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sexta-feira, 26 de maio de 2017

A pluralidade das periferias: da mobilização coletiva ao reconhecimento das individualidades. Entrevista especial com Leandro Pinheiro


Por: Patricia Fachin | 26 Maio 2017



No imaginário do senso comum, a periferia é compreendida como um conjunto de “moradias semiacabadas, em condição precarizada pela existência insuficiente de equipamentos e serviços públicos, (...) casas pequenas situadas junto a ruas estreitas, sem prévia planificação, algumas vezes em regiões fisicamente distantes dos centros históricos urbanos”, mas o “mais adequado” seria compreender as “periferias”, “reconhecendo sua pluralidade e as movimentações que produzem na habitação, ocupação e enunciação das relações na urbe”, diz o sociólogo Leandro Pinheiro à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pinheiro comenta alguns dados daPesquisa da Fundação Perseu Abramo, sobre os valores dos moradores da periferia, comparando a realidade paulista, apresentada na pesquisa, com a realidade gaúcha, a partir de suas pesquisas e incursões nas periferias de Porto Alegre. “Seria adequado usar classificações como a de ‘individualismo’? Se há uma narrativização em nome de certo ‘faça por si mesmo’, diria, desde minhas incursões em Porto Alegre, que é preciso considerar a necessidade de agência disposta no cotidiano, quando nem sempre (ou dificilmente) se pode contar com políticas públicas suficientes ou mesmo com redes sociais estáveis que amparem a subsistência ou a mobilidade social. E, além disso, seria preciso problematizar o quanto isso se dá associado ao reconhecimento do apoio obtido junto a laços próximos, com familiares, vizinhos, amigos, eventualmente colegas de trabalho (que sequer residem na mesma localidade)”, pontua. Um exemplo dessa inter-relação entre o “individualismo” e a “coletividade”, afirma, são as práticas no âmbito da produção cultural. “Muitas das práticas desse âmbito de produção cultural constituíram sua força de mobilização coletiva em articulação ao reconhecimento das individualidades”, diz.
Leandro Pinheiro também comenta as disputas, de um lado, pelo mercado de trabalho no tráfico e, de outro, por territórios. “Há alguns anos, as disputas têm se intensificado em Porto Alegre, incluindo-se aí vários confrontos armados. A demonstração de força muitas vezes está associada à virulência do extermínio e, neste ínterim, meus interlocutores têm narrado a vivência de limites à circulação, ao ativismo ou às práticas de lazer. Por vezes, moradores de bairros onde a atuação de traficantes é incisiva mencionam a conexão entre agentes do tráfico nos bairros e aqueles que estão em cárcere; afirmam também articulações entre empresas locais (em mercado lícito) e traficantes para aquisição de armas”. 
Leandro Pinheiro é professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, mestre em Administração pela UFRGS e doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, em 2008, com estágio realizado na Universidad Complutense de Madrid.
O pesquisador esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 10-05-2017, participando do ciclo “Metrópoles. A centralidade das periferias brasileiras”, onde apresentou a palestra “Itinerários versados – redes, pertenças e modos de ser nas periferias de Porto Alegre”. Assista a conferência no vídeo no final desta entrevista.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quando se fala em “periferia”, qual é a ideia do senso comum? Que questões precisam ser corrigidas nesse aspecto no sentido de compreender o que de fato são hoje as periferias, tendo como exemplo as periferias da capital gaúcha? Nesse sentido, de modo geral, que modificações diria que as periferias sofreram nesses últimos anos?
Leandro Pinheiro - ‘Periferia’ se tornou um desses termos de uso comum hoje em dia; quando se fala nela, em geral e sem que seja necessário discuti-lo obrigatoriamente, parece que comungamos de certo entendimento, e poderíamos evocar, aqui, imagens de contextos com moradias semiacabadas, em condição precarizada pela existência insuficiente de equipamentos e serviços públicos; casas pequenas situadas junto a ruas estreitas, sem prévia planificação, algumas vezes em regiões fisicamente distantes dos centros históricos urbanos. Lugares, enfim, que tentamos nominar e distinguir no horizonte da urbe.
Se há, de uma parte, a construção de sentidos desde essa noção e uma produção de discursos que tenta designar tais espaços sociais (e, por certo, também disputamos sua enunciação de alguma maneira), penso que reside aí certa potência, um ponto de partida para conhecermos algumas realidades e os sujeitos que as constituem cotidianamente; para um tensionamento do próprio nome e do que carrega. Ao tomarmos os bairros onde são constatados os maiores índices de vulnerabilidade social e violência em Porto Alegre, há grandes contingentes populacionais. E este já poderia ser aspecto a interpor perguntas pela densidade e pela diversidade que configuram as relações em tais territórios.
