Depois da polêmica iniciada com a declaração de Pedro Almodóvar, presidente do júri do Festival de Cannes este ano, que comentou que, pelo menos pessoalmente, prefere filmes na tela grande e que não se vê dando uma Palma de Ouro a um filme que não se destina a ser visto nos cinemas (um “paradoxo”), foi a vez do primeiro destes filmes (os para a tela pequena) serem exibidos na mostra competitiva do festival.
Okja, produção da Netflix que está em competição no evento, ao lado de The Meyerowitz Stories, teve sessão na manha de sexta para a imprensa (a gala ocorre na noite do mesmo dia) e agradou a crítica. Pontuada por vaias a todo momento em que a logomarca da Netflix apareceu nos créditos iniciais e problemas técnicos de adequação do filme ao formato da tela, o que forçou a equipe do festival a parar o filme, fazer os ajustes e recomeçar a exibição, a sessão terminou bem e sob aplausos.
Em conversa com os jornalistas após a sessão, era óbvio que as questões sobre o problema na projeção e sobre Almodóvar viriam. À primeira, o diretor sul-coreano Bong Joon Ho (de Memórias de um Assassino e Mother – A Busca pela Verdade) respondeu apenas que problemas técnicos acontecem e que não acha que se tratou de alguma sabotagem. “Na verdade fico feliz que as pessoas viram o começo duas vezes, pois tem muita informação.” Já a segunda, ele rebateu a polêmica à altura das críticas: “Sou um superfã do Almodóvar. Ele pode dizer o que quiser. Estou feliz. Apenas feliz de ver este filme aqui em Cannes hoje à noite.”
A inglesa Tilda Swinton, que faz o papel de uma executiva sem escrúpulos no longa, também pontuou: “É importante que o presidente do júri faça suas declarações. Faz parte do jogo. E é verdade que temos uma oportunidade incrível e isso é parte da graça de mostrar um filme aqui em Cannes, para gente do mundo. Mas se você quer saber o que eu realmente acho, o importante é que tem espaço para todos.”
O filme conta a saga da garota Mija (Na Seo Hyun) que cresce em companhia da criatura Okja, fruto de uma experiência científica bancada pela corporação Mirando (da qual Lucy, vivida por Tilda Swinton, é herdeira) para prover ao mundo um animal imenso, uma forma de porco gigante que vai servir de alimento para os 7 bilhões de seres humanos e mais de 800 milhões que passam fome no planeta. 26 animais são distribuídos a fazendeiros de todo o mundo e, em dez anos, o ‘melhor’ Super Porco vai ser escolhido pelo cientista e apresentador de TV Dr. Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal).
Uma década depois Okja é eleito o melhor e seu destino é virar salsicha em Nova York, isso depois de uma grande ação de marketing para promover mais ainda as inovações da Mirando. Lucy, Dr. Wilcox e cia só não contavam que o animal se tornaria o melhor amigo da pequena Mija e que ela, com a ajuda de um grupo de ativismo, o Animal Liberation Front, que sequestra Okja e consegue imagens dos maus tratos e experimentos cruéis que a empresa faz em seus com os animais, que na verdade senão geneticamente “construídos” em laboratórios.
Para os que adoram um bom churrasco, Okja tem o mérito de levantar questões sobre a forma como a sociedade contemporânea trata animais como apenas comida e propriedade. Para os já adeptos do consumo mais responsável de carne e para os vegetarianos, o longa é um bom aliado. Mas engana-se quem pensa que o filme de Joon Ho seja um libelo contra os carnívoros. Apesar do longa ter momentos sombrios e dramáticos, é também divertido e não tira conclusões definitivas sobre o consumo de carne.
“A gente vive em uma era capitalista, que nos deixa feliz, mas o lado escuro é que há muito sofrimento. É difícil para a gente lidar com isso, mas precisamos encarar, ainda que seja nesta história que é a de uma garotinha fazendo, de uma forma ainda que dura, mas cheia de aventura, a passagem para a vida adulta”, comentou o diretor. Já An Seo, a Mija, comentou: “Antes do filme eu adorava comer carne, especialmente carne de porco. Depois do filme, eu entendi o que os animais passam, sobre o sofrimento. Não vou comer muita carne como antes.”
Gyllenhaal ressaltou o trabalho de An Seo e a relação entre o feminino e a natureza. “Eu tenho relações pessoais com os animais. Para mim, tem a ver com a nossa relação com a natureza. Queria falar como a natureza é simbiótica com as mulheres. A jornada é vivida por uma garota. As duas grandes ideias que me desafiaram nos últimos anos foram mulheres e natureza”, analisou o ator. “E este é um tema muito interessante para explorar. A relação entre Mija e o animal é muito inspiradora. Quando a gente está filmando não vê as tantas camadas até ver o fim. Então, a gente vendo o filme pronto, vê todas as camadas do filme. Ela fez um trabalho incrível.”
Novamente, a Netflix
Joon Ho foi novamente questionado sobre a questão do on demand e ouviu afirmações de que muitos espectadores não tem a chance de ver um filme no cinema, por conta da distribuição em muitos países. Tilda então respondeu e provocou os que vêem o on demand como uma ameaça grande ao cinema. “Muitos filmes que passam em Cannes não são vistos pelo grande público nos cinemas também. São lindos e exóticos filmes que as pessoas nunca verão no cinema. É tudo um processo evolutivo e a Netflix deu a Joon a possibilidade de filmar esta visão completamente livre da realidade.”
A propósito, Joon Ho também comentou que teve total liberdade de criação e que a Netflix o deixou confortável para contar sua história da melhor forma. Com exceção da escolha pelo formato 4K digital (inicialmente ele queria rodar em película), a empresa não interferiu nas escolhas do cineasta. “Amei trabalhar com a Netflix. Eles me deram muito apoio. O orçamento foi muito bom e eu tive muita liberdade, o que é raro. Eles nunca interferiram, do início ao fim. Para ser franco, eles me deram total liberdade. Não me senti pressionado em nenhum momento”, declarou o diretor.
Em uma análise rápida, Okja não deve levar a Palma de Ouro, mas não por não ter sido “pensado” para a tela grande. É um filme despretensioso, bem realizado, que entretém e toca os dispostos a ver uma história que transita entre sequências mais poéticas e outras mais ágeis, além de outras que questionam o mundo contemporâneo. Seja na tela grande ou na TV, vai seduzir as grandes plateias.
“Timing é muito importante neste filme. Acho que não há melhor hora para este longa ser lançado, especialmente neste momento da história. Não falo só de tema, mas também sobre o que dizer. Por isso o timing é perfeito. O importante é quantas pessoas o filme pode chegar”, conclui Gyllenhaal, que não por acaso faz um veterinário dividido, mas não muito, entre a fama e a engrenagem capitalista e a paixão pelos animais.
Carta Capital
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