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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


Welington e suas duas mães

Vítima de maus-tratos na infância, um jovem criado na Holanda por pais adotivos decidiu voltar ao Brasil em busca de um sonho: conhecer a família biológica


ISABEL CLEMENTE

REENCONTRO Welington com Vilma  da Silva Cruz, sua mãe biológica. “Eu não tinha como protegê-lo. O pai o ameaçava”  (Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
REENCONTRO
Welington com Vilma da Silva Cruz, sua mãe biológica.
“Eu não tinha como protegê-lo. O pai o ameaçava”
(Foto: Saul Schramm/ÉPOCA
)
Capítulo 1
De Campo Grande para Huizen, de Huizen para Campo Grande

Fazia 30 graus no dia 10 de julho de 1997, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O olhar azul de Paul Willems se alternava entre a cobertura do bolo que derretia em seu colo e a paisagem de casas simples com tijolos aparentes do lado de fora. O carro sacolejava pelas ruas quentes e sem asfalto, a caminho da Casa da Criança de Campo Grande, orfanato onde Paul, então com 42 anos, e a mulher dele, Iemke, de 36, seriam apresentados ao pequeno Welington, que só conheciam por fotos. Quando chegaram, o menino sorridente de 2 anos esticou os braços e balbuciou: “Mamãe, papai”. “É nosso? Já!?”, disse Iemke. Ela esquecia, subitamente, a burocracia que antecedera o encontro. Pegou Welington no colo e abraçou, pela primeira vez, um filho. Não falavam a mesma língua. Não tinham a mesma cor. As vidas de Paul, Iemke e Welington se entrelaçavam naquele instante.

Antes de deixar o abrigo, a família holandesa queria confraternizar com as demais crianças – e com os que haviam cuidado de Welington por um ano e meio. O bolo derretido estava lá para isso. Mas o menino chorou, como quem tinha pressa de ir embora. Era preciso começar logo a vida nova com os novos pais, como outras crianças tinham feito antes dele. “É apenas uma festa de despedida”, disse Iemke na ocasião, num português aprendido para consumo imediato, a fim de facilitar o primeiro contato com o filho. “Foi dilacerante o medo que ele tinha de não sair com a gente”, afirma, hoje, a mãe adotiva. Ela relembra o episódio como se recordasse um acontecimento do dia anterior. Antes de prosseguir com o relato, Iemke comprime o olhar, joga sombras no azul das pupilas e sorri com ternura. “Ele era tão pequeno, tão lindo. Só queria ser amado. Entramos no carro e, de repente, o sonho era real. Tínhamos um filho.” 
Paul e Iemke se conheceram em 1980 e se casaram em 1995, quando decidiram adotar uma criança. “Não queria que um tratamento para engravidar se tornasse uma obsessão na minha vida, com tanta criança precisando de um lar”, diz Iemke. O casal foi para a fila da adoção. Fez um curso, conforme era exigido pelas entidades holandesas. Por seis meses, recebeu informações sobre “coisas terríveis” que podem acontecer na relação com uma criança adotada, lembra Iemke e força uma expressão irônica de horror. A espera durou dois anos. “Quando se adota, não se escolhem sexo, idade, cor. A gente diz sim para uma criança.” Quatro semanas depois do primeiro abraço, Paul, Iemke e Welington deixaram o Brasil rumo à Holanda. Morariam numa casa nova em Huizen, cidade de 43 mil habitantes a 20 quilômetros de Amsterdã. O calor ajudou na adaptação. Também fazia 30 graus em Huizen. Na primeira noite, Welington não dormiu. “Ficou de olho em nós”, diz Paul. Para contornar a insegurança, botaram o menino para dormir com os dois. Com o passar do tempo, o filho ganhou a própria cama, mas continuou no mesmo quarto. “O maior medo dele era ficar só”, afirma Paul.


