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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A man’s world: queremos cidades para mulheres

Luíse Bello
olga cidades mulheres bike
Eu me lembro de assistir um stand up do humorista Donald Glover no qual ele dizia que, ao se mudar para uma cidade que ele considerava mais perigosa nos Estados Unidos, as mulheres que ele levava para casa sempre pediam para que ele as conduzisse até o carro ou táxi na hora de ir embora. Ele começou a se sentir incomodado com a tarefa, até que se deu conta de que ela era motivada pelo medo de suas amigas andarem sozinhas pelas ruas, mesmo que fosse por uma pequena parte da calçada.
A epifania de Donald gerou algumas piadas para seu show de comédia, mas a sensação de insegurança das mulheres ao circular pelas cidades não tem a menor graça. Esse é apenas um dos muitos paliativos encontrados pelo sexo feminino para exercer um direito que devia lhes pertencer, mas que é violado pela constante impressão de que, a qualquer esquina menos iluminada, ela pode sofrer algum tipo de violência.
Existem outras diferenças na maneira como a mulher vivencia a cidade. Em um mundo majoritariamente androcêntrico, é de se imaginar que o desenvolvimento urbano tenha ignorado as necessidades das mulheres em particular. A elas é reservado o passaporte de turista em cidades construídas para os homens e urbanizadas de acordo com o deslocamento deles pelas ruas e avenidas. Tornar as cidades mais amigáveis para as mulheres envolve a compreensão da sua rotina e da sua relação com o espaço urbano. Esse entendimento envolve, em boa parte, as conquistas femininas que transformaram a realidade das mulheres nos últimos anos.
Como, por exemplo, a conquista de espaço no mundo do trabalho. Para começar, essa mudança não implicou em uma divisão dos afazeres do lar, pelos quais elas tradicionalmente se encarregavam. Assumir cargos em empresas e sair de casa para trabalhar foi, por muito tempo, considerado uma espécie de capricho pelo qual a mulher devia pagar o preço. Elas até podiam ter empregos, contanto que não faltassem com seus compromissos de esposa, mãe e do lar – uma condição de milhares de mulheres no mundo inteiro até os dias atuais.
As poucas décadas de história vividas até o presente ainda não foram suficientes para reparar séculos de exclusão social feminina, embora a quantidade de conquistas obtidas desde então seja inegável. Ainda não há um equilíbrio satisfatório entre trabalho e responsabilidades de casa para a maioria das trabalhadoras. A rotina da mulher, trabalhe ela ou não, ainda é essencialmente distinta do homem – e isso afeta diretamente a relação delas com a cidade.
Perceber as distinções de gênero na arquitetura e no urbanismo demanda certa sensibilidade às gritantes sutilezas que cerceiam o direito de ir e vir feminino. A ActionAid realiza um importante trabalho de conscientização nesse sentido. Em agosto, a ONG lançou no Brasil a Campanha Cidades Seguras para as Mulheres, cujo objetivo é conseguir o comprometimento de gestores públicos com a melhoria da oferta dos serviços nas cidades para torná-las mais seguras para as mulheres. A organização procura identificar, através de metodologias participativas, quais as relações e dificuldades que elas enfrentam nos espaços públicos.
O movimento acompanha uma tendência internacional de replanejamento urbano sob a perspectiva de gênero (ou gender mainstreaming, uma estratégia globalmente aceita para a equidade entre os sexos corroborada pela Organização das Nações Unidas).  A cidade de Viena, capital da Áustria, é uma das pioneiras a considerar o fator de gênero em suas políticas públicas. Em 1991, a planejadora urbana Eva Kalil e um grupo de colegas lançaram uma exposição fotográfica chamada “Quem Domina o Espaço Público – A Rotina das Mulheres na Cidade”, que mostrava o dia a dia de um grupo de mulheres vienenses pelas ruas da capital e mais de quatro mil pessoas conferiram a exposição. O evento também chamou atenção da mídia e das autoridades, que perceberam a importância do tema e deram abertura para a criação de projetos urbanísticos que considerassem o viés do gênero. O primeiro a ser criado foi um complexo de apartamentos batizado de Frauen-Werk-Stadt ou Mulher-Trabalho-Cidade.
