Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

domingo, 28 de dezembro de 2014

Não há como justificar a previsão legal do feminicídio

O Senado Federal aprovou recentemente o projeto de lei que concedeu o aval para que o “feminicídio” fosse incluído no Código Penal. Apenas para bem pontuar a questão, “feminicídio” nada mais é do que o assassinato de uma pessoa do sexo feminino, pelo simples fato de ser mulher. É, segundo a doutrina, o assassinato motivado por uma questão de gênero, ou seja, mata-se apenas porque a vítima é mulher.
Segundo o Projeto de Lei do Senado (PLS) 292/2013, de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, que ainda depende de aprovação da Câmara dos Deputados, o “feminicídio” figurará como uma nova circunstância qualificadora do crime de homicídio. Sendo assim, tal qual se dá com as demais qualificadoras já existentes, o autor do “feminicídio” ficará sujeito ao cumprimento de pena de reclusão de 12 a 30 anos.
De acordo com a redação do referido Projeto de Lei, o crime de homicídio será considerado qualificado quando o delito for praticado “contra a mulher por razões de gênero” (artigo 121, parágrafo 2º, inciso VI). Mas, qual, ao cabo de contas, seria o conceito de “razões de gênero”?
Para o legislador, a tipificação do  “feminicídio” só ocorrerá  “quando o crime envolve: I- violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Eis aí, portanto, a ideia do que seriam as tais “razões de gênero”.
Assim, para que fique bem claro, para que um homicídio cometido contra uma mulher seja considerado “feminicídio”, será preciso que o delito seja praticado ou no âmbito da “violência doméstica”, ou, então, em situação clara de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Fora dessas situações, ainda que a vítima seja mulher, não restará caracterizado o “feminicídio”.
Além disso, o PLS também prevê que a pena poderá ser aumentada de 1/3 até a metade “se o crime for praticado: I- durante a gestação ou nos 03 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III – na presença de descendente ou ascendente da vítima”. Por fim, vale mencionar que o “feminicídio”, assim como ocorre com as demais hipóteses de homicídio qualificado, integrará a lista dos chamados “crimes hediondos”.
Positivamente, o projeto pode ser compreendido como uma consequência lógica da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), já que, em real verdade, prevê uma conduta típica que, de fato, passou despercebida em 2006.
Nesse ponto, é relevante mencionar que a Lei Maria da Penha trouxe importantes inovações à nossa legislação penal, sobretudo porque conferiu à mulher um arcabouço de medidas protetivas que, ao menos até então, não existiam no Direito Penal pátrio. Sem dúvida, a Lei 11.340/2006 tornou mais eficiente a proteção da mulher contra a violência doméstica.
Insta aqui mencionar que a Lei Maria da Penha, apesar da sua importância no cenário jurídico nacional, foi, e ainda é, alvo de diversas críticas. Com efeito, justamente por ser uma lei elaborada para beneficiar e proteger apenas a mulher, muitos a criticam por considerá-la inconstitucional.
Realmente, o homem que é vítima de “violência doméstica” não pode ser beneficiado pelas medidas protetivas e de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Em razão disso, podem mesmo surgir algumas situações absurdas na prática. Por exemplo, se um pai agride uma filha, a Lei 11.340/2006 poderá ser aplicada, para assim “expulsar” e afastar o agressor do convívio com a vítima, porém, se a vítima for um filho, as medidas protetivas insertas na predita Lei não poderão ser aplicadas. Positivamente, tamanha diferença de tratamento para fatos aparentemente idênticos causa certa perplexidade.
E, mesmo ciente das desigualdades criadas pela Lei Maria da Penha, o legislador, agora, seguindo a mesma linha daquela lei, que é a de conferir maior proteção apenas à mulher, surge com a ideia de incluir o “feminicídio” no Código Penal. Ao que parece, as críticas e o risco da inconstitucionalidade não impediram que o legislador incidisse nos mesmos equívocos.
Em que pese a preocupação da sociedade com a proteção específica da mulher contra toda e qualquer forma de violência, máxime porque, de fato, é ela a principal vítima de agressões e maus-tratos no âmbito familiar e doméstico, a inclusão do “feminicídio” no nosso Código Penal reclama uma análise mais profunda.
