Casamento de Crianças: Meninas de 14 Anos E Mais Jovens Em Risco
O QUE É CASAMENTO DE CRIANÇAS E ONDE OCORRE?
A Convenção das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos da Criança define criança como uma pessoa com menos de 18 anos, a menos que a maioridade seja legalmente alcançada mais cedo nos termos da legislação pertinente do país. Portanto, com algumas exceções, “casamentos de crianças” são geralmente entendidos como casamentos que acontecem antes dos 18 anos. 1, 2 Este relatório resumido foca o noivado e o casamento de meninas de 14 anos ou menos, especialmente vulneráveis a violações de sua saúde e de seus direitos e classifica tais casamentos como forçados, porque meninas tão jovens raramente têm capacidade jurídica ou interferência pessoal para desobedecer os mais velhos ou para fornecer ou negar seu consentimento.
As leis e práticas do casamento são muito diferentes em cada parte do mundo. Na maioria dos países em desenvolvimento, de 20% a 70% das mulheres jovens casam-se (ou começam a viver com um parceiro) antes dos 18 anos de idade (ver tabela). 3, 4 Em muitos países, o casamento arranjado de meninas na puberdade, ou até antes, com o objetivo de “proteger sua virgindade” ou a “honra” da família, ou ainda para aumentar seu “valor de troca” nunca foi amplamente praticado; em outros, é comum entre alguns grupos. Os fatores socioeconômicos também desempenham sua função. Os pais podem sentir-se “forçados” a casarem suas filhas cedo por temerem por sua proteção e segurança econômica.
Embora alguns casamentos de adolescentes a partir dos 15 anos também ocorram contra a sua vontade, violando assim seus direitos, outros são iniciados pelos próprios jovens ou com o seu consentimento. A compreensão do casamento de crianças requer a compreensão das causas, significados e conseqüências desses casamentos em diferentes cenários, especialmente no tocante ao grau de coerção ou de escolha envolvido. 5
O CASAMENTO PRECOCE PÕE EM RISCO A SAÚDE DAS MENINAS
Em todo o mundo, o casamento de crianças é a maior causa de gravidez antes dos 15 anos. Na maior parte dos países em desenvolvimento, 90% dos primeiros partos entre meninas com menos de 18 anos ocorrem dentro do casamento. 6 As noivas jovens geralmente tornam-se sexualmente ativas assim que se casam, algumas vezes antes da primeira menstruação. 7 Vivendo muitas vezes com a família e na comunidade dos maridos, enfrentam fortes pressões para terem filhos o mais rapidamente possível, com resultados potencialmente desastrosos.
- Como seu corpo ainda não está totalmente desenvolvido (estrutura óssea, pélvis, órgãos reprodutivos), as meninas de 14 anos, ou menos, correm um grande risco de complicações na gravidez e parto, em comparação com as adolescentes mais velhas. 3
- O trabalho de parto prolongado e a distócia, comuns entre adolescentes jovens grávidas, podem ocasionar hemorragia, infecção grave e morte materna. Observa-se isso especialmente com meninas que passam por complicações adicionais relacionadas com o parto, tais como eclâmpsia. Aquelas que sobrevivem podem contrair fístula obstétrica, uma situação debilitante que causa incontinência crônica, provocando vergonha e isolamento social. 8
- A vulnerabilidade fisiológica das meninas devido ao pequeno tamanho, falta de elasticidade e falta de lubrificação da vagina e do colo do útero é o resultado de sua exposição a relações sexuais freqüentes, sem proteção e algumas vezes forçadas no casamento; falta de informação sobre DSTs, inclusive HIV e falta de capacidade para negociar sua própria proteção. 9, 10
- Em todos os países da África e da América Latina, mais de 80% das adolescentes de 15 a 19 anos que revelam ter tido sexo sem proteção na semana anterior são casadas. 9
- A diferença de idade entre as jovens noivas e os homens com quem estão casadas chega a oito, dez anos ou mais, em alguns países.3 Quanto mais velho o marido, maior a probabilidade de ele ter tido várias parceiras sexuais e de ser HIV-positivo. 9, 10
AS MENINAS QUE SE CASAM AOS 14 ANOS, OU MENOS, SOFREM DESVANTAGENS
As meninas que se casam muito jovens sofrem desvantagens em termos educacionais, sociais e pessoais relacionadas ao casamento, em comparação com aquelas que se casam mais tarde, inclusive: 1, 2, 6
- maior controle sobre a jovem noiva por parte do seu marido e da família dele, inclusive restrições à sua liberdade de ir e vir e a sua capacidade de procurar serviços de tratamento de saúde e planejamento familiar;
- maior probabilidade de que ela venha a sofrer violência doméstica e abuso sexual;
- pouca ou nenhuma escolaridade e pouca possibilidade de buscar oportunidades de educação;
- capacidade limitada para ingressar na força de trabalho remunerada e ter um rendimento independente;
- maior insegurança pessoal diante da possibilidade de divórcio ou viuvez precoce;
- isolamento social de sua própria família, amigos e outras redes sociais.