Mesmo que uma designação generalizante seja corrente, entendo necessário nos atermos aos processos de diferenciação que constituem os diferentes contextos sociais, incluindo-se aí o que denominamos como “periférico”. Neste sentido, se a enunciação de uma “comunidade” ganha lugar na menção às periferias, por exemplo, como observa Bauman, é importante termos em conta que não falamos do sentido estrito da vivência de entendimento comum e/ou de referencialidades normativas tácitas e totalizantes; seria mais prudente considerar a produção de identidades frente ao tensionamento do que se entende e almeja como relações de convívio necessárias, a evocar a ‘comunidade’ então, como origem ou condição. A existência de memórias em comum, de laços de reciprocidade ou mesmo de condições semirrurais em alguns dos recantos em que foram desenvolvidas as localidades de periferia podem inspirar tal compreensão (sobretudo se consideramos a experiência cultural de moradores advindos por êxodo rural). Porém, quando a experiência citadina periférica se erige massivamente (especialmente entre os anos 1960 e 1980), dá-se na interdependência com o “centro” produzido sócio-historicamente, dadas especialmente nos fluxos de trabalho e nas disputas por melhores condições de vida nos marcos de uma vida urbana e de suas promessas de modernização.
A aproximação aos cotidianos produzidos em localidades de periferia dispõe questão importante sobre a pluralidade das redes sociais, sobre a variável intensidade das identificações e sobre as dificuldades em delimitarmos modos de ser. Essa ressalva é importante; as caracterizações que possam ser apresentadas não deixam de compor uma produção discursiva que, mesmo sensível à plausibilidade das inferências que enfatiza, não pode perder de vista o quão diverso podem ser as malhas relacionais que os sujeitos constituem, embora vivendo sob uma mesma delimitação topográfica.
Se desejamos manter o constructo para designar contextos de confluência de múltiplas desigualdades sociais, penso ser mais adequado falarmos de “periferias”, reconhecendo sua pluralidade e as movimentações que produzem na habitação, ocupação e enunciação das relações na urbe.
A noção de “periferia” designa a experiência de um espaço-tempo de produção social de alternativas reflexivas e estéticas de “fronteira”
Hoje, além disso, a noção de “periferia” (assim como seus correlatos, “quebrada”, “vila”, “favela” etc.) designa a experiência de um espaço-tempo de produção social de alternativas reflexivas e estéticas de “fronteira”. As expressões artísticas de contextos vulnerabilizados a partir dos anos 1980, e especialmente nos 1990, com destaque às frentes de ação do Funk ou do Hip Hop, contribuíram para a formação de signos de identificação neste sentido, com apelo especialmente entre os jovens na “conversão do estigma em emblema”, como afirma Rossana Reguillo (2012). Tal dinâmica realoca as tensões “centro-periferia”, narrativizando-as em mídias informacionais, em performances e/ou visibilizando-as em diferentes lugares e espaços de ação.
IHU On-Line - Recentemente a Fundação Perseu Abramo publicou uma pesquisa na qual indica que os moradores da periferia de São Paulo valorizam o mérito, o individualismo, mas também a coletividade. De outro lado, boa parte deles tem alguma vinculação com as igrejas pentecostais e, de modo geral, embora valorizem as políticas públicas, fazem duras críticas ao Estado. Esses valores também são evidenciados nas periferias de Porto Alegre, nas quais o senhor desenvolve suas pesquisas? Que valores evidencia nessas comunidades? Na última entrevista que nos concedeu, o senhor comentou rapidamente que as redes de reciprocidade nas periferias da capital são a família e os vizinhos, e que os moradores olham com desconfiança para os aparatos institucionais.
Leandro Pinheiro - Penso que a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo já foi alvo de muitas análises, em diferentes espectros políticos inclusive. Neste sentido, farei alguns comentários breves.
Faço coro aos analistas que chamaram a atenção para a necessidade de reconhecer a pluralidade que compõe as periferias urbanas, conforme a localização dos bairros nas regiões metropolitanas e os espaços de ação que os sujeitos integram/produzem em localidades bastante populosas, cuja densidade relacional cria, ademais, diferentes formas de articulação ao que poderíamos supor “não-periférico” (no trabalho, na circulação pela urbe, nos consumos midiáticos etc.).

