Um estudo sobre a aplicação da Lei n.º 11.340/2006 à proteção da vítima menor de violência doméstica e familiar
Lucas Correia de Lima|Amanda de Melo Rabêlo
Publicado em 05/2018
“A HISTÓRIA NOS JULGARÁ PELA DIFERENÇA QUE FIZERMOS NA VIDA DE TODOS OS DIAS DAS CRIANÇAS." - NELSON MANDELAINTRODUÇÃO
Um dos grupos sociais historicamente vulneráveis às práticas de violência do poder é constituído pelas mulheres. Isso porque, pensar na história humana do poder é pensar na história da diferença entre os sexos, uma vez que o próprio corpo humano é um microcosmo personificado de uma “representação e lugar de poder” (PERROT, 2005, p. 467).
Mas, até mesmo dentro desse grupo, há subgrupos em que a violação de direitos é ainda mais patente. Exemplo disso é o caso das mulheres negras, onde o fato de ser mulher e de etnia negra, resulta numa soma de fatores que implicam na sociedade atual em profunda estigmatização e desconsideração de direitos em relação às mulheres de outras etnias.
Outro subgrupo de vulnerabilidade reporta ao tema deste trabalho: às crianças do sexo feminino.
A violência contra as crianças é produto de uma teimosa conclusão cultural de que a “pancada” é mais um dos métodos pedagógicos inerentes da família brasileira. Bater é amor, pensa-se, e se deve proceder assim para que no futuro o indivíduo ali menor não sirva de saco de pancada a terceiros. Ao perpetuar essa cultura complacente[1] com a briga familiar e o ato agressivo como pedagógico, cria-se um ciclo de violência no primeiro recinto exemplar de inserção e desenvolvimento social de um ser humano, a família, inculcando nele um deformado senso de “ensino” mais similar a um adestramento, ignorando a condição de um menor como sujeito de direito livre de agressões à sua integridade física.
Em recente levantamento realizado por conselheiros tutelares do país, chegou-se à conclusão de que são os pais e as mães responsáveis por metade dos casos de violações aos direitos de crianças e adolescentes, como maus-tratos, agressões, abandono e negligência. O Sistema de Informações para a Infância e Juventude, do governo federal, apontou 229.508 casos registrados desde 2009, sendo que, em metade dos casos - 119.002 deles -, trata-se de violência doméstica e familiar onde os autores foram os próprios pais (45.610) e mães (73.392).
Apesar de existir uma lei específica de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, tem se tornado comum que algumas instâncias judiciais, em casos que envolvem esta violência contra vítimas crianças, declinem a competência dos Juízos Especializados na matéria para varas onde a competência é do julgamento de crimes em geral contra menores.
Essa tese, no entanto, não parece a mais adequada aos ditames de proteção da vulnerabilidade da vítima menor do sexo feminino, como se discorrerá a seguir.
2. SUBSIDIARIEDADE E INTERSECCIONALIDADE NA APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A legislação protetiva da mulher, conforme as disposições expressas da Lei 11.340/2006, no entanto, é clara em registrar o fato de que a proteção da lei contra a violência doméstica e familiar não depende de idade. Para que dúvidas não sobejem, traz-se a lei, em seu artigo 2º, ipsis litteris:
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, IDADE e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Mais clara do que a lei é impossível. Não existe dúvida de que a proteção legal, não faz distinção da mulher sob qualquer forma.
Quando a lei estabelece a proteção da legislação pessoal a “TODA MULHER”, aponta que nenhuma distinção prevalecerá para afastar a proteção legal. O advérbio utilizado na letra da lei não é a toa. Deve-se lembrar na interpretação legal do brocardo jurídico hermenêutico de que “verba cum effectu sunt accipienda” – a lei não contém palavras inúteis.
Entendimento distinto que crie qualquer peculiaridade distintiva na interpretação de uma norma de direitos humanos, incorre em erro crasso hermenêutico, olvidando o brocardo jurídico latino prevalente o qual ensina que “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus” – onde a lei não distinguiu, não devemos distinguir”.
Restringir as hipóteses legais de aplicação da Lei Maria da Penha com base nas parcas fundamentações de qualificação de namoro, de igual forma, configura-se esdrúxula aplicação legal contrária ao princípio da vedação da proteção insuficiente e interpretação ampliativa errônea de dispositivo legiferante defensivo da seara dos direitos humanos, cuja aferição de sua mens deve advir sempre estritamente ao que se aduz, em casos de restrição de direitos. Restringir direitos humanos de proteção somente por interpretação ampliativa é conduta, pois, que violenta a Hermenêutica.
