Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Liberdade sobre o próprio corpo veio com o dever de ser belo, diz historiadora

Denise Bernuzzi de Sant’Anna conta como a beleza, no Brasil, se transformou numa religião e o corpo, numa obsessão

por Nirlando Beirão — publicado 25/12/2014
Martha Gisele
Martha Rocha, com suas polegadas a mais, e a esguia Gisele Bündchen, padrão exportação
Reprodução e William Volcov/Brazil Photo Press/AFP
História da Beleza no Brasil é um título que denota alguma ambição. Mas Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora de História da PUC-São Paulo, cumpre o que promete. A obra nasceu de um doutorado na Universidade de Paris VII, onde teve como orientadora Michelle Perrot, autora da copiosa coleção de livros sobre a história da condição feminina. O fascínio pelos cosméticos, o sex appeal, o bombardeio publicitário, a fisiocultura dos músculos, o desnudamento das praias, a conversão dos homens à vaidade são alguns dos temas pelos quais Denise passeia, com documentadíssima erudição. O livro começa com o vaticínio de um cronista carioca de cem anos atrás que imaginava, para a mulher do ano 2000, como definitivo padrão estético, “pisar com mais elegância e falar com mais correção”. O iludido Urbano Duarte errou feio.

CartaCapital: Quando é que o Brasil começou a se preocupar com a beleza? A sinhazinha da casa-grande na colônia já se preocupava com as aparências? E as donzelas românticas no século XIX, elas tentavam se cuidar?

Denize Bernuzzi de Sant’Anna: O padrão de beleza no Brasil sempre foi voltado para os ideais europeus, só muito mais tarde é que prevaleceu o padrão norte-americano. Na era colonial, as referências europeias demoravam a chegar aqui, quando chegavam. No século XIX, os dois ou três produtos de beleza disponíveis só eram usados nas festas. A beleza estava nas roupas, no porte, na postura. Confundia-se com a distinção social da elegância. Estava circunscrita aos acessórios. Em relação ao corpo, o máximo de vaidade que uma mulher podia aspirar era a cintura fina, com cintas, espartilhos...

CC: Não é muito diferente da mulher que se sacrifica, hoje, pela “barriga negativa”.

DBS: O ventre chapado. Como se diz hoje, barriga tanquinho. Atualmente é uma exigência, e não somente para as mulheres. No passado, elas podiam cultivar certa barriguinha. Uma das hipóteses do meu livro é que todo mundo conquistou a liberdade de fazer com o corpo o que bem quiser, quando antes as mulheres eram muito mais submetidas às convenções sociais, obedientes ao pai ou ao marido. Mas essa liberdade traz consequências.

CC: Que consequências?

DBS: Se você quer emagrecer, se quer se tatuar ou fazer cirurgia plástica, tendo recursos você faz. Mas ganhamos o peso da obrigação. O dever de ser belo é considerado absolutamente natural. Quando digo “belo”, tenho de fazer a ressalva de que não há um padrão único, há vários, mas a ideia predominante é que você tem obrigatoriamente de cuidar do corpo e da aparência. Não é mais tolerável ouvir uma mulher dizer: “Não quero mais saber, eu assumo minha velhice”. Pode até haver uma ou outra que pense assim, mas é raro. O Brasil é muito mais exigente nisso do que a Europa, por exemplo.

CC: Fiquei aqui me perguntando: na iconografia colonial ou imperial, em Rugendas ou em Debret, existe registro de alguma mulher olhando-se no espelho?

DBS: Que me lembre, não. Como em alguns pintores holandeses, Vermeer, por exemplo, não. A questão é sociológica. A mulher que se olha ao espelho vira uma espécie de centro do mundo. No Brasil do passado, isso era inconcebível. Só no século XX é que o corpo feminino entra no foco. No Brasil, foi produzido esse ideal de beleza – sempre jovem, saudável, sensual e muitas vezes desnuda. É a imagem que prevalece nas promoções do turismo, por exemplo. Insisto: foi um ideal socialmente construído. Uma mudança interessante, que aparece nas pesquisas de mercado, é que as pessoas continuam querendo agradar às outras, mas também querem se sentir bem com elas próprias.