Disputas na arena política

Não podemos perder de vista que a pesquisa tinha um objetivo bastante específico, vinculado às disputas na arena política institucional
De forma geral, penso que não podemos perder de vista que a pesquisa tinha um objetivo bastante específico, vinculado às disputas na arena política institucional. As questões visavam um diagnóstico para compreender as escolhas eleitorais de moradores de periferias. Sua formulação e, então, as análises propostas ali trazem classificações que falam, sobretudo, das concepções de quem as concebe. A referência a “mérito”, “progressismo” e “conservadorismo” nos objetivos, ou a segmentação deliberada da amostra entre ‘neopentecostais’ e ‘não neopentecostais’ são exemplos disso. Considerando sua finalidade, talvez devêssemos lhe creditar êxito, e parte das discussões provocadas na sequência da publicação da pesquisa é parte da configuração das disputas político-partidárias, com diferentes tentativas de classificação das tomadas de posição dos citadinos.
Porém, não assumiria seus resultados como expressão de valores majoritários nas periferias. De fato, é preciso ter cuidado para não impormos categorizações na compreensão de práticas e valores: a própria delimitação gerada sob a denominação “periferia” pode incorrer numa segmentação que ignora as sintonias e articulações entre pesquisadores e pesquisados, nós e eles, ou propriamente o que se convencionou chamar ‘centro’ e ‘periferia’.

Valores da periferia

Se podemos encontrar enunciados os valores referidos na pergunta, é preciso seguirmos em imersão para compreendermos as apropriações que os sujeitos fazem de tais categorias. De uma parte, discursos, valores e práticas que perpassam nossas relações estão também nessas localidades e segmentos que acabamos por delimitar como “outros”. De outra, há apropriações diferenciadas e usos contextualizados. Tomemos um exemplo. Seria adequado usar classificações como a de “individualismo”? Se há uma narrativização em nome de certo “faça por si mesmo”, diria, desde minhas incursões em Porto Alegre, que é preciso considerar a necessidade de agência disposta no cotidiano, quando nem sempre (ou dificilmente) se pode contar com políticas públicas suficientes ou mesmo com redes sociais estáveis que amparem a subsistência ou a mobilidade social. E, além disso, seria preciso problematizar o quanto isso se dá associado ao reconhecimento do apoio obtido junto a laços próximos, com familiares, vizinhos, amigos, eventualmente colegas de trabalho (que sequer residem na mesma localidade). Fica aí uma provocação para que pensemos também as dinâmicas de reciprocidade associadas ao imperativo socioeconômico (e também simbólico) da agência.
Passando a outro caso, seria necessário esclarecer o que desejamos designar por “mérito”. Se há valorização moral do esforço, isso não significaria necessariamente referência à meritocracia como orientação absoluta da experiência. Primeiramente, é preciso reconhecer que a posição de um ativista do Hip Hop, de uma educadora social, de um jovem MC de funk ou de um membro de igreja neopentecostal pode apresentar nuances, quando não diferenças significativas. Muitas das pessoas com quem dialogo em pesquisas sabem que suas condições são desfavoráveis e que há exploração e desigualdade, e que isso explica parte de sua situação. Ainda assim, definem o esforço como meio de mobilidade social. Quando se dirigem ao Estado, reclamam e esperam dele serviços de qualidade, mas o fazem mirando aparatos que historicamente têm funcionamento insuficiente. Aí, a desconfiança em relação a eles (que referi em entrevista anterior) precisa ser entendida como a disposição para articular as alternativas que os serviços públicos oferecem com as outras oportunidades; uma disposição também para “bricolar” os saberes dos especialistas com aqueles advindos da religiosidade, da medicina popular etc., adensando o espaço de possíveis.
Creio que precisamos pensar desde conciliações e bricolagens com quais os sujeitos operam, e que talvez as classificações políticas usuais (como liberais, anarquistas, individualistas etc.) deixem escapar.
IHU On-Line - Entre o referencial teórico de sua pesquisa, encontra-se o nome de autores como Alberto Melluci e Danilo Martuccelli. Quais são as principais contribuições deles para tratar o tema da periferia? Como a obra deles ajuda a refletir sobre as formas de abordar as redes e as pertenças nas periferias?
Leandro Pinheiro - As contribuições desses autores são tomadas como inspirações. Eles não abordam exatamente a realidade de contextos socialmente vulnerabilizados e há sempre a necessidade de leituras complementares e/ou tensionadoras. Além disso, integram uma mirada que, convém lembrar, tem um recorte arbitrário, orientado a alguns aspectos das realidades em foco aqui.
