Festival apresenta uma nova geração de artistas brasileiras que faz sucesso nos quadrinhos
Quando recebeu o telefonema de um dos organizadores do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) convidando-a para ser a homenageada do evento que acontecerá de 30 de maio a 3 de junho, em Belo Horizonte, a artista paulista Erica Awano tentou dissuadi-lo da escolha por não se sentir confortável com esse tipo de distinção. “Mas meus argumentos não surtiram efeito”, disse ela. A honraria só foi aceita depois de muita conversa.
O FIQ é a versão nacional do Festival de Angoulême, o evento francês que é um dos mais populares do mundo entre os aficionados em histórias em quadrinhos. O festival mineiro tem uma tradição de investir na diversidade – de gênero e etnia, tanto na programação como entre os convidados brasileiros e estrangeiros. Mas é a primeira vez que ele homenageia uma quadrinista mulher – um sinal eloquente de como a produção feminina está ganhando cada vez mais destaque num meio tradicionalmente dominado por homens.
Awano faz parte da primeira geração de artistas brasileiras que começou a desenhar mangás no Brasil, no fim da década de 1990. Na ocasião, havia se instalado no país um verdadeiro culto a séries animadas como Cavaleiros do Zodíaco e Sailor Moon. “Eu queria muito fazer quadrinhos, mas tinha certeza que não ia conseguir”, disse ela, que acabou sendo surpreendida pelo sucesso de seus trabalhos. Seu carro-chefe é o mangá Holy avenger, que durou três anos e meio, entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2000. “Por isso, acho importante ter mulheres como referência nos quadrinhos.”
O FIQ também chamou uma mulher para desenhar o cartaz do evento: a quadrinista paulista Cristina Eiko. Ela é conhecida pelo álbum autoral Culpa e pela graphic novel Vida com Penadinho, o fantasminha criado por Mauricio de Sousa. Ambos os trabalhos foram feitos em parceria com o marido, Paulo Crumbim. É a segunda vez que uma mulher é convocada para desenhar o “cartão de visitas” do festival. Na edição passada, em 2015, a arte do cartaz oficial foi assinada pela mineira Lu Cafaggi. Ela é conhecida pelo álbum Mix tape e pela graphic novel Turma da Mônica: laços, que está sendo adaptada para o cinema por Daniel Rezende, o diretor de Bingo. Ela testemunhou o movimento dos organizadores do FIQ para abrir espaço para as quadrinistas mulheres. “Hoje, estamos presentes em todas as mesas de discussão do evento. A cada ano, temos mais mulheres trabalhando na organização do festival, mais mulheres nas exposições”, disse ela.
O primeiro convidado do festival a ser divulgado neste ano também foi uma quadrinista mulher: a mineira Rebeca Prado, roteirista da série clássica da Turma da Mônica e autora das tiras Baleia e Navio. Prado, que também é uma das colaboradoras desta edição de ÉPOCA, disse que dar destaque para as mulheres é “o mínimo a ser feito”. “Como em outras áreas, nos quadrinhos as mulheres têm de fazer o dobro para receber a metade”, disse ela, que começou a desenhar ainda adolescente e usou a internet como plataforma de exposição dos seus trabalhos.
Foi em 2011 que o FIQ promoveu a primeira mesa de debates para discutir a produção feminina nos quadrinhos, em parceria com o finado coletivo de quadrinistas mulheres Lady’s Comics. A mudança de paradigma fez com que, na edição seguinte, de 2013, o número de convidadas, de autoras nos estandes e nas oficinas e de leitoras circulando aumentasse. “A ideia é buscar um equilíbrio”, disse Afonso Andrade, coordenador-geral do FIQ. “Em 2015, conseguimos trazer 60% de convidados homens e 40% de mulheres.” Andrade diz que esse critério de maior equanimidade entre os gêneros se estendeu para a organização do FIQ, que tem hoje dois curadores homens e duas curadoras mulheres. “Não queremos que o festival cresça indiscriminadamente, s mas que tenha mais representatividade e diferentes perfis sejam acolhidos”, disse a cartunista e ilustradora Carol Rossetti, uma das curadoras.
Apesar dos avanços no aumento da representação feminina em festivais como o FIC, a jornalista baiana Mariamma Fonseca, que fez parte do coletivo Lady’s Comics, diz que ainda há muito a ser feito para que as mulheres quadrinistas tenham seus trabalhos reconhecidos. Essa opinião é compartilhada pela gaúcha Fabiane Langona, a Chiquinha, que produz a tira diária Viver dói para o jornal Folha de S.Paulo. Ela diz que os festivais e os prêmios tradicionais de quadrinhos estão sendo obrigados a se reinventar, mas que os “grandes agentes de mudança” ainda são os autores independentes. “Autoras são minoria. E não consigo traçar um panorama onde ser minoria é vantajoso”, disse Chiquinha, autora da ilustração na página 61 sobre as abelhas-rainhas. “Produzir e tentar impor uma voz, uma personalidade que destoe, que seja representativa e verdadeira após séculos de uma produção esmagadoramente masculina é um desafio extremo para todas que se arriscam.”
Tem de ver esses espaços exclusivos para mulheres ou transexuais com distanciamento, porque eles podem se tornar um gueto”
Laerte, cartunista
Homenageada na 8a Edição do FIQ, em 2013, a cartunista e chargista Laerte, que divide espaço com Chiquinha na Folha, acha importante o crescimento da atuação das quadrinistas mulheres. “Até para tornar esse universo (dos quadrinhos) menos cueca”, disse ela. Ao mesmo tempo, a autora dos Piratas do Tietê vê com certo ceticismo a criação de espaços específicos para mulheres ou transexuais. “Tem de ver esses espaços exclusivos com distanciamento, porque eles podem se tornar um gueto”, afirmou Laerte. Um exemplo negativo citado por ela é o Lápis, batom e TPM, exposição de artes gráficas realizada desde 2011 como programação oficial do Salão Internacional de Humor de Piracicaba. “É um horror esse nome”, disse Laerte. “Acho que ainda vamos ter de conviver com esses paradoxos, até que a gente encontre o equilíbrio que esperamos.”
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