Para o projeto, foi realizada uma pesquisa que revelou que as mulheres dedicavam mais tempo a cuidar da casa e das crianças que os homens. Por isso, o conjunto contava com diversos pátios nos quais pais e filhos podiam brincar sem se afastar do lar, bem como uma gama de serviços úteis como farmácia, creche, consultório médico e transporte público – mais utilizado por elas do que pelos homens, como apontou outro projeto, anos depois.
Em 1999, a prefeitura de Viena realizou  mais uma pesquisa, dessa vez com os habitantes da cidade para descobrir com que frequência e porque eles utilizam transporte público. Os homens preenchiam o questionário em dois minutos, mas as mulheres simplesmente não paravam de escrever. O levantamento mostrou que eles utilizavam carro ou transporte público duas vezes ao dia – uma para ir e outra para voltar do trabalho. Já as mulheres descreveram um padrão muito mais variado de circulação pela cidade, incluindo em suas rotinas levar filhos ao médico, buscá-los na escola, fazer compras com a mãe e ir ao salão de beleza, por exemplo. Elas utilizavam muito mais o transporte público e andavam bem mais a pé que os homens, além de dividirem mais o tempo dedicado ao trabalho e à família, cuidando de crianças e de pais idosos.
Os planejadores urbanos da cidade, então, decidiram criar um plano que melhorasse a mobilidade dos pedestres e o acesso ao transporte público, além de tornarem a circulação à noite mais segura. A prioridade para elas é a segurança e a facilidade de movimentação. As calçadas foram alargadas e as escadas da cidade ganharam rampas que permitem a passagem de carrinhos de bebê, andadores e cadeiras de roda.
Viena também conta com parquinhos que incentivam a permanência de meninas, já que elas normalmente acabavam sendo expulsas pelos meninos que dominavam o território com suas brincadeiras. O exemplo da capital austríaca é uma inspiração para outros projetos, como os da cidade de Seul, na Coréia do Sul, hoje conhecida como a cidade mais amigável para as mulheres; de Berlim, cujos planejadores urbanos há mais de dez anos se debruçam sobre pesquisas, na aplicação e no envolvimento da população em mudanças que respeitam as diferenças entre os sexos na cidade; e de Camberra, na Austrália, que também realizou um estudo profundo sobre o uso do transporte público pelas mulheres.
No Brasil, o foco das ações da campanha lançada pela ActionAid estão focadas na segurança das mulheres em todo o território nacional. Para fortalecer o diálogo com diferentes áreas do governo e discutir questões relacionadas ao Cidades Seguras Para As Mulheres, a ONG entregou em secretarias municipais e estaduais, prefeituras e governos Estaduais uma carta política que aborda todos os pontos da campanha. Também já foram organizados lanternaços em três Estados (Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo) – uma ação que chama atenção da comunidade para locais públicos com falhas na iluminação e pressiona o poder público tomar providências. Ana Paula Ferreira, coordenadora da equipe de Direitos das Mulheres da ActionAid no Brasil, conversou com o Think Olga sobre a importância do projeto. 
Por que hoje as cidades não são seguras para as mulheres?
Todas as mulheres sentem-se inseguras na cidade e vivem construindo uma série de estratégias, como não usar determinadas roupas, não sair sozinhas, não andar na rua em determinados horários e por aí vai. Isso se deve ao fato de que as cidades, historicamente, foram concebidas e construídas segundo uma perspectiva que não incluía as mulheres como sujeitas beneficiárias do espaço público. Ou seja, como durante muitos anos a gestão pública, o crescimento das cidades, e principalmente, o viver social foram processos eminentemente masculinos, a presença das mulheres nas cidades se tornou um fator estranho que se traduzia em uma violência sistemática na medida em que o espaço público não era pensado para as mulheres. Ruas escuras, demora no transporte público, assédio dentro e fora dos coletivos e falta de preparo dos policiais para lidar com questões ligadas à violência de gênero são exemplos de problemas dessa violência e que fazem aumentar a vulnerabilidade das mulheres nas cidades brasileiras hoje.
E tudo isso piora quando se trata de mulheres que vivem nas periferias das cidades. Na pesquisa que realizamos com 306 moradoras de áreas de periferia de Rio, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Norte, 53,3% das entrevistaram disseram que a má qualidade dos serviços públicos aumenta casos de estupro, assalto ou assédio. Enfim, as mulheres são impossibilitadas de viver plenamente suas cidades, pelo medo, por experiências de insegurança propriamente dita, pela falta de oportunidades, serviços públicos ineficientes e principalmente, pelas desigualdades de gênero presentes na nossa cultura.