Com Melucci, procuro refletir sobre a produção identitária. Aí, enfatiza-se a construção de identidades no âmbito da individuação e em sociedades com intensa organização informacional. O autor assume o ‘identitário’ para além de uma situação supostamente estática de delimitação de atribuições; configura-se como um processo e um campo, em que se atua conforme os vetores de identificação/reconhecimento.
Menciona, nesse sentido, que seria mais adequado falarmos de “identização”, como uma ação e não somente uma situação. Assim, pensada como capacidade simbólica, instiga-me a refletir sobre os diversos processos de narrativização produzidos pelos sujeitos (em depoimentos, em causos, em tatuagens, em redes sociais etc.), agenciando e se movendo entre práticas e pertenças.
Já recorrendo a Danilo Martuccelli, encontro uma interpretação por vezes contrastante. Suas proposições heurísticas na sociologia dos indivíduos e na análise de processos contemporâneos de singularização é uma apropriação recente, a que cheguei em função de minha interlocução com pesquisas sobre a condição juvenil contemporânea. Este autor realça a diversificação das experiências na produção social dos indivíduos no curso da modernidade. Entre outros aspectos, por exemplo, discute a individuação desde a governamentalidade capitalista, na responsabilização individual pelas práticas e suas consequências. Ao lado (e na fronteira) do disciplinamento, o conclamar das habilidades peculiares do indivíduo na realização de um projeto para si, ao qual se associa a prescrição da necessidade de participação, autonomia, independência, autenticidade.
A provocação, então, é para que nos debrucemos à busca de operadores analíticos, para a compreensão das formas pelas quais nos constituímos ‘indivíduos’ na relação com aspectos que perpassam a socialização na coletividade: uma relação que concerne à produção de identificação, mas que, para este autor, precisa ser problematizada aquém e além das identidades sociais. A mim, inspiração para inventariar itinerários, e em um esforço de contextualização, compreender os diferentes desafios experienciados e as redes narrados pelos sujeitos como formas de construção de seus espaços de possíveis numa malha relacional bastante densa e diferenciada, como é o caso das periferias metropolitanas.
Assim, não obstante as diferenciações de gênero e étnicas e as condições materiais e culturais sejam marcadores importantes na delimitação dos espaços de ação de cidadãos de localidades periféricas, procuro discutir que reflexividades identitárias e interpelações por singularização (no consumo, nas produções culturais, nas redes sociais etc.) também perpassam as relações sociais em tais contextos.
IHU On-Line - Como se dá e qual é a importância das formas de produção de identidades, individuação e singularização nas periferias de Porto Alegre?
Leandro Pinheiro - Pelo menos em parte, a importância que possamos atribuir a esses aspectos se articula à forma como se compreendem as relações sociais contemporâneas, considerando as filiações teóricas adotadas. Desta forma, entendo que se, de um lado, as relações sociais levam suas dinâmicas de regulação e controle ao cotidiano e à mobilização dos desejos individuais, de outro, as mudanças e riscos produzidos no curso da modernidade (crise ambiental, globalização, TICs etc.) e os recursos informacionais facultados aos sujeitos neste mesmo cenário, podem potencializar dinâmicas reflexivas em práticas e filiações. Assim, pode-se operar na elaboração de enunciados que disputem a definição de sentidos ou, pelo menos, experiencia-se certo autoconfronto com as ambivalências de nosso tempo, como afirma Ulrich Beck.
Tomarei como exemplo o caso do Hip Hop, assinalando disposições que me parecem se estender (em níveis distintos) a diferentes grupos, especialmente entre os jovens. A capacidade de elaboração simbólica das identidades entre suas práticas, na forma de identizações, parece-me bastante manifesta. Diria mesmo que a “identidade” se torna explicitamente uma pauta reflexivo-estética, na forma de enunciados sobre a condição periférica, a ancestralidade negra ou um bairro de origem ou outro.
Muitas das práticas desse âmbito de produção cultural constituíram sua força de mobilização coletiva em articulação ao reconhecimento das individualidades
Além disso, muitas das práticas desse âmbito de produção cultural constituíram sua força de mobilização coletiva em articulação ao reconhecimento das individualidades. Quando acompanhava ensaios de um grupo de dançarinos de breaking atuante em Porto Alegre, era possível perceber que o mote da aprendizagem dos passos era encontrar um estilo próprio e tê-lo reconhecido entre os pares. Em congruência, a disponibilidade estética dos bboys na criação de passos procurava apropriar o ‘singular’ de uma dança assistida em vídeo na internet ou na forma de andar ou gesticular de um colega.