Não é só o ordenamento jurídico interno que jaz subjugado quando se declina a competência de Juízos especializados por tais entendimentos de que crianças não são amparadas pela Lei Maria da Penha.
As normas protetivas de direitos humanos das mulheres, provenientes dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, de igual forma, foram avassalados pela interpretação de que a idade pode ser um distintivo para a mulher vítima de violência doméstica.
O artigo 9º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, famosa como “a Convenção de Belém do Pará”, estabelece com translucidez a proteção das mulheres menores de idade vítimas de violência doméstica:
Artigo 9
Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados Partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos. Também será considerada sujeitada a violência a gestante, deficiente, MENOR, idosa ou em situação sócio-econômica desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade.
Por essas razões eminentemente legais, os parâmetros normativos que guiam a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar são insofismáveis na defesa ampla e irrestrita da pessoa da vítima, de modo que separá-la por critérios ultralegais constitui uma odiosa afronta diametralmente oposta à mens legis.
Mas ainda há mais razões para se repudiar a tese do afastamento da competência jurisdicional especializada em crimes que tenham por vítimas menores.
Há quem argua que as disposições relativas à proteção das crianças e adolescentes devem ser utilizadas como ferramenta de proteção à vítima do caso em testilha.
E devem mesmo. Mas não só elas, tampouco isoladas da proteção da Lei Maria da Penha.
Isso porque, é a própria Lei n.º 11.340/2006 que determina sua prevalência frente a outras normas especiais, tal como o Estatuto da Criança e do Adolescente, impondo que tais normas sejam aplicadas somente quando não conflitarem com a Lei Maria da Penha. A clareza da legislação é solar:
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta lei.
As palavras da legislação especial deixa transparecer que sua natureza de aplicação predomina frente a qualquer outro dispositivo, de modo que havendo conflito aparente de normas ou questionamento sobre qual regra especial se deve aplicar, o norte a seguir é o da Lei n.º 11.340/2006[2].
Assim, se a mulher vítima de violência doméstica e familiar é criança, adolescente, idosa, ou tenha qualquer condição especial, nada se revela o bastante para afastar a norma especial n.º 11.340/2006. Pelo contrário, são as peculiaridades de vulnerabilidade que enfrentam as vítimas de violência que as tornam ainda mais merecedoras dos recursos integrais de proteção da Lei Maria da Penha. É nessa intelecção que urge a interpretação mais lidima do artigo 4º do reportado diploma:
Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Se imaginarmos que a condição da mulher enseja o afastamento da norma que lhe é especial, que proteção é esta a ser dada? Dever-se-á ainda afastar a norma especial às mulheres índias, deficientes físicas, quilombolas, imigrantes e quaisquer outras mais que guardem sutil diferença em qualquer aspecto de seu estado?
Óbvio que não!
Deixar de proteger uma vítima pelo fato de ser uma criança é o mesmo que deixar de lhe oferecer todos os recursos legais protetivos em razão do grau maior que se faz inerente à sua vulnerabilidade feminina, uma vez que não é só vulnerável por ser do gênero feminino, mas também por ser menor.
Para aqueles que pretendem agir em nome do Direito das Mulheres, não basta conhecer de leis. É preciso sair um pouco das searas jurídicas e ingressar na sociologia feminista, para compreender que a criança feminina ocupa um espaço de dupla imposição de vulnerabilidade e subordinação; fenômeno este que a sociologia feminista denomina de interseccionalidade[3] (tal como ocorre com as mulheres negras, mulheres deficientes ou mulheres do campo).
Isto é, quando duas ou mais causas de vulnerabilidade se somam num único indivíduo, repercutindo duplamente em favor de sua opressão, tem-se como conclusão que a solução não pode se dar senão pela soma de múltiplas respostas[4].
É isso que ocorre com as crianças do sexo feminino, duplamente vitimizadas por serem menores e por serem mulheres. A proteção delas, portanto, deve ser ainda mais ampla, de modo que sejam amparadas pelo juízo especializado de violência doméstica, sem prejuízo das disposições estatutárias específicas.
