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sábado, 13 de dezembro de 2014

Crianças e adolescentes sofrem violações por parte do Estado em Unidades de Internação

11.12.2014



Marcela Belchior
Adital

Vinte e quatro anos após a conquista histórica da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no Brasil, ainda são negados direitos básicos para o pleno desenvolvimento da infância e adolescência. No Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, a Adital mostra que, no Estado do Ceará (Brasil), esses jovens enfrentam o que seria o momento mais crítico das Unidades de Internação de jovens que cometem infrações. Eles sofrem tortura, estupros, homicídios e outras violações por parte, justamente, de quem mais deveria assegurá-los justiça: o Estado.

Nesta semana, a Associação Nacional dos Centros de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes (Anced), o Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Fórum DCA Ceará) e o Centro de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Cedeca Ceará) deram entrada em uma representação perante 10 órgãos federais e de defesa de direitos humanos, além do próprio governador do Ceará, Cid Gomes. As entidades denunciam a grave situação do Sistema Socioeducativo do Ceará em 2014 e pedem providências urgentes.

Segundo as organizações de defesa, a tortura se tornou prática cotidiana e banalizada nas unidades cearenses, por meio de lesões corporais, ameaças e privação de água, bem como do isolamento compulsório ilegal, conhecido como "tranca”, e da insalubridade latente. Denuncia-se também o triplo homicídio de adolescentes internados no Centro Educacional José Bezerra de Meneses, em Juazeiro do Norte, sul do Estado, que permanece sem investigação.
Reprodução
Denúncias revelam o isolamento das famílias e a privação 
de necessidades básicas dos internos. 
Um caso emblemático apontado no documento trata da recém-inaugurada Unidade de Internação Provisória, na cidade de Sobral, norte do Ceará, que, em menos de dois meses de funcionamento, já institucionalizou a tortura, a "tranca”, sofreu diversos motins e teve sua diretora exonerada. "O caso em questão ajuda a esclarecer que, embora a superlotação seja uma questão ainda de difícil enfrentamento, não é a principal causadora dos conflitos nas unidades, já que a unidade em questão nunca esteve acima da capacidade”, destaca o Cedeca Ceará.

De acordo com a entidade, há denúncias de que houve pelo menos 16 rebeliões só em 2014, com tiros contra os adolescentes privados de liberdade e fugas em massa. Cerca de 100 adolescentes encontram-se foragidos. Somam-se a isso denúncias de estupro dentro desses espaços, cometidos tanto por outros internos como por agentes públicos, sem que tenha havido apuração efetiva.

"Apontam-se indícios de irregularidades na gestão das unidades e na utilização de recursos públicos nos convênios com entidades cogestoras”, expõe o Centro de defesa. "Fora isso, os processos seletivos de profissionais são uma grande incógnita, uma vez que ocorrem sem edital público, sem critérios técnicos e sem capacitação prévia”, complementa.

A representação das entidades requer que os crimes de tortura sejam investigados com urgência e punidos. Solicita ainda reformas institucionais para garantir profissionais qualificados e processos seletivos transparentes e objetivos, além da criação do Mecanismo Estadual de Combate e Prevenção da Tortura, para monitorar futuras violações.

Visita constata torturas
No último dia o8 de dezembro, Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura visitou a Unidade de Internação Patativa do Assaré, no bairro Parque Santa Maria, em Fortaleza, e afirma ter verificado graves violações. "Dezenas de adolescentes torturados, com doenças contagiosas, alocados em ambientes insalubres, sem colchões, lençóis, sem papel higiênico ou água potável”, aponta o Cedeca Ceará.

Segundo a entidade, o que se observou foram 91 adolescentes encarcerados em apenas dois blocos, sem visitas de familiares, sem nenhuma atividade de educação, esporte ou profissionalização. As visitas estariam paralisadas há quase duas semanas e as demais atividades paralisadas há mais de três meses.