CC: Historicamente, o padrão visava à chamada elite branca, não é?

DBS: A documentação traz um problema porque, como a elite é letrada, ela escreve para ela própria e sobre ela própria. Mas em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre conta isso, outros documentos primários afirmam que as mulheres pobres de São Paulo usavam flores no cabelo. E havia toda uma arte no uso do ornamento, a cor da flor tinha de combinar com a cor da pele. Os viajantes estrangeiros também anotaram o uso de adornos. Em São Paulo, uma memorialista refere-se a latinhas com tinta que usava em dias de festas. Cores discretas, um leve carmim.

CC: Não existia uma indústria nacional de cosméticos.

DBS: Não.

CC: Eram, então, produtos artesanais.

DBS: Por exemplo, banha de porco para lustrar o cabelo, de forma a brilhar sob a luz de vela. Dava alguma cerimônia. As mulheres usavam, os homens também. As receitas eram bem caseiras, para lustrar os dentes utilizavam fumo de corda, vinagre. Loção importada não era tão comum. As pessoas faziam o próprio perfume, água de rosas para perfumar o banho de bacia. O famoso Leite de Rosas, criado por Francisco Olympio, é dos anos 1920.

CC: Um dos nossos ícones femininos é a Garota de Ipanema. A beleza sensual, quase desnuda, como a senhora define. Não por acaso: a praia é o lugar por excelência para se exibir esse padrão.

DBS: A praia entrou na vida das pessoas pela mão dos higienistas e dos médicos. Recomendavam-se banhos de mar para certo tipo de cura. Aqui demorou mais porque a praia, no Brasil, funcionava como depósito de lixo e esgoto. Nos anos 1910, 1920, uma revista mundana da elite carioca, como a Fon-Fon, já trazia fotos de moças na praia, assim como a Revista da Semana. As moças com maiôs enormes e toucas. A inauguração do Copacabana Palace, com toda aquela imponência, em 1923, ajudou a mudar a paisagem e o comportamento em relação à praia. Depois houve a fase mais ousada do maiô duas-peças, mas o biquíni mesmo, que surgiu no mundo em 1946, só se consagrou aqui nos anos 60. Coincidentemente, com o biquíni começam a aparecer reportagens explorando o pavor da celulite. Aquele velho dilema: libera, por um lado, cria um problema, por outro.

CC: Mas no Brasil a tolerância com as cheinhas é maior, não? O culto às curvilíneas parece ter mais adesão do que o apelo das magrelinhas de passarela.

DBS: É, muito maior do que na França, por exemplo, onde morei. A França cultiva a imagem da mulher-flor, uma herança do ideal romântico do século XIX, a mulher delicada, um pouco etérea, de uma beleza não muito carnal. O charme está nessa coisa meio velada. Lá, a mulher musculosa, pesada, não tem o menor apelo. Aqui é diferente. A moda hoje privilegia as magras, mas as cheinhas são toleradas. Aliás, até os anos 50, 60, os conselhos que se refletiam na publicidade eram no sentido de engordar, não emagrecer. Folheando as revistas femininas percebe-se que as mulheres queriam aumentar os seios e ter pernas mais grossas. “Seca como um bacalhau”, “espanador da Lua”, “Olívia Palito”, os apelidos para as magrinhas não eram nada lisonjeiros. Tem aquele poema do Vinicius de Moraes, Receita de Mulher *, que marca a mudança, a mulher tem de ser magra, a saboneteira visível, a rótula do joelho à mostra.

CC: Antes disso houve, em 1954, o episódio das 2 polegadas a mais de Martha Rocha, que perdeu a eleição de Miss Universo porque fazia o padrão cheinha.

DBS: O brasileiro, não importa qual seja sua classe social, tem esse tipo de apetência pelas curvas. Elas podem apenas ter trocado de lugar no imaginário feminino. A nádega empinada é um atributo muito apreciado na mulher brasileira.

CC: Daí essas mulheres-frutas, a Mulher Melancia, a Mulher Moranguinho, a Mulher Melão. Por outro lado, se você pergunta mundo afora quem é a mulher que simboliza hoje a beleza brasileira a resposta vai ser: Gisele Bündchen.

