Era chocante o contraste entre o físico de Agnes Heller, a filósofa húngara morta nesta sexta-feira aos 90 anos, e a força do seu pensamento e da sua biografia. Miúda e só aparentemente frágil, sobreviveu ao Holocausto em Budapeste — metade do milhão de judeus assassinados em Auschwitz era húngara — e à repressão stalinista posterior à Segunda Guerra Mundial, que a obrigou a se exilar durante décadas. Nos Estados Unidos e na Austrália, porém, ela elaborou um pensamento baseado num profundo conhecimento da história, mas também da vida cotidiana, situado entre a filosofia e a sociologia, que conseguiu atravessar fronteiras para torná-la uma das pensadoras mais influentes da segunda metade do século XX.
Obras como O Cotidiano e a História (Paz e Terra), Historia y futuro ¿sobrevivirá la modernidad?, El hombre del renacimiento, Crítica de la ilustración e Para cambiar la vida são alguns dos títulos editados na Espanha, onde seu pensamento encontrou uma ampla difusão. Foi colaboradora habitual do EL PAÍS desde os anos oitenta e publicou seu último artigo neste jornal em abril passado, sobre o tema que mais a preocupava no momento: a guinada autoritária do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e o perigo que isso representava para a democracia na Europa. Como sobrevivente dos totalitarismos nazista e soviético, ela sabia perfeitamente quais podiam ser as consequências de ficar de braços cruzados ante um ataque contra as liberdades.
Obras como O Cotidiano e a História (Paz e Terra), Historia y futuro ¿sobrevivirá la modernidad?, El hombre del renacimiento, Crítica de la ilustración e Para cambiar la vida são alguns dos títulos editados na Espanha, onde seu pensamento encontrou uma ampla difusão. Foi colaboradora habitual do EL PAÍS desde os anos oitenta e publicou seu último artigo neste jornal em abril passado, sobre o tema que mais a preocupava no momento: a guinada autoritária do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e o perigo que isso representava para a democracia na Europa. Como sobrevivente dos totalitarismos nazista e soviético, ela sabia perfeitamente quais podiam ser as consequências de ficar de braços cruzados ante um ataque contra as liberdades.
Heller considerava que a história não se repetiria e pensava que estávamos muito longe dos anos trinta. Ao mesmo tempo, porém, estava convencida de que a democracia corria perigo em alguns países da Europa, lembrando que o Estado de direito não se baseia apenas no voto. Também se preocupava com o ataque contra a razão por parte do extremismo islâmico e a ameaça que o nacionalismo representa para a União Europeia. Foi uma importante pensadora feminista. “É a única revolução que não considero problemática e é a maior do nosso tempo, porque não é uma mobilização contra um período histórico, e sim contra todos os períodos. A única totalmente positiva, talvez junto com o desenvolvimento dos direitos humanos.”
Este jornal a entrevistou em Budapeste no verão de 2017. Vivia num luminoso e desarrumado apartamento com uma vista impressionante para o Danúbio, repleto de livros e revistas sobre temas de todo tipo, que mostravam que sua enorme curiosidade intelectual nunca se apagou. A Academia Húngara de Ciências anunciou sua morte na noite desta sexta-feira, sem especificar a causa. Segundo o site húngaro 444.hu, ela faleceu enquanto nadava no lado Balaton, onde muitos cidadãos da Europa comunista passavam as férias. Curiosamente, foi ali que começou a ruir a Cortina de Ferro quando milhares de cidadãos da Alemanha Oriental que estavam na Hungria tiveram permissão para abandonar o país rumo ao Ocidente.
Heller não tinha problema algum para responder a perguntas sobre todo tipo de assunto, nem para recordar o Holocausto. Narrava a forma como sobreviveu à Shoá, quando os nazistas, apoiados pelos fascistas húngaros do Partido da Cruz Flechada, organizaram a deportação dos judeus de Budapeste a Auschwitz e depois o seu assassinato em massa na própria cidade, quando, ante a iminência da chegada dos soviéticos, os trens deixaram de sair. “Como todas as pessoas que conseguiram sair vivas daquilo, foi por acidente. Meu pai foi assassinado em Auschwitz, minha mãe e eu estivemos a ponto de morrer, mas de alguma forma nos livramos. Os fascistas húngaros mataram muitos judeus junto ao Danúbio, mas pararam antes de chegar à nossa casa. Também dispararam contra mim, mas, como sou baixa, o tiro passou por cima da minha cabeça. Em outro momento, nos colocaram numa fila. Soube que não devíamos ficar ali porque nos matariam, e conseguimos fugir. Mas tudo isso não foi sorte, e sim instinto.”
Após a Segunda Guerra Mundial, Agnes estudou e depois ensinou filosofia na chamada Escola de Budapeste, encabeçada pelo filósofo marxista Georg Lukács. Depois da invasão soviética de 1956, que reprimiu uma tentativa de libertação do regime comunista húngaro, Heller se tornou dissidente e acabou se exilando, primeiro como professora em Melbourne (Austrália) e depois na New School for Social Research de Nova York. Até o fim de seus dias, deu palestras e seminários pelo mundo todo.
Como outros filósofos pegos no turbilhão do século XX, Agnes Heller refletiu sobre o Iluminismo e sobre como se poderia ter passado da esperança despertada pela razão — noção que devia a pensadores da modernidade como Spinoza e Kant — aos horrores do totalitarismo. Foi marxista no início, mas logo se desvinculou de qualquer marco teórico que cerceasse sua vontade de buscar respostas.
Heller perdeu a confiança na razão, porque sem ela não poderiam ter construído os campos nazistas e soviéticos nem organizar a deportação de milhões de pessoas. Mas nunca perdeu a confiança no ser humano. Questionada sobre suas crenças, ela respondeu naquela entrevista: “Tenho que acreditar em algo? Talvez possa responder à sua pergunta. Acredito numa coisa: as pessoas boas existem, sempre existiram e sempre existirão. E sei quem são as boas pessoas.”
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