Experientes roteiristas de comédia, John Francis Daley e Jonathan Goldstein se aventuram pela segunda vez como diretores em um filme que sabe aproveitar de seu imenso potencial lúdico
por Pedro Strazza
12.maio.2018
A comédia estadunidense na última década se tornou um tanto dependente daquilo que no meio é conhecido como improvisação. Com o sucesso e a popularização dos filmes dirigidos e produzidos por figuras como Judd Apatow, Evan Goldberg e Seth Rogen no início dos anos 2000 (que incluem obras como “O Virgem de 40 Anos” e “Superbad: É Hoje”), a já forte presença do comediante – ou comediantes – tornou-se cada vez mais dominante na produção humorística do país, torcendo longas inteiros a seus caprichos e à criatividade de última hora.
Se por um lado esta tendência proporcionou uma nova e bem vinda força ao gênero por conta do frescor que é intrínseco à prática, ela também aos poucos foi esvaziando a comédia de uma estruturação maior de sua história, levando-a cada vez mais ao fundo de cena em prol do desempenho do elenco. Não que isso não acontecesse antes, mas a intensificação do desbalanço só aprofundou problemas: se antes um enredo oferecia potencial humorístico aos realizadores (estivessem eles à frente ou atrás das câmeras), hoje a premissa não parece passar do ato inicial de venda aos estúdios e produtores. Houve quem soubesse como usar esta situação a seu favor – enquanto Adam McKay levou este modo de operação ao limite com “Tudo por um Furo”, Phil Lord e Chris Miller se fizeram no mercado com esta criatividade feita “ao longo do caminho” (especialmente nos momentos mais difíceis) – mas o desgaste com o gênero no fundo era notável nas dinâmicas cada vez mais cansadas e repetitivas de seus atores, incapazes de escapar de uma narrativa cerceada por eles mesmos.
É em parte por conta deste cenário que uma produção mais preocupada com questões de encenação e despida de regulações do tipo como “A Noite do Jogo” a princípio pareça se destacar das outras. Embora tenha condições de seguir o mesmo caminho “do imediato”, o filme de John Francis Daley e Jonathan Goldstein parte de uma proposta ao qual é indissociável, criada ao estabelecer o mistério em torno da trama como uma de suas principais fundações estruturais. O longa segue as desventuras do grupo de amigos do casal Max (Jason Bateman) e Annie (Rachel McAdams) por uma noite de jogos de tabuleiro atípica com interesse primordial no humor das situações, é verdade, mas a narrativa desenvolvida pela dupla escapa muitas vezes do “tradicional” – mesmo que seja apenas para fins estritamente lúdicos.
Este procedimento se dá não apenas pelo teor da trama, mas também pelo momento da carreira de seus dois realizadores. Introduzidos em Hollywood como roteiristas – é deles a primeira versão do roteiro de “Homem-Aranha: De Volta ao Lar” – e tendo como única aventura pela cadeira de direção o altamente (e injustamente) contestado remake de “Férias Frustradas”, Daley e Goldstein experimentam pela primeira vez uma liberdade maior de criação na função aqui, mesmo que dentro dos padrões do típico trabalho de “mão-de-obra hollywoodiana” que é a comédia de estúdio, e a dupla sabe como aproveitar tanto o aumento do espaço quanto a inevitável segurança em torno do projeto para se testar.