Todo magistrado deve estar atento para não cometer mais uma violação de direitos humanos ao afastar a norma mais protetiva ao alcance da vítima. Para tanto, cabe ao juiz não entender só de lei, mas ser humano e entender das nuances da vida e como ela se apresenta[5].
3. A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
À míngua de qualquer exclusão constante do texto da Lei, conclui-se que qualquer mulher está por ela tutelada, independente da idade, seja adulta, idosa ou até mesmo criança ou adolescente. Nestes últimos casos, haverá superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, que não parecem excluir as normas de proteção da Lei "Maria da Penha" que, inclusive, complementam a abrangência de tutela.
Bom que se lembre de que a Lei "Maria da Penha" não se restringe à violência doméstica, abrangendo, igualmente, a violência familiar, do que não estão livres, infelizmente, crianças, adolescentes e idosos. A Lei nº 11.340/06 visa proteger, portanto, a mulher, independentemente de sua idade, devendo-se considerar em sua interpretação, "os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar".
Segundo estabelece o artigo 13 da Lei Maria da Penha, a legislação "relativa a criança e ao adolescente" só será imposta quando não conflitar com o estabelecido naquele regramento legal. Assim, mesmo tratando-se de criança a vítima, desde que esta seja do sexo feminino, há que se aplicar o disposto na citada Lei nº 11.340/2006, vez que o seu artigo 2º, ao indicar a destinatária das respectivas normas, fala em "toda mulher", independente de qualquer discriminação, inclusive de "idade", conforme refere expressamente.
Essa é a interpretação uníssona dos tribunais de todo o País. Para começar, eis algumas ementas dos julgados do Tribunal de Justiça do Maranhão:
PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA MULHER. VIOLÊNCIA PRATICADA NO ÂMBITO DA UNIDADE DOMÉSTICA E FAMILIAR. IDADE DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. UNANIMIDADE.
1. O artigo 2º da Lei 11.340/2006 alcança crimes praticados contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar independente da idade da vítima, afastando, por conseguinte, a competência relacionada ao julgamento de crimes praticados contra criança e adolescente.
2. In casu, trata-se de processo criminal cujo Conflito Negativo de Competência objetiva a declaração de competência para o julgamento do delito de estupro de vulnerável, supostamente praticado pelo pai da vítima, esta com apenas 09 (nove) anos de idade.
3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Suscitado. Unanimidade.
(TJ-MA - CJ: 0262762012 MA 0000341-61.2011.8.10.0042, Relator: JOSE DE RIBAMAR FROZ SOBRINHO, Data de Julgamento: 17/09/2012, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 21/01/2013).
PENAL. PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. VIOLÊNCIA PRATICADA NO ÂMBITO DOMÉSTICO CONTRA MENOR DE IDADE. COMPETÊNCIA DA VARA ESPECIALIZADA.
1 - A lei fala em violência de gênero que nada mais é que aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina de suposta superioridade e dominação social muito comum no patriarcado, propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos. Não é toda e qualquer violência contra a mulher, mas aquela proveniente da discriminação e de uma suposta superioridade, justamente a que se verifica nos autos.
2 - No presente caso, temos relações domésticas na medida em que o pai possui a guarda da menor e essa relação é travada no âmbito das relações domésticas e de convivência familiar. A verdade é que a Lei não faz qualquer distinção acerca da idade da vítima, albergando, inclusive, relações de pai e filha, onde o homem se julga no direito de impor castigo às filhas, inclusive às menores de idade.
3 - Conflito conhecido para declarar competente o juízo suscitado da Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. (Conflito Negativo de Competência n.º 19375/2010, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do MA, Relator: José Joaquim Figueiredo dos Anjos).
Passemos agora à Jurisprudência moderna do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
CONFLITO DE JURISDIÇÃO. Conflito negativo de competência, tendo como suscitante o Juízo do I Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Especial Criminal da Comarca de Campos dos Goytacazes e, suscitado, o Juízo da 3.ª Vara Criminal da mesma Comarca. Estupro de vulnerável praticado, em tese, pelo padrasto contra a enteada menor (oito anos de idade). Medidas protetivas promovidas pelo Ministério Público e deferidas pelo Juízo da Vara Criminal, em sede de plantão judiciário. Posterior manifestação ministerial no sentido do declínio de competência, sendo a tese agasalhada na decisão do Juízo da Vara Criminal. Conflito suscitado pelo Juizado especializado, com base no entendimento de que não estaria caracterizada situação de violência doméstica em razão do gênero. Para determinação da competência do Juizado especializado, a análise do evento deve mostrar que a violência foi praticada em detrimento da mulher, sendo indispensável que a violência efetivamente ocorra no âmbito doméstico, familiar ou no bojo de relacionamento íntimo mantido entre o agressor e a vítima, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão. In casu, estão manifestamente presentes todos os requisitos, sendo o parentesco entre ofendida e agressor amparado pelas disposições legais. Conflito julgado improcedente. Competência do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, ora suscitante.