Mas, além disso, poderia ressaltar outra forma de individuação concernente aos cotidianos de minhas incursões, destacadamente entre adultos e idosos. É comum se perceber certa responsabilização precoce (para os atuais parâmetros legais) presente nos percursos biográficos da maioria dos sujeitos com quem tenho dialogado. Então, seja pela incumbência de tarefas laborais quando ainda crianças, seja pela necessidade de deixar as famílias de origem e transitar, as trajetórias se compunham na produção de laços de reciprocidade e táticas para se chegar a condições de subsistência (trabalho e moradia, entre elas), atenuar situações exploratórias, ou, então, para conquistar possibilidades de fruição e sociabilidade. Um cenário em alguns aspectos bastante discutido e visibilizado, em relação ao qual, porém, poderíamos considerar hipótese sobre o processo de individuação em jogo: configurado na interposição da necessidade de agência, astúcia e de construção de redes de apoio frente a condições adversas e aparatos públicos de presença insuficiente, conforme me ajuda a refletir Danilo Martuccelli.
Então, associado a tal processo, observa-se também que as alterações nos arranjos familiares, a ampliação do acesso e habitação da escola, a imersão mais recente a possibilidades de consumo diversas e a valorização das redes de sociabilidade e produção/fruição cultural configuram um cenário em que podemos ver aproximações mais concretas ao processo de singularização, destacadamente entre os jovens.
Creio que essas diferentes dinâmicas de produção das identidades e dos indivíduos-sujeitos merecem nossa atenção, se desejamos criar formas cada vez mais plausíveis para estabelecer diálogos e compreender os sistemas de interpretação desde as quais nossos interlocutores tomam posição, por mais que este seja um esforço sempre inconcluso.
IHU On-Line - No início deste ano assistimos às rebeliões nos presídios da região Norte e Nordeste e alguns especialistas no tema afirmam que os conflitos relacionados às drogas ocorrem dentro e fora da prisão. Essa situação envolvendo o tráfico de drogas e as disputas entre as facções também tem ocorrido em Porto Alegre ou nas periferias de Porto Alegre, ou a realidade da capital gaúcha é diferente da de outras regiões do país?
Leandro Pinheiro - Não venho abordando este tema em minhas pesquisas. Posso apenas relatar aqui o que percebo e/ou o que me contam em campo, como repercussão das disputas entre grupos de traficantes no cotidiano.
Há hoje a formação de mercado de trabalho no tráfico, com diferentes posições, e uma disputa por territórios bastante intensa
Depreende-se que, já há alguns anos, as disputas têm se intensificado em Porto Alegre, incluindo-se aí vários confrontos armados. A demonstração de força muitas vezes está associada à virulência do extermínio e, neste ínterim, meus interlocutores têm narrado a vivência de limites à circulação, ao ativismo ou às práticas de lazer. Por vezes, moradores de bairros onde a atuação de traficantes é incisiva mencionam a conexão entre agentes do tráfico nos bairros e aqueles que estão em cárcere; afirmam também articulações entre empresas locais (em mercado lícito) e traficantes para aquisição de armas.
Percebe-se que há hoje a formação de mercado de trabalho no tráfico, com diferentes posições, e uma disputa por territórios bastante intensa. A modo de uma concorrência corporativa empresarial, planejam alianças entre grupos minoritários em determinada localidade e facções externas que ambicionam ampliar seus espaços de controle e ação. Neste contexto, os antigos códigos de proteção comunitária por vezes operados por traficantes em suas localidades têm sido tensionados. Além disso, a disputa na captura do desejo de potenciais colaboradores, especialmente entre os jovens, parece se amplificar. Inclusive, são recorrentes as demonstrações de receio por parte de moradores de localidades periféricas, ao afirmarem que a vinculação com práticas do tráfico tem iniciado cada vez mais cedo, incluindo-se aí o uso de armas de fogo.
Tornam-se patentes as repercussões sobre as possibilidades de os citadinos se apropriarem do espaço público. Mais além, a influência de tal cenário entre os adultos se consubstancia em apelos por institucionalização dos jovens (em escolas e projetos sociais). O risco e o medo parecem encontrar alternativa de segurança no interior de aparatos organizacionais e no desejo de processos educacionais que, muitas vezes, podem nos remeter a apelos por confinamento e, por vezes, disciplinamento.
Assista a conferência na íntegra: 

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