Além disso, o Comitê aponta que dezenas de adolescentes apresentavam lesões graves decorrentes de balas de borracha e agressões físicas, que teriam sido provocadas por forças policiais durante suas últimas ações nas rebeliões e em vistorias posteriores. A última delas ocorreu em 06 de dezembro e não haveria tido qualquer atendimento médico ou encaminhamento para a realização de exame de corpo de delito.
Reprodução
Centro Educacional encarcera adolescentes em condições inóspitas e visitas de familiares 
estão proibidas há 2 semanas
Distância entre leis e práticas sociais
Em entrevista à Adital, o assessor jurídico do Cedeca Ceará, Rafael Barreto, discute quais barreiras existem, hoje, para a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que versa sobre todas as violações que atingem crianças e adolescentes, dentre outros temas, como o regime de sanção aos jovens em conflito com a lei. Segundo ele, falta comprometimento por parte do Estado, especialmente dos poderes públicos municipais, e foco da mídia e da sociedade nas causas e caminhos para a garantia do pleno desenvolvimento da juventude brasileira.

ADITAL – 24 anos após a aprovação do ECA, como essa legislação vem sendo aplicada?
O ECA foi uma conquista histórica dos movimentos da infância e da juventude do Brasil. É, até hoje, um marco na legislação, um modelo internacional na gestão da política de atendimento, na garantia de direitos e no regime jurídico do ato infracional. Mas há diferença entre as leis e as práticas sociais.

Todas as situações de vulnerabilidade da criança e do adolescente passam pelas políticas municipais, mas os municípios ainda são pouco comprometidos com essa problemática, são muito atrasados na execução da legislação. O Município de Fortaleza, por exemplo, previu um corte de R$ 9 milhões para as políticas de crianças e adolescentes em 2015, 80% a menos em relação a 2014.

Com relação ao Estado, que tem competência socioeducativa através das Unidades de Internação, temos poucas delegacias especializadas, a polícia não tem treinamento especializado para tratar com as crianças. Isso significa que a Justiça no Estado não tem estrutura.
Reprodução
Poder Público não está comprometido com a questão. 
ADITAL – A sociedade brasileira discute, nos últimos anos, medidas que vão de encontro ao Estatuto, como a redução da maioridade penal. Isso demonstra que a legislação ainda não se integrou à nossa sociedade? Precisa haver ainda o amadurecimento dessa visão?
O senso comum se desfoca dos problemas. A criminalidade juvenil é uma consequência de graves problemas sociais, e não a causa. A internação de adolescentes em uma unidade penal não iria causar qualquer mudança nos índices de criminalidade. Nos anos 1990, quando aprovaram a lei de crimes hediondos, endurecendo em muito a legislação, não houve redução desse tipo de crime; pelo contrário, houve aumento. Isso mostra que não existe essa relação.

Há uma desconhecimento muito grande do ECA e um mau foco. Hoje, 90% dos adolescentes que cometem um crime já sofreram crimes contra si anteriormente, como maus tratos por parte da família, abuso sexual ou envolvimento de parentes com o tráfico de drogas. Quando ele cresce, vai atuar no dia a dia da mesma maneira.

Não acho que a população brasileira seja reacionária, conservadora. Acho que existe um foco difundido pela mídia que potencializa esses discursos.

ADITAL – Atualmente, como está o aporte financeiro e institucional aos movimentos sociais atuantes na defesa de crianças e adolescentes?
A grande maioria das entidades assistenciais, pelo ECA, tem a prioridade da municipalização, ou seja, vínculos com municípios. Mas estes têm feito cortes de recursos e apresentado muita insegurança jurídica. Em Fortaleza, quando houve a mudança de gestão, em 2013, houve paralisação no repasse de recursos. Isso causa endividamento de algumas entidades.

Entidades como o Cedeca têm tido uma carência muito grande de financiadores. Os financiadores internacionais estão cada vez atuando menos no Brasil, com a visão de que o país se tornou rico, desenvolvido — o que não corresponde à realidade.

De um modo geral, o aporte está bem aquém do que deveria ser. Todo o orçamento para a infância e adolescência da cidade não chega à metade do que é destinado ao Gabinete do Prefeito. E o Gabinete do Prefeito não é responsável por nenhum tipo de política pública de prestação de serviços.

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