(TJ-RJ - CJ: 00277550920148190000 RJ 0027755-09.2014.8.19.0000, Relator: DES. ANTONIO JAYME BOENTE, Data de Julgamento: 26/08/2014, PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 04/09/2014 12:27).
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CRIME PRATICADO ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009. CONDENAÇÃO DO RÉU PELA PRÁTICA DO CRIME TIPIFICADO NO ARTIGO 214 C/C 226, INCISO II, EM CONTINUIDADE DELITIVA. PRELIMINAR DE NULIDADE DO PROCESSO, ARGUIDA PELA DEFESA, POR INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO PROLATOR DA DECISÃO. AINDA EM SEDE PRELIMINAR, SUSTENTA A DEFESA A NULIDADE DO FEITO, EM FACE DA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR REALIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, CUJA ATRIBUIÇÃO NÃO ENCONTRARIA RESPALDO NO ART. 144, § 4º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, QUE PRECEITUA A COMPETÊNCIA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA. NO MÉRITO, REQUER A DEFESA A ABSOLVIÇÃO DO RÉU, POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS, BEM COMO A FIXAÇÃO NA PENA BASE NO MÍNIMO LEGAL. RECURSO MINISTERIAL, PUGNANDO PELA EXASPERAÇÃO DO QUANTUM APLICADO A TÍTULO DE CONTINUIDADE DELITIVA, PARA O PERCENTUAL MÁXIMO DE 2/3, PREVISTO NO ARTIGO 71, CAPUT DO CÓDIGO PENAL. PROVIMENTO PARCIAL DO APELO DEFENSIVO. PROVIMENTO DO APELO MINISTERIAL, EM SUA INTEGRALIDADE.
Fatos "Em vários momentos que não podem ser precisados, mas certamente desde meados do ano de 2001 até o dia 04 de maio de 2007, sempre no interior do imóvel situado na Rua xx, xx, xx, Campos dos Goytacazes, o réu, de forma consciente e voluntária, e com a intenção de satisfazer a sua lascívia, constrangeu sua filha RSS, nascida no dia 23 de março de 1994, mediante grave ameaça de agredi-la fisicamente, e aproveitando-se de sua tenra idade menos de 14 anos -, a consigo manter atos libidinosos consistentes em passar-lhe no corpo as mãos e o pênis, beijar-lhe a boca e obrigá-la à felação, tudo de forma concupiscente. Naqueles mesmos vários momentos, o denunciado, igualmente com a intenção de satisfazer a sua lascívia, constrangeu a mesma vítima, mediante grave ameaça de agredi-la fisicamente, a consigo manter conjunção carnal, introduzindo o pênis em sua vagina. Tais fatos se repetiram por diversas vezes e de forma continuada ao longo dos anos, sempre da mesma forma, ou seja, durante a noite, no interior do quarto da referida vítima, abusando o denunciado de seu poder familiar e impondo-lhe, como pai, invencível temor". Preliminares de nulidade por incompetência do Juízo e por imprestabilidade da prova produzida na fase inquisitorial pelo Ministério Público Rejeito as preliminares argüidas.
1. Ao que se depreende das provas colhidas em juízo, mormente pelos relatos da vítima e das testemunhas, o réu praticou os crimes que lhe são imputados, valendo-se da condição feminina da vítima, sua filha.
2. No caso presente, o réu praticou com a sua filha RSS, no período compreendido entre 2001 a maio de 2007, diversos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, conforme ampla prova contida nos autos.
3. Ao contrário do que se sustenta, o fato configura violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que a vitima é filha do autor do fato, além de o fato ter acontecido devido a sua inferioridade de forças (pelo fato de ser mulher).