DBS: Gisele é um padrão ditado de fora, assim como no passado as meninas queriam, graças aos cosméticos Max Factor, Avon e Helena Rubinstein, parecer-se com as estrelas de Hollywood.

CC: A propósito, a beleza está muitas vezes ligada ao sonho de ascensão social. A mãe quer que a filha bonitinha vire modelo, assim como os garotos querem ficar ricos rapidamente tornando-se craques de futebol.

DBS: O Brasil cultiva o mito do sucesso obtido num passe de mágica. Claro que todas as sociedades aceitam isso em algum nível. A sociedade americana, por exemplo, é toda voltada para o sucesso. Mas quando uso a palavra mito, em relação ao Brasil, não é por acaso. Aqui as pessoas acabam, bem ou mal, acreditando nesse sucesso obtido num passe de mágica. Veja aí uma mistura de ciência com crença; a ciência avançada da cosmetologia, dos cremes, do Botox e da cirurgia plástica que vai produzir em você um milagre. Fiz trabalho de campo em academias e percebi o mesmo fenômeno. “Daqui a um ano estarei assim...”, dizem. Os mais fissurados ainda se enchem de remédios. A mesma coisa acontece em relação ao trabalho. Nossa sociedade tem ranço escravocrata. O esforço físico é menosprezado. As pessoas pensam assim: “Vou por esse caminho, porque logo vou me tornar bilionário”.

CC: Os homens são hoje tão vaidosos quanto as mulheres, não são?

DBS: Os cosméticos sempre foram associados à mulher. Ela é historicamente o objeto da sedução. De repente, a publicidade descobriu o homem e ele entrou no mercado da beleza de um jeito a princípio mais viril, dando ideia de que estava se tratando e não propriamente se embelezando. A publicidade estimula no homem a autoestima, tipo: “Estou usando esse creminho porque isso me faz gostar mais de mim”. Para o homem, a beleza era associada à humilhação de agradar ao outro, quer dizer, à outra. As coisas mudaram. Por outro lado, as mulheres entraram com força nesse universo do fisiculturismo, no mercado dos músculos, que antes era exclusivamente masculino.

CC: É verdade que o Brasil é o país que mais consome cirurgia plástica no mundo?

DBS: Quando terminei o livro, estávamos em segundo lugar, mas tenho informações de que ultrapassamos os Estados Unidos. Para um País com tantas outras urgências, como é que pode?

CC: Afinal, o cirurgião plástico mais famoso do mundo é nosso, o doutor Pitanguy.

DBS: Ele e tantos outros. Há um fator importantíssimo; somos um país jovem e a competição no mercado de trabalho e no mercado conjugal é muito violenta. Na Europa, uma pessoa de 40 anos está no meio do caminho; aqui já é considerada velha. Fica difícil ostentar os sinais da velhice, a tentação de usar os recursos da medicina e da tecnologia é enorme. Aceitar a velhice é sinal de fracasso pessoal, aqui e também nos Estados Unidos. Portanto, nem é questão de ser mais ou menos feio; é a medida de seu sucesso ou de seu fracasso. Daí a gente ver algumas cirurgias tão radicais.

CC: A dessa atriz Renée Zellweger, que ficou irreconhecível...

DBS: É, essa menina e tantas outras. No caso dela, não sei se não foi erro médico. Uma entrevistada minha usou uma expressão ótima: passar o corpo a limpo. Não existe um limite dado para as cirurgias. O limite é de sua escolha pessoal. Daí essa ansiedade, o confronto íntimo entre a busca desenfreada da beleza e o preço a ser pago por isso. Antes, você se confrontava com a moral. O padre proibia saia curta, o pai e o irmão não deixavam maquiar, o marido fiscalizava. O confronto hoje é você diante do espelho: “Será que estou gorda? Não estou velha?” A gente tem mais liberdade e isso é ótimo. Mas a responsabilidade leva à solidão. Nós estamos sozinhos para decidir o que fazer de nosso corpo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário