por Djamila Ribeiro — publicado 13/05/2017
Homenageada pela Ocupação no Itaú Cultural, vencedora do Jabuti fala sobre a resistências das escritoras negras e da importância da quebra do silêncio
Richner Allan/Divulgação
'O imaginário brasileiro, pelo racismo, não concebe reconhecer que as mulheres negras são intelectuais'
Conceição Evaristo, escritora mineira, vencedora do Jabuti em 2004 com o livro Olhos d’água está sendo homenageada com a “Ocupação Conceição Evaristo”, no Itaú Cultural.
A mostra reúne textos, áudios, vídeos e fotos que contam a trajetória da escritora. Os objetos permanecerão no espaço até o dia 18 de junho. Na entrevista, Conceição fala sobre a dificuldade encontrada pelas escritoras negras para publicar suas obras, a resistência e a importância da quebra do silêncio.
CartaCapital: Como você descobriu que queria ser escritora?
Conceição Evaristo: Na escola. Na quarta série primária eu ganhei um prêmio de literatura com uma redação cujo tema era “por que eu me orgulho de ser brasileira?”. Eu sempre escrevi, falava sobre minha festa de aniversário, a fazenda onde passei as minhas férias. E eu fico pensando que ficcionalizar aquela época me permitiu sonhar. E, entre escrever e publicar, é aí que marca o tempo, a diferença. Eu só publiquei a primeira vez 1990, nos “Cadernos Negros”, organizado pela Quilombhoje [coletivo cultural e editora]. Meu livro ficou guardado por 20 anos e minha publicação individual foi só em 2003.
CartaCapital: Como você descobriu que queria ser escritora?
Conceição Evaristo: Na escola. Na quarta série primária eu ganhei um prêmio de literatura com uma redação cujo tema era “por que eu me orgulho de ser brasileira?”. Eu sempre escrevi, falava sobre minha festa de aniversário, a fazenda onde passei as minhas férias. E eu fico pensando que ficcionalizar aquela época me permitiu sonhar. E, entre escrever e publicar, é aí que marca o tempo, a diferença. Eu só publiquei a primeira vez 1990, nos “Cadernos Negros”, organizado pela Quilombhoje [coletivo cultural e editora]. Meu livro ficou guardado por 20 anos e minha publicação individual foi só em 2003.
CC: A que você atribui essa demora em publicar?
CE: Tudo para as mulheres negras chega de uma forma mais tardia, no sentido de alcançar tudo o que nos é de direito. É difícil para nós chegar nesses lugares. E eu fiquei pensando esses dias, quando foi que Clementina de Jesus aparece? Com mais de 60 anos. E a Jovelina Pérola Negra? A própria Ivone de Lara, quando ela vai ter mais visibilidade na mídia? E olha que estamos falando de produtos culturais que, entre aspas, "são mais democráticos". E a literatura, que é uma área mais do homem branco, apesar do primeiro romance ser de Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra, as mulheres negras vão chegar muito mais tarde.
Essa longa espera tem muito a ver com esse imaginário que se faz da mulher negra, que a mulher negra samba muito bem, dança, canta, cozinha, faz o sexo gostoso, cuida do corpo do outro, da casa da madame, dos filhos da madame. Mas reconhecer que as mulheres negras são intelectuais em vários campos do pensamento, produzem artes em várias modalidades, o imaginário brasileiro pelo racismo não concebe. Para uma mulher negra ser escritora, é preciso fazer muito carnaval primeiro.
CC: Como foi pra você esse processo de publicar? Como lidou com isso?
CE: Eu tenho dito, Djamila, que as feministas brancas usam uma máxima quando elas falam que escrever é um ato político. Para nós mulheres negras, escrever e publicar é um ato político. Por causa da minha primeira publicação, Ponciá Vivencio, fiquei um ano no vermelho para pagar a editora Mazza, em 2003. Eu paguei a primeira e segunda edição e, anos depois, esse livro foi para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir daí a editora assumiu sozinha. Becos da Memória, outro livro meu, a editora assumiu sozinha. Com outros livros, eu dividi os custos. Então esse processo de publicação infelizmente ainda hoje é necessário. Eu tenho dito para as mulheres negras que a gente precisa encontrar formas coletivas de publicar. Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar.
CC: Não devemos desistir?
CE: Precisamos mostrar as nossas narrativas, temos que disputar. E eu preciso falar que os meus primeiros leitores foram pessoas do movimento social negro. Cada leitor e cada leitora levava pra sala de aula, pra academia. Então hoje, se eu chego nesse espaço da Ocupação [Itaú], é um espaço que foi construído a partir da leitura dos meus pares. Eu cheguei onde cheguei hoje por conta desse nosso trabalho de formiguinha que a gente sabe fazer muito bem.
Aquela imagem de escrava Anastácia (aponta pra ela), eu tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara. Porque todo nosso processo pra eu chegar aqui, foi preciso colocar o bloco na rua e esse bloco a gente não põe sozinha. Ninguém estuda autoria negra sem falar do Quilombhoje.
