Quem nunca viu um longa do diretor russo Andrey Zvyagintsev e o observa, simpático, pacato e até mesmo sorridente, pode até pensar que seus filmes são da seara dos que “fazem a gente sair mais leve do cinema”. Mais longe disso, impossível.
Se o cineasta já nos tinha presenteado com um soco no estômago chamado Leviatã em 2015 (que merecidamente concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016 e integrou a mostra competitiva de Cannes em 2014), desta vez ele chega à competição de Cannes 2017 com um direto no fígado. Nelyubov (em inglês, Loveless, o que poderia ser em português, Sem Amor ou Falta de Amor) tem um título tão límpido quanto a luz construída pelo diretor de fotografia Mikhail Krichman.
O longa abre com uma imagem bucólica, e melancólica, de uma árvore. A princípio enigmática, mas que revela seu propósito logo em seguida. E a mesma imagem fecha a narrativa como um círculo que se fecha em torno das vaidades, ou vícios, humanos e contemporâneos. E mais uma vez no cinema de Zvyagintsev a natureza é personagem presente que acompanha os sentimentos, e desesperos, dos personagens. “A paisagem que vocês veem no começo do filme estava planejada no roteiro. Andrey me pediu para filmar várias paisagens”, explicou Krichman em conversa com os jornalistas há pouco. “O filme foi rodado no início de outubro e a natureza muda muito e é mágico. O Andrey queria filmar esta paisagem no início e no fim do filme.”
De fato a estratégia narrativa do diretor funciona perfeitamente. Ainda que a maior paisagem de sua história seja o rosto dos atores, em especial o casal Zhenya (Maryana Spivak) e Alexey Rozin (Boris), que passam da total indiferença em relação a seu filho Alyosha (Matvey Novikov) ao desespero completo quando o garoto desaparece sem deixar vestígios.
Apesar do filme se passar em grande parte na busca de Zhenya e Boris pelo filho, é a construção da trama desta tragédia que revela a engenhosidade de Zvyagintsev. Impossível decidir se, em seu cinema, o homem é o lobo do homem ou se é o olhar analítico e maquiavélico do cineasta que joga luz sobre as partes sombrias da natureza humana. Como bem observou o produtor Alexander Rodnyansky, Zvyagintsev observa as pessoas de forma muito particular.
E a forma como ele observa a mãe ausente e o pai mais ausente ainda da vida do filho pré-adolescente é exasperante. Zhenya e Boris vão se divorciar e para isso precisam vender o apartamento em que moram com o garoto. Ela “não quer, como sempre, consertar a bagunça” que o marido faz e cuidar sozinha do filho depois da separação. Ele quer apenas se ver livre da mulher que hoje detesta para poder casar novamente com uma namorada mais jovem que está grávida de seu segundo filho. Ter um bom casamento é condição crucial para manter o emprego, em uma empresa em que os valores da família e da religião são pré-requisitos do currículo.
A solução para ‘se livrar’ do peso que é Alyosha não passa por fazer com que o menino desapareça. No entanto, ironicamente e bem a serviço da engrenagem do roteiro, o menino foge. É aí que o egoísmo, o hedonismo, a desconexão dos pais com a vida do filho tomam dimensões trágicas. Assim como em Leviatã, não há saída e muito menos redenção. Aprendizado e transformação ao final da jornada? Não no cinema rigoroso como o inverno que toma conta da cidade em que vivem os personagens.
O mergulho no vazio do casal é tamanho que ao público não resta muito a não ser também observar com interessa quase de quem faz uma autópsia cada ferida deixada por esta história. Maryana, que vive a mãe Zhenya, observa bem que a tragédia não se abate sobre eles como um golpe do destino, mas vai se desenhando em cada cena desde a primeira, desde a árvore. E é esta a maior qualidade de Loveless, a forma como o cineasta constroi e monta seu quadro sobre o vazio humano da Rússia (e do mundo) atual.
No entanto, ao lado da exasperação e do abismo em que mergulham os personagens, um quê de humanidade vem junto. “Você diz que a criança não é amada. O fato dela dizer o que diz não significa que a mãe não ama a criança. A gente pode dizer coisas que não sente necessariamente. Sentimentos são muito complexos”, comentou a atriz, que faz sua estreia em Cannes, durante a entrevista coletiva da manhã de quinta.
Procede. Os sentimentos que pareciam tão sedimentados em Boris e Zhenya ganham camadas ao longo do filme, ainda que seus rostos não escancarem, na maior parte do tempo, o que cada um de fato sente para além das trocas de ofensas.
É sem dúvida um filme duro, cortante e bem construído. Afirmar que é candidato a Palma é um tanto exagerado, porém. Loveless representa bem o cinema russo atual. A propósito, o longa foi totalmente feito com verba de coprodução internacional, pois o ministério da cultura russo havia odiado o ‘retrato’ que Zvyagintsev fez da Rússia em Leviatã). “A gente queria ser o mais livre e independente possível depois deste episódio de Leviata, em que o ministério declarou que não aprovou o filme. E há vários cineastas jovens produzindo novos filmes independentemente. Que continue assim e que sejam bons filmes”, declarou o produtor Rodnyansky.
Se de depender de Loveless, o cineasta vai continuar cada vez mais independente.
Carta Capital
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