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sábado, 28 de abril de 2018

Esboço da mulher assassina

02/04/2018 

O essencial é: um tiro no marido, dormindo. Quem dormia era o marido, claro, do contrário seria muito fácil, inimputabilidade e tal. Na testa. Mas agora visto sob aquele clichê grego de que ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio, porque cada vez que se lê o processo parece que são outros personagens, é outra história. O essencial corre no mesmo, embora com outros matizes, o cadáver está sobre a cama, com um disparo na testa e a imagem assusta. Assustar não é bem o termo, porque o problema é que a imagem colorida do morto todo ensanguentado persuade, o jurado sempre pensa que o corpo, porque jaz sem vida, pertencia a um santo. Principalmente assim, estirado no próprio leito, mas o defensor tem que saber colocar-se acima dessas âncoras tão fortes pra acusação: as imagens do corpo e do sangue. Não é sem motivo que toda foto de cadáver traz pra memória o som – som mesmo – da voz retumbante de tribuno do meu primeiro mestre, Você sabe que está vindo para o gol do goleiro, não é? E apontava sua cadeira de defensor, O gol do goleiro é o campo pisado pelo elefante, é onde a grama jamais nasce. Estou no gol do goleiro, no picadeiro do elefante, e ali não se pode esperar que brotem flores. Tribuna da defesa é isso aí.   
       
            Mas tem os flancos e sempre penso assim, sorte que sou da Velha Escola, a que praticava estratégia e cálculo, de palavras amenas, e farejava fraquezas, e ponto de vista, e previsões de enxadrista, algo não acessível para quem passa a eterna adolescência dando tiros em Counter Strike, mas vai dizer pra eles. Não falo nada, simplesmente faço o que me ensinaram, ir lendo o processo e invadindo pouco a pouco na pele do réu, a ré no caso, e então quando o defensor começa a pensar e ver e escutar e cheirar como o acusado é que a metamorfose se aperfeiçoou. Então, por que matei, quer dizer, por que ela mataria o marido?

            O marido chega em casa e vai bater na ora ré, é toda noite, então não seria diverso hoje. E dói apanhar, sabia? Álcool e as drogas, que tivemos dinheiro pra comprar, ele ficou rico em um golpe de comércio e agora estamos na miséria outra vez, que nossa fortuna voltou ao pó, como diz na Bíblia, que dela falo. Dizem aqui, as testemunhas: a ré é crente e lê a Bíblia, e eu agora noto que a ré é um paradoxo ambulante, porque é a crente que duvida, como pode? Porque talvez o grande erro dela é obedecer a o que o Pastor determina na teoria, mas na prática proíbe: que se leia aquele livro grosso do começo ao fim e se o interprete por si mesma, ela notou que se trata de uma coletânea encadernada de livros com uma história quase-linear de heróis, maldições e muito sangue. E de heróis sanguinários, que cumpriram com seu dever.

            Então eu me pergunto. Ela se pergunta, digo. O que é fazer o Bem, na exata situação em que ela está colocada? Porque agora o marido está lhe batendo, e dói (já disse isso?), e está drogado e aceso, mas como é praxe em algum momento ele vai apagar de vez, mesmo que durma rangendo os dentes e ameaçando-a de morte. Ele a ameaça de morte sim, ela pensa, e se o maldito cumpre a promessa, serei uma mulher a menos na Terra e um assassino a mais para sumir no mundo, ou ser preso até fugir e matar outra. E então seriam duas mulheres ceifadas. A grande pergunta teológica – esse adjetivo ela não usa, mas o compreende melhor que nós – é como agradar a Deus nesse momento, porque talvez o maior ato de amor, que o Criador espera dela, seja a coragem de agir em nome de um mundo terreno melhor.

            Seguimos a teologia, no reverso. O que significa não reagir a esse agressor? Moralmente, martirizar-se resulta em Salvação? Não, significa ficar com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando que o assassino cumpra a promessa, que da próxima vez ele me rasgue mesmo com a faca e seja fatal. Portanto, deixar de reagir, sob o ponto de vista da ré, implica suicidar-se. E isso Deus só permitiu pra Judas.

            Claro, deixa eu voltar a ser advogado. Volto pro gol do goleiro, o que o promotor vai argumentar? Que a ré não teria que executar o marido com suas próprias mãos, que deveria ter procurado a Justiça, separar corpos na Vara de Família, sair de casa, colocar o pé na estrada ‘like a rolling stone’, como uma hippie rebelde e muito-muito anacrônica. Como se não se soubesse que ela não tem outra casa, desconhece a existência da Defensoria, que pra ela só existe um lar, e deixá-lo significa perder o teto, ela com os filhos, porque ela não vive num motor home, nem recebe Auxílio Moradia pra alugar uma casa de quatro mil reais por aí, claro que isso não é pra dizer. Nem é pra dizer que a polícia ali não chega rápido quando se chama, porque pra mim ela só corre pra matar vereadora. Fica quieta, moça, e fala só comigo. Como foi?

            Então... avisei pra ele assim simplesmente, Você um dia vai dormir e eu te dou um tiro. E quem não sonha com um fim como esse, dormir e jamais saber que não mais despertou porque seus miolos se espalharam pelo travesseiro? A decisão estava tomada, seria aquela noite mesmo, quando ele dormisse. Aí só falei:
            _ Meu amor, o pó está acabando.
            _ Como assim?
            _ O pó do café. Não tem mais café.
            _ Ahn. E pra que diabo você quer fazer um café esta hora da noite?
            _ Pra te dar mais uma chance.
            Mas ele não quis café e ameaçou levantar da cama pra me bater de novo. Daí dormiu de repente, no mesmo ranger de dentes, aquele sono que implicaria acordar morto.

            Agora, aqui do gol do goleiro, na leitura do processo, fico na dúvida se direi aos jurados algo que sei que ela pensou: apertar o gatilho era fazer um bem não pro mundo, mas pra ele mesmo, Vai rápido, vai acertar suas contas com o Cão, antes que o débito aumente. Corre, que ainda é tempo! Porque era simplesmente chegada a hora de retirar o revólver do pote de arroz e fazê-lo disparar uma vez.

            Isso se chama, senhores jurados, executar a legítima defesa com a maior brevidade possível. Notem o ‘possível’. Então esqueçam as figuras penais que o promotor lerá como se ela vivesse dentro daquele motor home imaginário, que pode dar partida a qualquer momento em busca do infinito, ou mesmo meu discurso sobre aquilo que se denomina ‘estado de necessidade defensivo’, e apenas se atentem à pergunta legal: o jurado absolve a ré?

            Absolve, porque o mundo dela era o chão pisado do elefante. Ela vivia no gol do goleiro, lá, onde a grama não nasce.

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