4. A incidência da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) não está vinculada à idade da vitima, pois configura violência domestica contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão sofrimento físico, sexual ou psicológico, no âmbito da unidade doméstica, em qualquer relação intima de afeto na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, consoante interpretação extraída dos arts. 2º e 50 da aludida lei" (fls. 11/12 e-doc 00253). Outro não é o posicionamento desta Egrégia Câmara Criminal.
5. No que tange à segunda preliminar suscitada, impõe salientar que a Jurisprudência pacificada do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da possibilidade do Ministério Público, que exerce o controle externo da atividade policial, colaborar com as investigações na fase inquisitiva, inclusive produzindo provas, sem que isso implique em qualquer nulidade do processo instaurado, ou afronta à Carta Magna. [...]
(TJ-RJ - APL: 00456100320078190014 RJ 0045610-03.2007.8.19.0014, Relator: DES. CLAUDIO TAVARES DE OLIVEIRA JUNIOR, Data de Julgamento: 01/02/2012, OITAVA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 02/05/2012 18:01).
Segue-se adiante para a Jurisprudência dominante do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. AGRESSÕES PRATICADAS PELO PADRASTO NO ÂMBITO FAMILIAR. Não se pode olvidar que a Lei n.º 11.340/06 procura proteger as mulheres de todo e qualquer tipo de violência praticada no âmbito familiar e doméstico. Assim, demonstrado que a vítima convivia com seu agressor desde tenra idade, possuindo relação de parentesco por afinidade, pois partilhavam a mesma residência e conviviam no mesmo ambiente familiar, resta configurada a violência de gênero, nos moldes preconizados pelo art. 5.º, inciso III, da Lei n.º 11.340/2006, a fazer competente a 4ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria para o processamento e julgamento do feito. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO.
(Recurso em Sentido Estrito Nº 70046945523, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 26/04/2012).
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PADRASTO E ENTEADA. PARENTESCO POR AFINIDADE. ART. 1595 DO CÓDIGO CIVIL. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO FAMILIAR. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA.
1. A incidência da Lei sobre violência doméstica (Lei nº 11.340/06) tem como pressuposto motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência que caracterize situação de relação íntima que possa causar violência doméstica ou familiar, isto é, opressão contra a mulher.
2. Tratando-se de suposto cometimento de delito de ameaça praticado pelo padrasto da vítima, mostra-se viável a hipótese da incidência da Lei nº 11.340/06, sendo caso de parentesco por afinidade, abrangido no art. 5º da Lei nº 11.340/06. Hipossuficiência da vítima presumida em se tratando de ameaça de um homem contra uma mulher, tendo em vista a superioridade física daquele ante esta, inexistindo indício, no caso concreto, que venha contrariar esta presunção, pelo contrário, a vítima sentindo-se ameaçada recorreu diretamente à força policial pelo temor em relação ao acusado.
JULGARAM IMPROCEDENTE O CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. UNÂNIME.”
(Conflito de Jurisdição Nº 70041320268, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 28/04/2011).
Em arremate, colaciona-se até a ementa do Tribunal de Justiça do Acre:
ESTUPRO. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. LESÕES CORPORAIS E AMEAÇA. VÍTIMA MENOR DE IDADE. COMPETÊNCIA. VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DO FEITO. PROCEDÊNCIA DO CONFLITO.
Tratando-se de violência doméstica e familiar contra mulher, a competência para processamento e julgamento do feito é da especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher. Vistos, relatados e discutidos estes autos do Conflito de Jurisdição nº 0000624-65.2011.8.01.0000, de Rio Branco, em que figuram como partes as supranominadas, ACORDA, à unanimidade, a Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Acre, em declarar competente o juízo suscitado, tudo nos termos do voto do Relator e notas taquigráficas arquivadas. Rio Branco, 21 de junho de 2011
(Acórdão n.º: 11.432 Classe Conflito de Jurisdição n.º 0000624-65.2011.8.01.0000 Foro de Origem: Infância e Juventude de Rio Branco Órgão : Câmara Criminal Relator : Des. Francisco das Chagas Praça Suscitante : Juízo de Direito da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Rio Branco Suscitado : Juízo de Direito da Vara de Violência Doméstica (virtual) da Comarca de Rio Branco Assunto).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deixar de garantir a norma mais protetora em favor da vítima no caso em comento é deixá-la ao desamparo, não aplicando, destarte, a norma mais garantidora de seus direitos e, por consequência, ferindo o luminar da vedação da proteção insuficiente.
