“Não consigo continuar assistindo”. Uma parte da crítica internacional questiona o sadismo da segunda temporada e a capacidade de resistência do telespectador
16 MAI 2018
El País
A segunda temporada de The Handmaid’s Tale não está sendo um prato fácil de digerir. “Apertei o botão de acelerar o vídeo com tanta frequência nesta temporada que sou obrigada a me perguntar: por que estou vendo isto? Tudo parece tão gratuito, como uma surra que não acaba nunca”, escreve Lisa Miller na The Cut, e acrescenta: “É feminista ver mulheres serem escravizadas, degradadas, surradas, amputadas e estupradas? Como exatamente estou participando de uma revolução de mulheres sentada na minha cômoda cama e consumindo isto? Será que The Handmaid’s Tale derrapou em sua segunda temporada, deixando de ser um produto cultural elevado para virar um pornô de tortura?”.
A angústia e desassossego dessa jornalista com a série não são um fenômeno isolado. “Estou na metade do primeiro episódio da segunda temporada de The Handmaid’s Tale e não vou me dar ao trabalho de continuar vendo, a menos que alguém me diga que acontece algo interessante. É tudo sobre o que eu tinha dúvidas, elevado ao quadrado”, tuitou a crítica Emily Nussbaum, da New Yorker. “Existe entre muitas feministas esta sensação de que ver The Handmaid’s Tale é importante, embora, como muitos outros programas na televisão, cada capítulo de quase uma hora catapulte a espectadora a um mundo de violência constante contra as mulheres”, acrescenta Arielle Bernstein no The Guardian. Para Miller, a série virou um produto de pornô de tortura misógina: “A violência contra as mulheres na segunda temporada é indulgente e busca satisfazer como uma resposta física e visceral em The Handmaid’s Tale, que deixou de ser uma atração de terror feminista para virar entretenimento misógino do mais convencional”.
A sensação não emana apenas nas colunas da imprensa. “Já acabei o terceiro. Não sei se consigo continuar”, “acho que vou largar” ou “esta noite não estou preparada para resistir a ele” são as frases que mais se repetem quando se fala da série nas redes sociais ou em conversas entre fãs. “Parece que a série optou por que aconteçam coisas aleatórias e horríveis com as mulheres, procurando esse efeito de choque”, lamenta Laura Hudson, editora de cultura do The Verge. “Por que estou vendo isto? Não preciso ver mulheres apanhando para entender que Gilead é malvado e que a misoginia é algo ruim; acreditem em mim, eu já entendi”.
Os produtores já previam o debate sobre os novos rumos da série. O Conto da Aia, romance de Margaret Atwood que inspirou a série, termina como o final da primeira temporada, então os espectadores – exceto por alguns flashbacks que incluem subtramas de Atwood, como a relação de June com sua mãe – se deparam nesta nova leva de episódios com uma narrativa livre, que parece condenada a castigar reiteradamente a sua protagonista. Bruce Miller, produtor da série, garante ter seguido à risca o padrão estabelecido por Atwood para evitar excessos em seu romance: que cada tortura que um personagem sofrer tenha sido sofrida por um ser humano na vida real. “Se você começa a inventar crueldades contra as mulheres, vira pornografia, então você precisa olhar para o mundo real, onde há muitíssimos exemplos que podemos usar”, disse ele ao The Guardian no ano passado.
Esse trato vexatório imposto às mulheres é puro entretenimento perverso? Ou os espectadores são incapazes de lutar com uma realidade inclemente? Elisabeth Moss, protagonista e produtora da série, não tolera quem a larga no meio. “Odeio escutar alguém dizer que não consegue vê-la porque é assustadora demais”, afirmou ela ao The Guardian. “Não digo isso porque me preocupe ou não que vejam a minha série, não estou nem aí. Mas, sério? Não ter coragem de ver uma série de televisão? Isto está acontecendo na sua vida real. Acorde, pessoal. Acordem.”
Em pleno debate sobre o merchandising da série e como o capitalismo também se apropria dos lemas de Atwood – a plataforma Hulu se aliou ao The Wing, um clube de mulheres de Nova York, para vender agendas e camisetas com a frase “A word after a word after a word is power”, e existem várias coleções-cápsula com marcas de moda –, o EL PAÍS perguntou a três críticos espanhóis sobre os rumos da série e o abandono dela por parte dos espectadores:
Você viveu algum momento na segunda temporada da série em que teve que olhar para o outro lado?
Natalia Marcos (EL PAÍS): “A ponto de olhar para o outro lado ainda não. Isso eu senti mais na primeira temporada com as cenas de sexo. Na segunda temporada, até agora, acredito que o mais duro foi a apresentação dessa espécie de prisão ou campo de concentração do primeiro capítulo, mas não cheguei a sentir essa sensação de desconforto”.