Como funciona o trabalho do Cidades Seguras para as Mulheres?
A Campanha Cidades Seguras para as Mulheres foi lançada no início de agosto deste ano durante o Encontro Nacional do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com a presença de representantes de movimentos feministas. Um de nossos objetivos é conseguir o comprometimento dos gestores públicos com a melhoria da oferta dos serviços nas cidades, para torná-las mais seguras para as mulheres. O ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, esteve presente no lançamento da nossa Campanha e recebeu nossa carta política, com as demandas listadas acima, e a pesquisa que realizamos para embasar a campanha. Os números são uma pequena amostra da relação entre a falta de qualidade dos serviços públicos e a sensação de vulnerabilidade das mulheres de periferia e a real incidência de violência entre elas.
A construção da campanha começou em 2011, com a realização de um projeto piloto financiado pela ActionAid internacional. Procuramos identificar, através de metodologias participativas, quais as relações e dificuldades que as mulheres enfrentavam nos espaços públicos. Desse trabalho, foi gerado um relatório internacional com mais quatro países (Quênia, Nepal, Etiópia, Camboja) demonstrando que a violência de gênero nos espaços públicos era uma realidade, mas também um aspecto muitas vezes invisível, assim como a própria existência das mulheres nas cidades.
Com a expansão desse trabalho, hoje atuamos diretamente em seis comunidades de quatro estados brasileiros em parceria com seis organizações parceiras: Maré (RJ – Redes da Maré); Heliópolis (SP – UNAS); Passarinho (PE – Casa da Mulher do Nordeste); Mossoró e Upanema (RN – Centro Feminista 8 de Março); Ibura (PE – ETAPAS); Cabo de Santo Agostinho (PE – Centro das Mulheres do Cabo). Nesses lugares, realizamos oficinas participativas em que as próprias mulheres das comunidades apontam suas demandas e constroem coletivamente o seu entendimento sobre Cidades Seguras para as Mulheres.
Com as informações e demandas levantadas nesse processo, estamos realizando diversas atividades: um abaixo-assinado junto a movimentos sociais em todo o país que queremos apresentar aos candidatos aos governos dos estados, junto com a carta política; articulação com o Fórum Nacional Reforma Urbana e Movimentos Locais para levar à reunião da UN Habitat, em 2016, a demanda para que o direito à cidade seja reconhecido como um direito humano. A ActionAid gostaria que o debate por cidades seguras ocupasse um papel central neste diálogo. Em novembro, levaremos a plataforma de cidades seguras para o seminário internacional de direito à cidade, em São Paulo.
Realizamos também lanternaços na comunidade de Passarinho, em Recife, e na cidade de Upanema, no Rio Grande do Norte. Descobrimos que, motivadas pelo medo da escuridão, muitas mulheres andavam com lanternas nas bolsas. Convidamos então as moradoras para percorrer pontos críticos desses locais com as lanternas nas mãos, para denunciar o problema da falta de iluminação. Em Upanema, no dia seguinte à ação, uma das participantes nos comunicou que a empresa de energia estava consertando os postes de sua rua. Estamos com um lanternaço agendado para 08 de setembro em Heliópolis (SP). Temos ainda uma plataforma digital da campanha, onde as pessoas podem ler textos e assistir a vídeos que retratam como o medo da violência nas cidades impacta as vidas das mulheres. Além disso, estamos com uma ação voltada para as redes sociais, em que as pessoas podem postar mensagens de apoio e engajamento com a campanha com a #cidadesegurasporque. Todo o conteúdo aparece no tumblr www.cidadessegurasporque.tumblr.com
Quais são os principais aspectos das cidades que podem ter melhorias significativas para a população feminina?
A precariedade e até a inexistência dos serviços públicos básicos aumentam ainda mais a vulnerabilidade das mulheres à violência, na medida em que limitam o exercício do Direito à Cidade. É preciso ter em mente que um planejamento urbano sensível a gênero com serviços públicos de qualidade e direito à cidade é pilar fundamental para trazer mudanças significativas nas vidas das mulheres.