O que os dois diretores fazem à partir disso é tratar os ambientes onde a história se passa com o mesmo tom de brincadeira que seu grupo de personagens a princípio interpreta o “jogo” proposto na reunião pelo irmão de Max, Brooks (Kyle Chandler, à vontade num papel que ironiza sua figura de “parente responsável” adquirida nos últimos anos), uma jogatina de interpretação que logo revela estar longe do caráter farsesco. Neste sentido, se por um lado “A Noite do Jogo” surge como uma tentativa de humor sobre a premissa de “Vidas em Jogo” – suspense de David Fincher que usava destas confusões entre realidade e fantasia lúdica para impulsionar a tensão – ele no fundo está mais afiliado aos joguetes narrativos de trabalhos como “Os Sete Suspeitos”: tal qual a adaptação do jogo “Detetive”, os realizadores fazem de seu filme um grande esforço lúdico, seja nos aspectos mais técnicos – os planos de estabelecimento do espaço que diminuem as situações até os personagens parecerem peças de um jogo de tabuleiro, a câmera fixada no carro nas perseguições finais – ou mesmo práticos – a cena de perseguição pelo ovo fabergé na mansão do milionário interpretado por Danny Huston é executada num plano-sequência falso apenas no intuito de emular uma bem sacada partida de pega-pega.
A capacidade de orquestrar uma trama movida à base do humor é ainda um dos grandes atributos da dupla de diretores
Estas abordagens narrativas pontuais sem dúvida se tornam recompensadoras ao longo da produção, mas no fim o que se impõe no filme – e ainda é o grande atributo dos diretores – é a de usar desta constante de comédia de motor narrativo a suas ambições, mesmo elas sendo as mais convencionais possíveis. Se em “Férias Frustradas” Daley e Goldstein trabalhavam nos sucessivos esquetes uma crise de matrimônio batida entre os protagonistas de maneira genuína, “A Noite do Jogo” tem na inevitabilidade da vida adulta o seu principal combustível cômico, desde o conflito do casal principal em se decidir entre procurar ter um filho ou não – uma tensão que acaba sendo um pouco desenvolvida pelas vias do drama – até as piadas recorrentes entre os casais secundários como a divertida questão do famoso com quem Michelle (Kylie Bunbury) transou.
A maneira como os grandes esquetes são elaborados no filme é também um valor a ser notado na produção. Por mais que a comédia seja o gênero fundamental a ser seguido, os diretores brincam com elementos do suspense para impulsionar alguns momentos do humor, uma medida que acaba sendo muito feliz para impedir que o tom cômico se desfaça sob o signo da exaustão na sequência inacreditável de piadas e tiradas que são feitas. O curioso é como estas estruturas são alinhadas, podendo ser utilizadas de meros adornos narrativos até serem parte fundamental da proposta cômica, a exemplo das seguidas tentativas patéticas do personagem de Billy Magnussen em subornar uma funcionária interpretada pela comediante Chelsea Peretti – uma das várias participações surpresa extremamente pontuais feitas no longa.
O encadeamento do humor não deixa de ser fascinante, muito porque o elenco tira o melhor dos papéis
Este talento dos cineastas para organizar os esquetes no roteiro e na tela nem sempre é bem sucedido na história e ainda precisa de algum aprimoramento por parte da dupla, e o clímax com sua espiral de reviravoltas cada vez mais sem sentido na hora de revelar os mecanismos do jogo ao público e os personagens é talvez a prova cabal desta necessidade de refino. O encadeamento do humor, porém, não deixa de ser fascinante em sua execução, ainda mais porque ele permite ao elenco que tire o melhor dos seus papéis em uma dinâmica que se revela ser claramente construtiva, com personagens bem tipografados nutrindo químicas distintas com cada um dos outros integrantes.
Há muito conforto da parte dos atores – em especial nas atuações de Bateman, Magnussen e Jesse Plemons (como o policial creepy e vizinho dos protagonistas), postos em papéis mais ou menos familiares dentro de suas carreiras – que facilita a execução das dinâmicas envolvidas neste processo. Ao mesmo tempo, porém, o alcance e as capacidades de Daley e Goldstein dentro da comédia se fazem notar pela forma como a metodologia da dupla permite a Rachel McAdams que faça um retorno extremamente feliz ao gênero, consagrado na cena hilária em que a atriz canta uma canção da banda Third Eye Blind usando um revólver carregado de microfone. São momentos assim que dão a boa sensação de que ambos podem ter um futuro interessante em Hollywood, mesmo que presos dentro do interior da máquina.
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