15/05/2017 por Tiago de Toledo Rodrigues
Inquestionavelmente, os graus de insegurança, violência e impunidade, no Brasil, são elevados. Também nos parece indiscutível que os episódios de desrespeito aos direitos humanos fundamentais envolvendo entidades de atendimento de adolescentes, inadmissíveis em uma sociedade que se ambiciona civilizada, são frequentes.
É igualmente certo que os mecanismos de prevenção e punição da violência, de preservação da paz, e de garantia do respeito aos direitos dos menores de dezoito anos, tal como empregados até o momento, foram incapazes de propiciar condições de harmonia e segurança que afiancem uma saudável vida coletiva, e um processo socioeducativo qualificado e competente.
Contanto os diagnósticos sejam indubitáveis, a redução da maioridade penal ou qualquer alteração normativa pontual ou assistemática, não solucionará ou amenizará os graves problemas existentes, e tampouco produzirá os efeitos necessários. Apenas uma mudança nas diversas leis que abordam, imediata ou mediatamente, o sistema socioeducativo, com a readequação do regulamento jurídico respectivo, fornecerá as condições necessárias para alcançar os resultados imprescindíveis, com o fortalecimento do princípio da proteção integral.
O advento da Lei nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecer a doutrina da proteção integral, operou verdadeira revolução na ordem jurídica nacional, reconhecendo que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos fundamentais a serem assegurados com absoluta prioridade.
Parcela deste avanço consistiu na instituição de um sistema de responsabilização diferenciado para os adolescentes que incorrem na prática de atos infracionais, sujeitando-os às medidas socioeducativas e protetivas.
E passados mais de 25 anos da sua publicação, contanto o Estatuto seja constantemente desrespeitado, é possível auferir, com a necessária segurança, os efeitos daquilo implementado pelos órgãos e Instituições envolvidos.
Neste período, inquestionavelmente houve um recrudescimento da violência, sobretudo nos grandes centros urbanos onde se constata um crescimento exponencial das apreensões por atos infracionais, cada vez mais graves. Dados da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente e do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) registram um aumento de mais de 580%[1], entre os anos de 1996 e 2014, na população de adolescentes em regime de privação de liberdade – medidas que pressupõe a prática das mais graves infrações.
Foi este o panorama que fomentou a apresentação de diversos anteprojetos de lei que pretendem alterar a legislação atual. Em sua grande maioria, as iniciativas, de cunho majoritariamente repressivo, esperam atingir àqueles que incorrem em atos graves, e argumentam, para tanto, a necessidade de assegurar uma resposta socioeducativa adequada à seriedade daquilo praticado, mas não contemplam outros aspectos do sistema de proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, cuja adaptação é imprescindível para a eficiência do conjunto normativo e alcance dos resultados necessários.
Sabidamente, muitos dos atos infracionais são fruto da cooptação feita por imputáveis, que aliciam menores, induzindo-os, instigando-os e auxiliando-os a infracionar. Não é raro que estes recrutamentos iniciem adolescentes no ambiente infracional que, posteriormente, terão extrema dificuldade de exonerar.
Ao mesmo tempo, é possível constatar que os regramentos estabelecidos no ECA e no SINASE são freqüentemente desrespeitados ou mal interpretados, o que certamente influencia o aumento do número de atos praticados. Infortunadamente, o cumprimento integral dos dispositivos legais é extraordinário, sobretudo nas entidades de atendimento, caracterizadas por freqüente superlotação, notícias de agressões e tumultos, dentre outras deficiências graves. Não por outro motivo, os índices nacionais de reincidência são elevados e atingiram 43,3% em 2012[2].
Também é forçoso reconhecer que atualmente, em muitos casos, as medidas socioeducativas têm um curto prazo de duração – fruto da equivocada interpretação da lei, sua má aplicação ou influência da superlotação – e, nestas circunstâncias, não cumpre a finalidade a que se destina – reinserir o adolescente no convívio familiar e comunitário de maneira saudável. Tais distorções não foram totalmente solucionadas com a edição da Lei nº 12.594/2012, que instituiu o SINASE e disciplina a execução das respectivas medidas.
A legislação vigente, a despeito da vanguardia e evolução, pode ser reexaminada, sobretudo naquilo atinente à proteção da cooptação feita por maiores imputáveis; ao cumprimento do sistema vigente pelas entidades de atendimento; e à responsabilização de autores de atos graves. Com isso, pode-se impedir o aliciamento de adolescentes, assegurar o respeito às regras correntes (com responsabilização dos dirigentes de entidades), e ampliar as condições de reeducação, por período suficiente para o planejamento e execução de um trabalho socioeducativo qualificado e eficaz.
As mudanças necessárias, e que efetivamente robustecerão a proteção integral, exigem alterações em diversas normas jurídicas que atingem, direta ou indiretamente, o sistema socioeducativo e a prática de atos infracionais. Qualquer providência pontual, isolada ou assistemática não será capaz de emendar os problemas existentes.
A simples ampliação do prazo máximo de internação, contemplada em muitas das propostas, não solucionará as dificuldades identificadas, tampouco estenderá o tempo que os adolescentes permanecem em reeducação. Conforme estudo do Ministério Público do Estado de São Paulo, 87,8% dos adolescentes da Capital permanecem internados menos de um ano[3]. Sem a adequação de outros dispositivos, não será possível assegurar a proporcionalidade entre a gravidade do fato e a medida socioeducativa imposta, que continuará perdurando pouco tempo.
Da mesma maneira, a mudança isolada do regramento de responsabilização de jovens e adolescentes, sem o recrudescimento da reprimenda daqueles que os aliciam ou das entidades de atendimento que descumprem as regras vigentes, não produzirá efeitos substanciais imprescindíveis.
As circunstâncias exigem austeros investimentos de três grandes ordens: a. A proteção contra a cooptação feita por imputáveis e prevenção do aliciamento: a partir do recrudescimento da reprimenda aplicada àqueles que o fizerem; b. Fomentar o respeito ao sistema vigente, repetidamente descumprido pelas entidades de atendimento, com responsabilização dos dirigentes: a partir da ampliação das obrigações respectivas e do rol de infrações administrativas; c. Implementar a responsabilização dos autores de atos infracionais graves: para aprimorar as condições de reeducação dos adolescentes e jovens, com tempo de ressocialização suficiente para o planejamento e execução de um trabalho socioeducativo qualificado e eficaz.
Infortunadamente, daqueles atualmente em curso no Congresso Nacional, apenas o projeto de lei nº 3.771/2015[4](Câmara dos Deputados), que cria o Sistema de Proteção às Crianças e Adolescentes em Conflito com a Lei, contempla estas alterações.
[1] Consoante sistematização do número de adolescentes em privação de liberdade, elaborada pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente em 2006 (http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/SinaseLevantamento2009.pdf), no ano de 1996 o Brasil registrava 4.245 adolescentes internados ou em semiliberdade. De acordo com a nota técnica do IPEA no 5, de junho de 2015, no ano de 2013 existia um total de 23,1 mil adolescentes provados de liberdade (http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25621&Itemid=9). A Secretaria nacional de Direitos Humanos, em levantamento de 2014, indica que 24.628 adolescentes estavam em regime de internação ou semiliberdade naquele ano (http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/levantamento-sinase-2014) - sítios consultados em março de 2017.
[2] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62380-modelo-inovador-garante-menor-indice-de-reincidencia-criminal-de-jovens-em-pernambuco - consultado em março de 2017.
[3] http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2567109.PDF – consultado em março de 2017.
[4] Elaborado em colaboração com o MPD.
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