Isso ocorre pelo fato de que o Estado, por força dos deveres de proteção aos quais está vinculado, não pode se omitir ou atuar de forma insuficiente na promoção e proteção de tal direito, sob pena de incorrer em violação da ordem jurídico-constitucional.
Vale encalamistrar que a Constituição Federal, em seu artigo 226 e §8º, assegurou a proteção da família com primazia, não tendo feito distinção entre tipos de pessoas, determinando que todas estão ao abrigo da lei e possuem indistintamente o direito de proteção e coibição à violência familiar.
A peculiaridade de uma vítima de violência familiar ser criança não é um fator a diminuir sua proteção, mas um requisito de que sua defesa deve ser redobrada, pois, nos termos constitucionais do artigo 227 e §4º, a violência perpetrada contra crianças deve ser punida de forma ainda mais severa, indicando a lei que todos os mecanismos de proteção devem ser utilizados para a efetivação da reprimenda.
Some-se a isso a incidência, neste caso, do princípio da aplicação da norma mais favorável à vítima, segundo o qual, diante do confronto de leis, deve-se dar preferência sempre àquela interpretação ou aplicação onde prepondere o maior benefício da vítima de violação de direitos humanos.
Volvendo ao caso em quadro, é salutar que todo tipo de interpretação ou lei seja preferido em favor da vítima menor, a fim de que a esta seja assegurada a garantia de um juízo especializado que, aplicada a legislação especial n.º 11.340/2006, oferte maiores e mais eficazes instrumentos de defesa à sua vulnerabilidade. A Ministra do STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, discorre acerca desse princípio, ofertando como exemplo os dispositivos protetivos à mulher vítima de violência:
“O princípio da primazia da norma mais benéfica foi consolidado internacionalmente por declarações e tratados internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito global quanto no âmbito regional. (...) A Convenção pela Eliminação da Discriminação contra a Mulher, em seu artigo 23, estipula que ‘[n]ada do disposto nesta Convenção prejudicará qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) na legislação de um Estado-Parte; ou b) em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado’.” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica – estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 57-58).
Destarte, não parece adequado prosperar uma tese que afasta a lei especial da vítima pelo fato desta ser menor, visto que se trata de impor limites onde a lei não o fez, criando óbices sem fundamento legal e partindo de uma interpretação maléfica à vítima.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 11.340/2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2006.
_______. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Pará, 1994.
CALAMANDREI, Pierre. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Curitiba: Juruá, 2012.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In: Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica – estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
NOTAS
[1] Essa forma de aculturação pode ser claramente constatada quando comparamos situações semelhantes em instituições diferentes como é o caso de uma fábrica, de uma loja ou de uma repartição pública, por exemplo. Nesses locais ninguém maltrata fisicamente ou fere um empregado porque ele cometeu algum erro (e se o faz, seu ato é totalmente rechaçado pelas regras sociais). “Na família a situação é diferente. A regra básica é que se alguém faz alguma coisa errada, a violência não só é permitida, como, algumas vezes, requerida” (STRAUSS, 1980, p. 184 apud MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In: Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 278).
[2] A doutrina de escol aquiesce nesse mesmo diapasão: “A menção expressa à legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso, levou em conta que muitas vezes as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar são crianças, adolescentes ou idosos, que devem ter seus direitos especiais previstos na legislação especifica, também assegurados pelo juízo especializado, de forma a não lhe omitir ou suprimir nenhum dos direitos que lhes foi assegurado em legislação própria, que devem ser aplicados naquilo que não conflitar com o estabelecido nesta Lei, de forma subsidiária” (CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Curitiba: Juruá, 2012, p. 361.) - grifos aditados.
[3] A interseccionalidade trataria da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas confluências constituiriam aspectos ativos do desempoderamento. A imagem que ela oferece é a de diversas avenidas, em cada uma das quais circula um desses eixos de opressão. Em certos lugares, as avenidas se cruzam, e a mulher que se encontra no entrecruzamento tem que enfrentar simultaneamente os fluxos que confluem, oprimindo-a. (PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263 a 274.)
[4] A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002, 177).
[5] Como ensina com fulgor Pierre Calamandrei, “não basta que os magistrados conheçam com perfeição as leis tais como são escritas; seria necessário que conhecessem igualmente a sociedade em que essas leis devem viver” (Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 183).
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