Na realização da campanha, construímos uma carta política em parceria com as mulheres que entrevistamos. O documento traz as demandas delas para a melhoria da oferta desses serviços. Em iluminação, governo e concessionárias devem garantir a universalização da implantação e manutenção, fazendo o serviço chegar a todas as ruas, becos, praças, praias, ciclovias, parques, comunidades, pontos de espera por transporte público, e quaisquer acessos a unidades de utilidade pública, como estabelecimentos de ensino e de saúde.
Em transporte, é urgente melhorar a qualidade e a quantidade da frota dos meios de transporte público, priorizando a oferta para as áreas de periferia e comunidades, pois, de acordo com pesquisa que realizamos, a demora no transporte público aumenta sua vulnerabilidade (a maioria das mulheres que entrevistamos relata um tempo de espera de pelo menos 50 minutos pelos ônibus); a retirada ou substituição das propagandas de “outbus” que impedem a visibilidade de dentro dos veículos e favorecem a prática de violência; e a capacitação de motoristas e cobradoras/es para lidarem com casos de assédio dentro dos coletivos.
Em policiamento, destacamos a demanda por capacitação de policiais para o atendimento humanizado aos casos de violência contra a mulher e coibição de casos de assédio sexual, bem como a estruturação dos aparelhos de contenção de violência contra a mulher; e o debate sobre a possibilidade de leis específicas de combate à violência contra a mulher em espaços públicos.
Em relação ao tema da moradia, questão central nas cidades brasileiras, a perspectiva das mulheres – uma vez que na maioria das vezes são elas que ficam responsáveis pelo trabalho relacionado ao cuidado – deve ser levada em consideração; é preciso garantir acesso à moradia digna e, principalmente, que as mulheres tenham segurança na propriedade dos seus lares. Por exemplo, é preciso que os programas de financiamento habitacional atendam às necessidades das mulheres pobres.
Em educação, alguns dos pontos levantados foram a implementação de estratégias para promover uma educação não sexista, não racista, não homofóbica, inclusiva e contextualizada a partir de diálogos do governo com conselhos, fóruns de educação, organizações da sociedade civil e grêmios estudantis. Outra demanda recorrente que tem impacto direto no acesso das mulheres ao mercado de trabalho e à formação acadêmica é a melhoria na qualidade e na quantidade de creches – reivindicação história do movimento de mulheres, principalmente nas áreas de periferia. 
Como você definiria uma cidade segura para as mulheres?
A mulher pode usufruir do seu direito à cidade quando ela vive livre do medo e da violência, e livre das violações de direitos que surgem nos espaços onde mulheres vivem e trabalham. O medo das mulheres limita o uso do espaço urbano cada vez mais. Em determinados lugares, elas se transformam em prisioneiras em suas próprias casas. Uma cidade segura para as mulheres é principalmente aquela em que a sua cidadania está garantida através do acesso a serviços, com liberdade e ir e vir quantas vezes forem necessárias; é aquela onde elas podem andar sozinhas, não se preocupar com horários, nem com seu modo de se vestir. Uma cidade segura para as mulheres é aquela em que a vontade das mulheres é respeitada, ou seja, é a cidade em que elas têm autonomia para ser quem querem. 
Existe algo que as mulheres possam fazer para fomentar essa mudança?
Precisamos nos unir em torno desse tema. Convidamos as mulheres a se engajarem nesta campanha e em outras iniciativas que tratem do assunto. É importante dar visibilidade e desnaturalizar o comportamento machista que gera violência e assédio contra as mulheres. Precisamos tratar do tema de cidades seguras para as mulheres deixando clara sua relação com os temas de direito à cidade e de planejamento urbano. As moradoras de São Paulo estão convidadas a participar do lanternaço em Heliópolis. E as mulheres de outros estados que participam ou não da campanha podem acompanhar nossos canais digitais para se engajar e ficar a par das discussões sobre o tema e também conhecer outras organizações e/ou iniciativas que tratem deste assunto. E, claro, todas elas podem e devem denunciar a violência contra a mulher. É preciso que trabalhemos na construção de uma rede de sujeitas engajadas através da solidariedade das mulheres para rejeitar a violência e também lutar coletivamente por uma nova realidade nas cidades.
Arte: Raid71

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