Em algumas capitais brasileiras, homens condenados pela Justiça por agredirem suas mulheres participam de grupos reflexivos sobre a violência contra mulher. Marie Claire acompanhou umas dessas reuniões e conversou com os participantes
Por Maria Laura Neves, de Belo Horizonte
“O que me faz tentar não ser mais um homem violento é a lembrança da cena: a expressão de horror no rosto das minhas filhas. O medo na cara delas. Os gritos de socorro. Elas chorando, pedindo pelo amor de Deus para eu parar. Minha mulher caída no chão, desfigurada, cheia de hematomas, depois de eu socá-la. Sofro com essas memórias, mas elas estão vivas na minha cabeça. É como se fosse ontem. Além de me arrepender de ter machucado a mulher que me amava, sinto muita vergonha de ter sido tão covarde com ela. Homem que bate é covarde”.
O depoimento acima é do funcionário público mineiro Reinaldo, que por motivos óbvios não quer revelar seu sobrenome. Ele topou dar entrevista contando sua história porque há seis anos ele luta contra o descontrole emocional e a própria agressividade. Depois de ter dado essa surra na ex-mulher, de quem se separou há um ano depois de 17 anos de convivência, os vizinhos denunciaram a agressão. Ele foi condenado pela Justiça pela agressão. A pena foi participar de grupos reflexivos sobre machismo e violência doméstica. O episódio aconteceu pouco antes da Lei Maria da Penha entrar em vigor. Com ela, esse tipo de grupo tornou-se um complemento às penas criminais, que vão da prestação de serviços comunitários à cadeia, embora o índice de homens que são presos por esse tipo de crime ainda seja muito baixo no país.
As cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, São Luís e Campo Grande são algumas das capitais que contam com esse tipo de serviço. Os frequentadores costumam ser homens condenados pela Justiça a participar das reuniões como parte da pena. “Colocamos essa cláusula na Lei para satisfazer o desejo das mulheres. Muitas vezes elas querem continuar a conviver com o parceiro, mas não com o lado violento dele”, diz a ministra da Secretaria de Políticas Especiais para as Mulheres, Iriny Lopes, uma das relatoras da Lei Maria da Penha. “Mas de forma alguma os encontros podem substituir o cumprimento da pena”.
O Projeto Andros, realizado pelo Instituto Alban, em Belo Horizonte, recebe esses homens em encontros semanais. O ‘tratamento’ deve durar quatro meses. Participam da reunião cerca de 12 condenados e dois coordenadores – um homem e uma mulher –, que conduzem as discussões. As conversas giram em torno domachismo, da necessidade dos homens de se autoafirmarem através da violência e sobre como desarticular a impulsividade e a agressividade. No dia em que Marie Claire acompanhou um desses encontros, eles se mostravam claramente desinteressados no bate-papo e um dos participantes até cochilou durante a discussão. Os momentos de maior participação aconteciam quando algum deles fazia uma piada (às vezes machista) ou quando se muniam de argumentos para confrontar os psicólogos que conduziam a reunião, evidenciando que não estavam abertos à reflexão proposta pelos coordenadores.
“Tem homens que aproveitam muito, alguns que levam alguma coisa e outras que não absorvem nada”, diz Cláudia Natividade, uma das organizadoras do projeto. Reinaldo é um exemplo de sucesso. “Quando entrei aqui percebi que não era o único a sofrer com a minha agressividade e isso me deu forças para lutar contra a impulsividade. Ver a minha mulher estropiada me machucou por dentro. Me afastou das minhas filhas, que amo tanto, de pessoas queridas. Não faço o tipo violento, nunca briguei na rua. Meus pais nunca discutiram na minha frente. Antes de bater na minha mulher, eu batia no coitado do cachorro para descontar minha raiva. Mas a minha relação com a minha ex-mulher sempre foi carregada de violência verbal, de ambos os lados. Na minha cabeça machista, eu tinha que dar a última palavra. O poder era meu e eu abusava dele. Nas reuniões aprendi a ouvir minha ex-mulher, minhas filhas e respirar fundo quando o sangue sobe na cabeça. Sempre que sinto que estou voltando a ficar mais nervoso, procuro o pessoal do Andros. Venho até a sede, converso, me acalmo. Para mim, aquele ditado de ‘quem bate esquece e quem apanha lembra da surra’ não tem mais sentido. Eu não gosto, mas não consigo esquecer do que horror que fiz”.
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