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domingo, 7 de dezembro de 2014

Dever de casa, drama de todo dia

Tarefas em excesso se tornam um problema na rotina da família. Onde está o ponto de equilíbrio?

ISABEL CLEMENTE
07/12/2014

Volta e meia ouço amigas reclamarem da quantidade de dever de casa que os filhos trazem da escola diariamente. Páginas e páginas de tarefas a serem feitas depois das aulas.  Visto como prova da eficácia do ensino tradicional, o dever de casa já foi questionado por especialistas, não apenas por mães e pais cansados de ter que botar a criança para cumprir infindáveis tarefas todo-santo-dia.

A quantidade de dever que muitas escolas prescrevem tem se tornado um desafio para a capacidade das famílias se organizarem. Nem sempre o filho pode, consegue ou deve fazer sozinho. Quando as crianças são pequenas, a ideia é "promover o entrosamento dos pais com o conteúdo da escola". Então, dá-lhe pesquisas e tarefas nada simples como "trazer no dia seguinte uma garrafa pet, uma cartolina azul e recortes de animas da fazenda". Daí você lembra que não tem garrafa pet em casa,. porque refrigerante, mate e demais bebidas industrializadas não fazem parte da dieta familiar; descobre que a única papelaria aberta depois de você ler a agenda do filho só tem cartolina branca; e que nenhuma das revistas da casa publicou uma única foto de vaca nas últimas semanas. Vocês folhearam todas e encontram apenas um maldito tigre.

Quando a filha mais velha entrou para a escola, estávamos em Brasília. Aos 4 anos, trazia lições para casa três vezes por semana. Parecia um exagero para uma criança tão pequena, mas era divertido. Sentávamos para recortar revistas e jornais, ela colava como bem entendia em seu caderno enquanto eu tentava afastar a irmã que, com menos de um ano, só poderia amassar ou comer o trabalhinho.  Mas havia dias que ela não estava a fim. Nem eu.

No ano seguinte, as tarefas passaram a ser diárias, e a graça foi dando adeus. Letícia tinha apenas 5 anos e a irmã andava rápido em direção aos 2 - e a todo o material escolar que não lhe pertencia.  De manhã, quando o cortisol - o hormônio do estresse - das crianças está no auge (é o que diz recente estudo de uma seguradora americana), o nosso também está.  À noite, um casal retornando do trabalho com duas menininhas querendo atenção era fortíssimo candidato a esquecer de procurar recortes do fundo do mar. A lição era uma das muitas obrigações que acabavam esquecidas, alimentando a sensação de que estávamos errando.

No Rio, a rotina mudou, a escola também e a neura arrefeceu, porque a proposta pedagógica é outra e o fluxo de deveres diminuiu. A missão mais frequente da pequena é ler um livro, prazer instaurado no seio familiar. Os deveres nunca tomam tempo demais da mais velha. Aos nove anos, dá conta de cumpri-los quase sempre sozinha.  Mas percebo que somos exceção. Sei também que nem todos concordam comigo.

Para muitos pais, a sensação de ver o filho assoberbado com tarefas todo os dias é sinal de que algo importante está sendo transmitido. A escola é puxada, dizem orgulhosos. Lá, se não estudar não passa. Sei...

Eu estudei numa escola de tempo integral onde deveres de casa eram raríssimos. O aproveitamento em sala de aula deveria ser bom o suficiente para que a lição de casa fosse espontânea e complementar: estudar as matérias e ler, sempre e muito. Estava implícito naquela proposta que o aluno não poderia ocupar seu dia todo com tarefas da escola, onde ele já passava oito horas por dia dedicado também ao esporte e às artes. Fazia todo o sentido.

Mas voltando à nossa realidade, porque minha escola (pública e de qualidade) era e ainda é uma exceção, as escolas meio expediente são a maioria no Brasil e elas, obviamente, não dão conta de ensinar o conteúdo em quatro horas e meia diárias. A matéria é jogada sobre as crianças. Resta a opção de mandar o aluno estudar em casa. Dá-lhe dever. Logo, a coisa se torna impossível de gerenciar, e você percebe que não há nenhuma relação entre qualidade do ensino e dever de casa. O que se tem é uma estrutura que não funciona. Diante disso, pergunto: qual a política ideal do "nosso" dever de casa?

Antes, algumas informações históricas. O dever de casa já foi execrado e redimido por várias correntes pedagógicas ao longo do tempo. Há quem o defenda como ferramenta pedagógica e há os que temem pelo excesso de interferência na rotina familiar. O dever, segundo seus defensores, impõe disciplina ao aluno. Ele também seria eficaz para introduzir nas crianças senso de responsabilidade. Para seus opositores, em excesso ele desestimula o interesse do aluno pelo conteúdo, quando tudo o que se deseja é aguçar a curiosidade dos aprendizes, e não miná-la pelo cansaço.

Deve haver ótimas explicações para defender muito dever de casa. Sou toda ouvidos, mas estou falando da vida como ela é. O massacre da tarefa rouba o tempo da espontaneidade, do café da manhã já tão corrido, do lazer, do esporte, da música, das artes, e de tudo de lúdico que seu filho poderia fazer com o tempo livre dele - se ainda tiver algum -, incluindo no pacote a brincadeira solitária, aquele exercício ao qual poucos dão atenção mas que ensina a criança a lidar com um desafio maior do que muito cálculo matemático: enfrentar a solidão. Para mais informações a respeito, consultem o pediatra e psicanalista Donald Winnicot (1896-1971).

Na verdade, não estou discutindo métodos pedagógicos, mas tempo, esse produto cada vez mais escasso nas nossas vidas. Dosar é fundamental, e meu foco é a infância. Educar é preparar cidadãos para a vida, e não se vive com base em decorebas. Eu quero ver minhas filhas com plena capacidade de ir atrás de informações e de construir conhecimento.

Em entrevista publicada no Caderno Educação: Mitos x Fatos, da Globo, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, disse uma frase que me parece a melhor definição para o processo de aprendizado: "Tem mais valor um erro que mostre um movimento de busca e um pensamento próprio do que um acerto que seja cópia de algo que nem sequer foi devidamente assimilado".

Um estudo recente sobre aprendizado de língua estrangeira sugere que uma atitude positiva diante do dever de casa está mais ligada a bons resultados de aprendizado do que ao tempo gasto com as lições.  Descontada a particularidade do aprendizado de uma segunda língua, que requer vivência e entrosamento social, é fácil imaginar por quê. Quando quantidade supera qualidade, e má vontade bate, a obrigação parece mais um obstáculo a ser transposto nessa gincana diária que se tornou a vida de todo mundo. Daí, o dever de casa  vai engrossar a lista das cobranças automáticas, num típico dia numa casa qualquer: Já arrumou seu quarto? Já escovou os dentes? Já fez o dever?

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