Paloma Rando (Vanity Fair): “Ainda não tive que afastar o olhar em nenhum momento da segunda temporada até agora. Curiosamente, esta temporada está me causando mais desassossego em seus flashbacks do que com os golpes de efeito de Gilead já instaurado. A mim me angustia mais ver como é fácil o início da revolução que leva a esse Estado opressor, que se traduz, mais que em imagens concretas que me causem repulsa, num amontoado de fatores explicados no desenvolvimento da trama. Margaret Atwood disse que uma das fontes de inspiração na hora de escrever o livro foi sua consciência, por ter nascido em 1939 e começar a ter lembranças na Segunda Guerra Mundial de como as ordens estabelecidas podem desaparecer da noite para o dia, e esse espírito acho que está muito bem refletido na segunda temporada até agora, embora agora a série seja um prolongamento do livro”.
Eneko Ruiz Jiménez (EL PAÍS): “Não acho que nada supere em dureza a cena chave da série, aquela do estupro constante com o horripilante primeiro plano de Elisabeth Moss. Foi gravado com tanto cuidado que expressa tudo, sem necessidade de sangue ou resistência. Uma vez visto isso, não acredito que o resto seja mais duro. Mais do que olhar para outro lado, os flashbacks nos fazem pensar que estamos fazendo algo de mau no mundo. E isso sim é horripilante. Por outro lado, apesar da tortura acredito que haja luz ao final do túnel, graças à separação em blocos de personagens que fizeram neste ano”.
Você cogitou parar de ver a série? Por quê?
Natalia Marcos: “Não, nem tinha me ocorrido que alguém pudesse pensar nisso, do jeito que vai a temporada. Continua sendo muito boa para que me passe pela cabeça largá-la”.
Paloma Rando: “Não cogitei deixar de ver a série, mas conheço várias pessoas (só mulheres) que a largaram, por diferentes motivos. Conheço espectadoras sensíveis que não passaram do primeiro capítulo, e outras que decidiram não começar a segunda temporada porque acham que a história do livro, apesar do final aberto, é uma história fechada, com princípio e fim, e que a decisão de continuar a série é trair o espírito da obra original. Não sei qual seria o meu limite, mas estou disposta a lhe dar a chance de continuar me pondo à prova desde que as vicissitudes dos personagens continuarem me interessando”.
Eneko Ruiz Jiménez: “Não, em nenhum momento. Acho que ela manteve o nível e que a nova narrativa expandiu o universo inteligentemente para procurar não se repetir. É novo, claro, e isso pode afastar o espectador. E tem um perigo: virar The Walking Dead. Uma eterna viagem a nenhuma parte, em um mundo apocalíptico que se torna repetitivo e que queira nos mostrar suas conclusões até enjoar. Houve cenas que recordaram aquela série, mas acredito que The Handmaid’s Tale tenha uma mensagem profunda demais para se perder tanto”.
Parte da crítica considera que foram ultrapassados certos limites na série: o sadismo e a tortura contra as mulheres, essa claustrofobia sem luz aparente no final do túnel, já afastada da trama do livro e voando livre, está acima da mensagem que Atwood refletiu no romance. Você concorda?
Natalia Marcos: “Não li o livro, então não tenho muito claro que linhas seriam essas. Mas em todo caso acho perfeitamente legítimo que uma série voe livremente afastada do livro no qual se baseia. The Leftovers deu um salto de qualidade importante quando superou o livro em que se baseava. Acho que nestes tempos, além disso, é bom que se acentue a mensagem e se deixe mais claro ainda. Se isso é visto como obscurecer a série, paciência”.
Paloma Rando: “Acho que a série na segunda temporada, depois de ter acabado com a adaptação do livro, enfrenta um desafio: não ser devorada por seu próprio universo, onde é fácil se deixar levar pela grandiloquência de uma mise-en-scèneestilizada e ao mesmo tempo sádica. Não tenho problemas com a combinação destes dois fatores, que acredito que podem se ajudar, mas acho que se a trama não for potente (a do primeiro episódio começa quase a 15 minutos do final) pode acabar completamente diluída entre túnicas vermelhas e atos de barbárie. As séries (e os livros, e os filmes, a ficção em geral) não podem viver só de serem metáforas de algo, a narrativa se sustenta na trama e no conflito, por isso o caminho dos personagens tem que ser tão ou mais interessante que o mundo que os emoldura”.
Eneko Ruiz Jiménez: “Uma série é um animal diferente, e não se pode ficar num só espaço. Se continuássemos vendo a mesma coisa o tempo todo seria repetitivo, então entendo a estratégia. Entendo também os que querem se distanciar; às vezes, diante do que ocorre no nosso mundo, pode ser muito doloroso, mas também acredito que a arte pode contar isso. The Handmaid’s Tale continua tendo qualidades de sobra para seguir com ela, desde sua estética cuidada e grandes atores até esses flashbacks tão atuais. Tem o perigo, mesmo assim, de ficar muito óbvia, por exemplo nos discursos sobre feminismo da mãe dela. Sim, já entendemos o que você quer nos quer contar”.
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