Como bem se sabe, o artigo 5º da Constituição Federal, prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”. Além disso, logo no inciso I, do predito artigo, está previsto que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Como se pode perceber, sob a ótica da nossa Carta Magna, o princípio da igualdade vale para todos, ou seja, não se é permitido fazer distinções em razão de sexo, raça, cor, profissão etc.
O princípio constitucional da igualdade (ou isonomia) deve ser entendido sob dois aspectos, quais sejam: igualdade no processo de criação de uma lei, de forma a evitar que se criem privilégios a um determinado grupo ou classe de pessoas, e, ainda, tratamento isonômico perante a lei, ou seja, a lei deve ser aplicada, igualmente, a todos.
Nesse sentido, Alexandre de Moraes, no livro Constituição do Brasil Interpretada, editora Atlas, 6ª edição, página 181, ensina que “o princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, diante do legislador ou do próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que eles possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e os atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.
A desigualdade na lei produz-se quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal, quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado”.
Já Celso de Mello, preclaro ministro do STF, ao discorrer sobre o princípio da isonomia nos autos do Mandado de Injunção 58, foi bem claro ao asseverar que “esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade”.
Assim, sendo certo que o princípio da isonomia visa evitar que o legislador, ao elaborar as leis, nela inclua “fatores de discriminação”, como, então, justificar a previsão legal do “feminicídio”?
Para que fique bem claro, não se está aqui afirmando que a inclusão do  “feminicídio” no Código Penal seria um exagero, porém, em termos bem objetivos, é evidente que o novo tipo penal é, sem dúvida, “discriminatório”.
Com efeito, partindo do princípio de que homens e mulheres “são iguais em direitos e obrigações” e, ainda, que “todos são iguais perante a lei”, como justificar que, de um lado, o homem que mata uma mulher “por razões de gênero”, no âmbito de “violência doméstica e familiar”, seja punido nos termos do parágrafo 2º, do artigo 121, do Código Penal (homicídio qualificado) e, de outro, a mulher que mata o marido “por razões de gênero”, no âmbito de “violência doméstica e familiar”, possa responder, a depender da hipótese, nos termos do caput do crime de homicídio (tipo simples, cujas penas variam entre 06 e 20 anos de reclusão)?
Em termos mais claros, nota-se que o legislador criou um discrímen entre homens e mulheres. De fato, o homem, ainda que venha a ser vítima de “violência doméstica”, não terá a mesma proteção legal que ora se pretende ver conferida à mulher.
Poder-se-á dizer que, como regra geral, o homem não é vítima de “crimes de gênero”, ou seja, ninguém mata outra pessoa pelo fato de ser homem. Contudo, embora até seja mesmo possível compreender que, estatisticamente, a mulher sofre muito mais com a sua condição de “mulher” do que o homem, pelo fato de ser “homem”, fato é que, de acordo com o PLS, um dos fatores utilizado para justificar a existência de “razões de gênero” do “feminicídio” é a “violência doméstica e familiar”.
E, como bem se sabe, ao menos nesse campo (violência doméstica), tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas. Logo, a discriminação criada pela lei, já por este enfoque, não se baseia em dado objetivamente lógico.  
Até porque, é sempre preciso lembrar que a ideia de “violência doméstica” não compreende apenas a relação marido/mulher, companheiro/companheira etc., pois, como bem preceitua o parágrafo 9º, do artigo 129, do Código Penal, o termo abrange a violência praticada contra “ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”. Nota-se, pois, que se trata de conceito bem amplo, que permite diversas situações práticas, nas quais, nem sempre, a mulher será a vítima.
Excluir o homem desse cenário é, sem dúvida, um fator de discriminação, que desafia a igualdade pregada pela Constituição Federal.
Positivamente, caso fosse mesmo intenção do legislador proteger com mais eficiência as vítimas da violência doméstica, seria muito mais adequado e lógico que, ao invés de incluir o “feminicídio” no rol do parágrafo 2º, do artigo 121, do Código Penal — o que, como visto, pode ser compreendido como uma afronta ao princípio da igualdade —, a qualificadora para o homicídio fosse aplicada em todos os casos em que a vítima, seja homem seja mulher, tenha sido morta dentro de um contexto de “violência doméstica”.
Desta forma, pelo menos, a isonomia entre todos perante a lei seria devidamente resguardada.
 é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário