Uma sentença educativa
Roseli Fischmann
Não há o que pague. A sincera afirmação, que bem cabe no caso da filha que conseguiu ver reiterada a condenação de seu pai por abandono afetivo, pode ser facilmente utilizada contra a própria vítima. Não se trata de caso único ou raro. Contudo, está bem acompanhada de outras situações dramáticas em que fazer justiça tem um sentido educativo para a sociedade como um todo, em que pesem os argumentos levantados por críticos.
Embora o sentimento não possa ser medido, assim como a perda da presença e do afeto do pai na infância e ao longo da vida, algo pode ser feito em reparação. Mas a solução pecuniária é adequada? Não seria melhor a tentativa de (re)construir uma relação afetiva? Seria possível semelhante alternativa?
Em sentença anterior, que inocentava o pai, a isenção de responsabilidade paterna se fazia mediante identificação da mãe como a causadora do abandono, por seu “comportamento agressivo” quando feita tentativa, pelo genitor, de aproximar-se da filha, resultando, afinal, em desistência das tentativas de oferta de afeto. Tornar culpada a mãe, de fato vítima que precisou assumir sozinha o cotidiano e a dedicação afetiva, foi, anteriormente, modo de levar à sentença original os ecos de uma sociedade machista, que atribui à mulher o papel de “rancorosa abandonada” ao fim de um relacionamento, em especial quando há filhos. Mas nada se sabe quanto ao pai valer-se de mediação, ou qualquer tentativa - mesmo judicial, por que não? – que a ele garantisse exercer a suposta intenção de relacionar-se de forma calorosa com a filha. Desistiu. O próprio reconhecimento da paternidade não foi espontâneo, e a pensão que ofereceu, foi cumprimento do inevitável, sob a pena da lei. No processo judicial, teria o pai proposto, em algum momento, outro tipo de reparação? Seria possível determinar, por sentença, que o pai ame a filha e a acolha? E o sentido de família, que o pai nutre pelos outros filhos, meio-irmãos da professora agora atendida: teria como encontrar abrigo no tratamento dado ao longo da vida a essa “outra” filha? Como foram os dias na escola, quando criança, a relação com os colegas, o tempo da adolescência?
O primoroso voto da Ministra Nancy Andrighi levanta o tema dos “intrincados meandros das relações familiares”, para indicar a complexidade da relação entre o dever ou obrigação inescapável de cuidar psicologicamente dos filhos e filhas, e o modo possível da Justiça atribuir pena ao ilícito da responsabilidade descumprida. Para tanto, afirma, cabe indenização ou compensação. O algum recurso material oferecido não foi suficiente para a necessidade da filha, mulher que bem estruturou sua vida a despeito da rejeição afetiva e, de forma assertiva, quer o reconhecimento de que tinha direito a mais, como filha: merecia amor e carinho paternal.
A Ministra afirma: “colhe-se (...) do próprio senso comum que o desvelo e atenção à prole não podem mais ser tratadas como acessórios no processo de criação, porque, há muito, deixou de ser intuitivo que o cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, não é apenas uma fator importante, mas essencial à criação e formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica e seja capaz de conviver, em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania.”
Ou seja, na criação dos filhos e filhas, o cuidado psicológico parental – de pai e mãe, não apenas maternal – tem repercussão sobre o indivíduo, mas também sobre a sociedade como um todo, pelo ser humano melhor, íntegro e responsável que pode assim ser criado. Ao chamar a seu voto o tema do cuidado, a Ministra Andrighi traz outra questão cara aos estudos sobre as mulheres. É que pesquisadoras, como a socióloga brasileira Helena Hirata (há muito atuando no Conselho Nacional de Pesquisa Científica, CNRS, da França, e na Universidade de Paris VIII), têm trazido o debate relativo a como as profissões que envolvem o “cuidar” ainda são consideradas “naturais” para as mulheres, que seriam “vocacionadas” para as atividades que envolvem dedicação e zelo, precarizando o trabalho feminino em larga escala. As exceções em altos postos, noticiadas e alardeadas, apenas confirmariam a regra.
O papel educativo desse voto, por isso, vai além da compensação à filha professora, para atingir a sociedade de modo profundo. Homens que vêm se formando em perspectiva distinta do modo machista de ser, e que sentem o apelo de estar ao lado de seus filhos e filhas, oferecendo cuidado psicológico e afetivo, enquanto usufruem a alegria da paternidade, têm dificuldade de serem compreendidos e, mesmo, de encontrar apoio, o que dirá apreço, em seus ambientes profissionais e, frequentemente, em suas próprias famílias de origem ou amigos. Ainda se espera que a mãe perca o dia de trabalho para cuidar do filho doente, mas não o pai. Se um homem disser que, para cuidar de seu filho, faltará a um compromisso, haverá quem lhe pergunte “onde está a mãe”.
Houve quem protestasse e mesmo ironizasse quando foi aprovada a licença paternidade, de cinco dias úteis, direito trabalhista recente em nosso país. Há lugares onde o reconhecimento da presença paterna se dá por uma licença parental significativa, sendo que a divisão da parcela paterna e da materna do total obedece primeiramente um mínimo para cada um, deixando o restante para ser decidido no íntimo da economia familiar.
Observe-se que, o fato de ser um avanço social o devido reconhecimento do direito e dever do pai de ser um cuidador de seus filhos e filhas, não admite que seja desonerado de responsabilidade o abandono passado. Ao contrário, a Justiça atua, para punir o dever negligenciado, que contrasta com a atuação de outros pais, que se dedicaram a seus filhos, mesmo sob condições culturais que não davam, então, o devido valor a aspecto tão essencial à formação humana. Bom seria se esse pai, compenetrado da falha passada, fosse capaz do digno gesto de cumprir a sentença, não mais recorrer, e buscar a filha para o que ainda falta ser vivido entre eles.
As pesquisas ensinam, ainda, que um dano profundo torna-se mais suportável, se for mudado seu sentido, para quem o sofre. A filha, agora amparada por um Estado que finalmente reconhece o dever – e direito – do pai de estar plenamente presente na vida de quem gerou, precisa saber que sua luta leva luz para além de seu caso. Devidamente acolhida pela Justiça, primeiro pelo TJ/SP e agora pelo TSJ na decisão relativa ao recurso do pai inconformado, ao propor o caso, com seu debate, votos e decisões, difunde profundo sentido educativo. Atinge a vida de homens e mulheres que, nesse momento, tentam equilibrar seu papel parental entre uma vida árdua, muitas vezes competitiva e abrasiva no cotidiano, e a busca de construir caminhos, em meio a essas dificuldades, para ter a felicidade de conviver com filhos e filhas, dever e direito que a todos abraça, atingindo a sociedade, que assim se faz melhor. Tantas boas lições, isto sim, não há o que pague.
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