CC: Como foi pra você receber o prêmio Jabuti por “Olhos d’ água?
CE: Foi um momento muito feliz, mas ao mesmo tempo foi um prêmio da solidão. Eu desejei muito reconhecer ali os meus pares. E você vê que a literatura ainda é um espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas, livrarias, prêmios.
Nós podemos contar nos dedos os números de escritores negros que receberam o prêmio Jabuti. Um crítico literário pode dar visibilidade ao seu texto ao mesmo tempo que pode acabar com você como fizeram muitas vezes com a Carolina Maria de Jesus e continua se repetindo. O sistema literário está nas mãos das pessoas brancas. Por isso a importância das editoras que dão espaço para a autoria negra.
CE: Tudo para as mulheres negras chega de uma forma mais tardia, no sentido de alcançar tudo o que nos é de direito. É difícil para nós chegar nesses lugares. E eu fiquei pensando esses dias, quando foi que Clementina de Jesus aparece? Com mais de 60 anos. E a Jovelina Pérola Negra? A própria Ivone de Lara, quando ela vai ter mais visibilidade na mídia? E olha que estamos falando de produtos culturais que, entre aspas, "são mais democráticos". E a literatura, que é uma área mais do homem branco, apesar do primeiro romance ser de Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra, as mulheres negras vão chegar muito mais tarde.
Essa longa espera tem muito a ver com esse imaginário que se faz da mulher negra, que a mulher negra samba muito bem, dança, canta, cozinha, faz o sexo gostoso, cuida do corpo do outro, da casa da madame, dos filhos da madame. Mas reconhecer que as mulheres negras são intelectuais em vários campos do pensamento, produzem artes em várias modalidades, o imaginário brasileiro pelo racismo não concebe. Para uma mulher negra ser escritora, é preciso fazer muito carnaval primeiro.
CC: Como foi pra você esse processo de publicar? Como lidou com isso?
CE: Eu tenho dito, Djamila, que as feministas brancas usam uma máxima quando elas falam que escrever é um ato político. Para nós mulheres negras, escrever e publicar é um ato político. Por causa da minha primeira publicação, Ponciá Vivencio, fiquei um ano no vermelho para pagar a editora Mazza, em 2003. Eu paguei a primeira e segunda edição e, anos depois, esse livro foi para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir daí a editora assumiu sozinha. Becos da Memória, outro livro meu, a editora assumiu sozinha. Com outros livros, eu dividi os custos. Então esse processo de publicação infelizmente ainda hoje é necessário. Eu tenho dito para as mulheres negras que a gente precisa encontrar formas coletivas de publicar. Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar.
CC: Não devemos desistir?
CE: Precisamos mostrar as nossas narrativas, temos que disputar. E eu preciso falar que os meus primeiros leitores foram pessoas do movimento social negro. Cada leitor e cada leitora levava pra sala de aula, pra academia. Então hoje, se eu chego nesse espaço da Ocupação [Itaú], é um espaço que foi construído a partir da leitura dos meus pares. Eu cheguei onde cheguei hoje por conta desse nosso trabalho de formiguinha que a gente sabe fazer muito bem.
Aquela imagem de escrava Anastácia (aponta pra ela), eu tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara. Porque todo nosso processo pra eu chegar aqui, foi preciso colocar o bloco na rua e esse bloco a gente não põe sozinha. Ninguém estuda autoria negra sem falar do Quilombhoje.
CC: Como foi pra você receber o prêmio Jabuti por “Olhos d’ água?
CE: Foi um momento muito feliz, mas ao mesmo tempo foi um prêmio da solidão. Eu desejei muito reconhecer ali os meus pares. E você vê que a literatura ainda é um espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas, livrarias, prêmios.
Nós podemos contar nos dedos os números de escritores negros que receberam o prêmio Jabuti. Um crítico literário pode dar visibilidade ao seu texto ao mesmo tempo que pode acabar com você como fizeram muitas vezes com a Carolina Maria de Jesus e continua se repetindo. O sistema literário está nas mãos das pessoas brancas. Por isso a importância das editoras que dão espaço para a autoria negra.
CC: Quais são suas expectativas para a Flip desse ano?
CE: Estou animada, fui convidada para essa edição. Não só eu, tem outros escritores negros e de países africanos. E a nossa presença na Flip se dá muito por conta do texto de Giovana Xavier (professora da UFRJ) o “Arraiá da Branquidade”. Esse trabalho nosso de enfrentamento tem de ser coletivo. Porque se eu não tenho esse texto da Giovana amparando minha voz, o resultado poderia ter sido menor. Mas acho importante a gente estar lá também como leitores e leitoras que somos.
CC: Que dicas você daria para as mulheres mais jovens que sonham em ser escritoras?
