com bases de concreto, manejável por fórmulas exatas e procedimentos.
Essa é a metáfora mais brilhante da história. Locke trabalha com um elemento que imaginamos ser sólido e firme, mas que na verdade é sensível e delicado como sangue. Ele constrói e articula cada bloco de sua existência, tal qual um prédio, e se vê em crise quando as coisas começam a ruir. Sua própria postura ao lidar com a situação é enervante, às vezes nos deixa pasmos com sua frieza, para então demonstrar imensa falta de tato.
Como se não houvesse fronteiras entre o diretor de construção e o homem, passa a lidar com tudo como se fosse uma só coisa.
Mas sua relação com a família, sua consciência e seus traumas emocionais não são potes de concreto.
Seria então um filme sobre resiliência, palavra, honra? Ou obsessão, controle, neurose?
Proponho que é sobre os becos sem saída nos quais homens se colocam seguindo a cartilha da masculinidade.
Talvez nenhum homem seja tão sólido quanto parece.
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