AS LEIS DE ALGUNS PAÍSES PERMITEM O CASAMENTO DE CRIANÇAS
Em 1994, a Comissão das Nações Unidas sobre a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres publicou uma recomendação não-vinculante de que os países adotem a idade mínima para o casamento de 18 anos para ambos os sexos.
Entretanto, as leis sobre o casamento nos países em desenvolvimento variam muito. A idade mínima mais comum em que um jovem que deseje casar-se pode fazê-lo sem o consentimento paterno é 18 anos. Entretanto, praticamente todos os países em desenvolvimento permitem casamentos mais cedo com o consentimento dos pais, responsáveis legais ou autoridades judiciais ou religiosas, muitas vezes sem especificar qualquer idade mínima ou sem solicitar o consentimento da noiva ou do noivo menor de idade. 12 Particularmente, os casamentos antes dos 15 ou 16 anos violam as leis que estabelecem uma idade mínima para o consentimento de um jovem para a prática do sexo na maioria dos países. 13
Sempre são feitas exceções aos estatutos legais para as leis religiosas ou práticas comuns. No Níger, por exemplo, o código civil proíbe que os meninos se casem com menos de 18 anos e as meninas com menos de 15. Segundo observadores, o código “praticamente nunca é aplicado” por causa da existência de dois outros sistemas legais, um judicial e outro islâmico, que permitem o casamento com menos idade. 12
Mesmo sem essas exceções, a legislação que rege a idade mínima para o casamento pode ser ignorada ou facilmente burlada. Uma menina pode casar-se em uma cerimônia tradicional muito antes de a união ser registrada junto às autoridades civis (caso seja registrada) ou as idades podem ser falsificadas na ausência de certidões de nascimento ou outra documentação.
SÃO NECESSÁRIAS DIVERSAS ABORDAGENS PARA ELIMINAR O CASAMENTO DE CRIANÇAS
Intervenções para evitar ou eliminar o casamento forçado de meninas com menos de 14 anos de idade; ajudar a garantir uma passagem segura para o casamento e a maioridade para todas as meninas e para dar apoio às meninas já casadas incluem, embora não de forma exclusiva, as seguintes ações: 1, 2, 3, 14
- Interceder para que os governos estabeleçam uma idade legal mínima de 18 anos para o casamento sem a necessidade de consentimento paterno para os jovens que desejem casar-se e de no mínimo 15 anos com o livre consentimento de ambas as partes e dos pais, responsáveis ou autoridades judiciais. É preciso incluir salvaguardas na legislação e em sua implementação para garantir que ambas as partes decidam livremente casar-se e que o “consentimento paterno” não seja utilizado para justificar leis ou práticas usuais ou religiosas que permitem casamentos forçados.Nos países onde o casamento de meninas com menos de 15 anos de idade é praticado e em todos os lugares em que ocorre o casamento forçado existe garantia para iniciativas legais e programáticas especiais, tais como identificar e levar os casos aos tribunais, educar as autoridades convencionais e religiosas, bem como punir os transgressores. Fortalecer os sistemas de registro de casamentos para exigir o registro civil obrigatório, comprovação da idade e “consentimento livre e total” dos noivos. Outros sistemas de registros governamentais precisam ainda ser desenvolvidos e/ou reforçados para adolescentes, inclusive o fornecimento de carteiras de identidade, certidões de nascimento, certificados de saúde e comprovação de matrícula escolar.
- Criar incentivos e promover campanhas para a eliminação do casamento de crianças entre os líderes comunitários e organizações, ressaltando os benefícios para a saúde das meninas e os direitos humanos, famílias e comunidades. Trabalhar para eliminar o mito do casamento como zona de segurança para as meninas e mulheres.
- Expandir os investimentos na educação de mulheres, na qualidade do ensino, segurança do ambiente escolar e promover a freqüência universal de meninas, pelo menos até os 15 anos. Eliminar as taxas escolares e fornecer incentivos para que os pais mandem suas filhas para a escola.
- Apoiar programas de educação sobre sexualidade nas escolas e comunidades que comecem cedo, no ensino fundamental, e continuem até a adolescência. Esses programas devem ressaltar os direitos humanos e igualdade de gênero, inclusive o direito de recusar o casamento.Proporcionar treinamento profissionalizante e programas de instrução sobre finanças, tanto para as meninas que freqüentam a escola quanto para as que estão fora dela, de 10 a 14 anos de idade, a fim de facilitar sua capacidade de adquirir renda e aptidão para o emprego, agora ou mais tarde. Criar espaços seguros somente para meninas nas escolas e clubes para meninas que não freqüentam a escola e talvez já estejam casadas.
- Investir na saúde sexual e reprodutiva das adolescentes jovens, tanto casadas quanto solteiras, mediante um programa abrangente de cuidados de saúde reprodutiva acessível para as meninas de todas as idades, que inclua serviços de planejamento familiar e prevenção do HIV, assistência pré-natal à gravidez e ao parto e fornecimento de informações e educação sobre reprodução dentro do sistema de saúde.
Cada uma dessas ações promove a saúde e o bem-estar das adolescentes jovens e contribui para a eliminação do casamento de crianças.
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