CE: A primeira dica que dou é dizer que a literatura é a arte da palavra. O bom musicista treina por horas, escuta música. Eu acredito inclusive naquele sujeito que é autodidata, que estuda muito também. Eu acredito que a gente precisa ter esse cuidado de que estamos produzindo arte. Você está lidando com a palavra e se a gente quer se colocar como alguém que está produzindo literatura, precisamos ter consciência daquilo que estamos produzindo. Não pode divagar: o primeiro exercício é escrever, depois a gente vê como publica. Mas vamos escrever primeiro e não cair na ilusão de que a literatura vai nos acolher logo. É um exercício de escrita e de militância.
CC: Tem uma frase sua que diz “a nossa escrevivência não pode ser lida como 'canções para ninar os da casa grande', mas sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”. Poderia explicar?
CE: O nosso enfrentamento é necessário, mas é preciso sabedoria. Às vezes a gente coloca a cara para bater e o outro só quer te desconcertar. Mas é a idade que vai dando isso pra gente. Que te permite avaliar o inimigo, deixar o inimigo se distrair, deixar o inimigo esbravejar e aí a você chega. Agora, essa história de amor, eu acho muito complicado porque me lembra algo cristão. Justamente por sermos todos irmãos é que eu quero tudo o que você pode ter. O irmão pressupõe partilha, então cadê o meu? Então é preciso enfrentar com cuidado, senão você se machuca e o “irmão” ainda leva tudo o que é seu.
CC:Como está sendo pra você ter a Ocupação Conceição Evaristo?
CE: Olha, a ficha ainda está caindo, mas é muito bom perceber que o seu texto cai na emoção do outro, mexe com o outro. E é muito meus textos fazerem sentido na vida das pessoas. Mas mais do que isso, eu espero que essa Ocupação ajude a mudar o imaginário das pessoas de colocar as mulheres negras somente em lugares subalternos e submissos. É pensar que as mulheres negras estão produzindo na área da literatura, filosofia, psicologia, medicina. É pensar que todas competências que uma pessoa branca pode ter, as mulheres negras têm. Que essa ocupação sirva para despertar sobre o que outras mulheres negras estão fazendo.
Carta Capital
CE: Estou animada, fui convidada para essa edição. Não só eu, tem outros escritores negros e de países africanos. E a nossa presença na Flip se dá muito por conta do texto de Giovana Xavier (professora da UFRJ) o “Arraiá da Branquidade”. Esse trabalho nosso de enfrentamento tem de ser coletivo. Porque se eu não tenho esse texto da Giovana amparando minha voz, o resultado poderia ter sido menor. Mas acho importante a gente estar lá também como leitores e leitoras que somos.
CC: Que dicas você daria para as mulheres mais jovens que sonham em ser escritoras?
CE: A primeira dica que dou é dizer que a literatura é a arte da palavra. O bom musicista treina por horas, escuta música. Eu acredito inclusive naquele sujeito que é autodidata, que estuda muito também. Eu acredito que a gente precisa ter esse cuidado de que estamos produzindo arte. Você está lidando com a palavra e se a gente quer se colocar como alguém que está produzindo literatura, precisamos ter consciência daquilo que estamos produzindo. Não pode divagar: o primeiro exercício é escrever, depois a gente vê como publica. Mas vamos escrever primeiro e não cair na ilusão de que a literatura vai nos acolher logo. É um exercício de escrita e de militância.
CC: Tem uma frase sua que diz “a nossa escrevivência não pode ser lida como 'canções para ninar os da casa grande', mas sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”. Poderia explicar?
CE: O nosso enfrentamento é necessário, mas é preciso sabedoria. Às vezes a gente coloca a cara para bater e o outro só quer te desconcertar. Mas é a idade que vai dando isso pra gente. Que te permite avaliar o inimigo, deixar o inimigo se distrair, deixar o inimigo esbravejar e aí a você chega. Agora, essa história de amor, eu acho muito complicado porque me lembra algo cristão. Justamente por sermos todos irmãos é que eu quero tudo o que você pode ter. O irmão pressupõe partilha, então cadê o meu? Então é preciso enfrentar com cuidado, senão você se machuca e o “irmão” ainda leva tudo o que é seu.
CC:Como está sendo pra você ter a Ocupação Conceição Evaristo?
CE: Olha, a ficha ainda está caindo, mas é muito bom perceber que o seu texto cai na emoção do outro, mexe com o outro. E é muito meus textos fazerem sentido na vida das pessoas. Mas mais do que isso, eu espero que essa Ocupação ajude a mudar o imaginário das pessoas de colocar as mulheres negras somente em lugares subalternos e submissos. É pensar que as mulheres negras estão produzindo na área da literatura, filosofia, psicologia, medicina. É pensar que todas competências que uma pessoa branca pode ter, as mulheres negras têm. Que essa ocupação sirva para despertar sobre o que outras mulheres negras estão fazendo.
Carta Capital
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