O medo que Welington tinha de ser abandonado é um sentimento comum em crianças que experimentaram algum tipo de rejeição. Às vésperas de completar 1 ano, Welington fora enviado por ordem judicial à Casa da Criança de Campo Grande, um abrigo para menores retirados da família de forma temporária ou definitiva. Ele apresentava marcas de fivelas e queimaduras no corpo, dedos sem unhas, mãos fechadas. “Welington era uma criança sem fala, mas muito brincalhona. Ele era tão cativante que pensei seriamente em adotá-lo”, diz Joelma Lúcia Damasceno Fachini, de 46 anos, 19 dedicados à Casa da Criança e a única personagem do passado de quem Welington nunca se esqueceu. Tudo o mais, incluindo os maus-tratos, se apagou. No abrigo, o menino, a despeito do sofrimento estampado na pele, dormia bem e sorria com facilidade. “Ninguém conseguia brigar com ele”, afirma Joelma, sorriso e olhar perdidos em algum lugar do passado. Chamavam a atenção apenas as mãos crispadas. “Até que um dia...”, diz Joelma, interrompida pela voz embargada, “ele abriu as mãos para mim. Sabe o que é você ver que uma criança voltou a confiar nas pessoas?”
UMA FAMÍLIA HOLANDESA Welington entre Paul e Iemke Willems, seus pais adotivos. Quando  contaram ao filho sobre a vida dele antes da adoção, o choque foi grande  (Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
UMA FAMÍLIA HOLANDESA
Welington entre Paul e Iemke Willems, seus pais adotivos.
Quando contaram ao filho sobre a vida dele antes da adoção, o choque foi grande 

(Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
Com pouco tempo na Holanda, Welington era outra criança. O menino, que nem português falava, aprendeu rapidamente o holandês. Dormia bem. Não tinha pesadelos. “Andava pela casa levando Welington sentado no meu pé”, diz Paul. Levanta a perna e pousa as mãos, como quem simula um garoto agarrado na canela. O casal deu a Welington de tudo: uma vida confortável, educação, lazer e, principalmente, atenção. Receberam, em troca, amor. Paul e Iemke nunca tiveram babá. Graças à legislação holandesa, puderam se revezar no trabalho, cada um cumprindo meia jornada, para que sempre um dos dois ficasse com o menino. Welington só foi para a escola aos 4 anos. A família é tão unida que, nas últimas férias, segundo Iemke, Welington reclamou, em tom de galhofa: “É muito pai e muita mãe 24 horas por dia”.
“Esse casal é incrível, tem muita força interior e é louco pelo Welington”, diz Bertha Haddad Lane, uma simpática paulista criada em Campo Grande que, à época da adoção, representava a Netherlands International Child Welfare Organisation (NICWO) em Mato Grosso do Sul e trabalhava com adoções. Bertha, tradutora juramentada do processo da adoção, foi quem escreveu o relatório enviado a Paul e Iemke sobre a criança que receberiam. “Escrevi que o casal que adotasse Welington ganharia uma joia, um tesouro precioso, algo assim. Paul e Iemke não esquecem isso. Nesse caso, os dois lados ganharam”, afirma Bertha. Ela mora na Holanda com as duas filhas. “De todos os casais com que tenho contato, esse sempre foi especial.”
***
Comecei a trocar e-mails com Paul antes de eles chegarem ao Brasil, no mês passado. Tivemos três longas conversas ao vivo, em Campo Grande, e mais trocas de mensagens depois. Paul e Iemke encarnam a imagem de um casal bem resolvido. Ela é formada em administração. Ele, em economia. Paul trabalha na prefeitura de Huizen. Iemke, numa ONG dedicada a crianças que sofreram abusos. Pelo menos uma vez por ano, saem de carro da Holanda com Welington e rodam dez horas até Serfaus, uma estação de esqui na Áustria, conhecida apenas pelos iniciados no turismo da neve europeia. É nesse resort escondido nos Alpes austríacos que a família Willems pratica um dos hobbies preferidos de Welington, o esqui.
Dizem, com naturalidade, que ele sempre teve um vínculo forte demais com o Brasil. “Vítima de racismo? Não. Os holandeses aceitam bem as diferenças de cor, mas há sempre algo em ser o diferente”, diz Iemke. Foi só no ano passado que Welington soube dos detalhes tristes de sua história. Paul e Iemke lhe entregaram uma tradução para o holandês de parte do processo de destituição da guarda familiar que explicava, afinal, por que os pais de origem não tiveram condições de criá-lo. O choque foi grande. Paul teve de resgatar Welington de um bar, onde fora beber com os amigos. Ofereceu ajuda. Terapia, talvez. Welington disse que resolveria sozinho. E deixaram o tempo passar. Paul e Iemke já davam partida, então, nas providências para atender a um pedido do filho que consideravam inevitável. Em janeiro deste ano, ele tomou uma decisão: queria conhecer os pais biológicos. A volta às origens gera ansiedade, medos, perguntas. Muitas crianças adotadas querem reencontrar os pais verdadeiros, porque buscam uma explicação para a rejeição, anterior à adoção. É quase um impulso. Na Holanda, Paul e Iemke foram aconselhados a só permitir esse retorno aos 18 anos.
Seguros do amor que sentem e recebem do filho, Paul e Iemke consideram indissolúvel o vínculo criado a partir da adoção. Muito educados, cultos e viajados, encaram sem drama a possibilidade de Welington, um dia, vir morar no Brasil. “Filhos de vários amigos nossos foram morar fora da Holanda. Um se casou com uma americana. Outro foi parar na Suécia. É cultural. A chance de seu filho ir morar em outro lugar é grande. Campo Grande é longe, mas Fortaleza está a dez horas de voo, como Nova York”, diz Paul, sob o olhar cúmplice de Iemke. Antes que eu elabore qualquer pergunta, ela se antecipa num comentário, já rindo de si mesma. “É muito comum, o que não quer dizer que eu vá gostar disso.”
No dia 10 de agosto de 2012, Paul, Iemke e Welington voltaram a Campo Grande. O clima, de novo, era quente, mas o carro não sacolejava mais. As ruas estavam asfaltadas. Os três fizeram o caminho de volta da Holanda para realizar o sonho de Welington: conhecer a mãe biológica.
Capítulo 2
Uma “detetive” e sua especialidade: encontrar mães 
Às vésperas de completar 80 anos, Cornelia Vriesman Keller mora entre Curitiba e Florianópolis. Mãe de dois homens, avó de três rapazes, ela trabalha, há mais de 20 anos, para a Wereldrinderen, entidade que intermediou a adoção de Welington. Hoje, a Wereldrinderen mantém o projeto Raízes, cujo objetivo é ajudar a resgatar a história de crianças adotadas por holandeses. De aparência frágil e personalidade forte, Cori – como é chamada – foi acionada no ano passado para desvendar a origem de Welington. Filha de holandeses e fluente na língua, ela já tinha na bagagem pelo menos meia dúzia de casos bem-sucedidos. Testemunhou encontros emocionantes. Sabia também do risco dessas missões delicadas. Certa vez, recebeu como resposta uma carta ríspida de uma mulher no Paraná que pretendia manter o filho do passado em segredo, a fim de poupar o atual casamento.
Com uma procuração de Welington em mãos e o número do processo de destituição de guarda, Cori tratou de aumentar sua rede de contatos em Campo Grande. Depois de inúmeros e-mails e telefonemas inúteis, encontrou um endereço dentro do processo. Pertencia à avó materna de Welington, em Ribas do Rio Pardo, a 90 quilômetros de Campo Grande. Ribas é um município de 21 mil habitantes muito pobre, onde fiscais do Ministério do Trabalho já libertaram dezenas de trabalhadores – inclusive crianças –, mantidos como escravos em carvoarias locais. Acompanhada de um filho, Cori pegou um avião de Curitiba para Campo Grande, alugou um carro e deu sorte. A avó de Welington já tinha morrido, mas, no casebre simples de tijolos aparentes, morava Nair, irmã de Vilma, a mãe biológica. A surpresa foi geral quando aquela senhora simpática de cabelos macios e brancos, e pequenos olhos azuis, bateu à porta dizendo que estava lá em nome de Welington. A missão de Cori estava chegando ao fim.
Vilma da Silva Cruz é uma mulher de 41 anos, pequena e magra. Nascida em Goiânia, estudou pouco e trabalhou muito quando criança. É a oitava de 14 filhos. Aos 10 anos, perdeu o pai. Para ajudar a mãe, trabalhou em colheita de manga, “matação de formigas” na lavoura e plantio de eucaliptos. Não sabe muito bem quando deixou Goiás rumo a Mato Grosso do Sul. Aos 16, era mãe de dois filhos, consequência de um relacionamento passageiro. Quando conheceu Manuel Severino Cruz, o pai de Welington, Vilma era uma adolescente com duas crianças em busca de um provedor. O discurso do mecânico, dez anos mais velho, se encaixou em seus sonhos. “Vou cuidar de vocês.” Segundo Vilma, não demorou muito para Manuel, um homem rude, revelar sua natureza violenta. No ápice das agressões, Vilma conta ter levado uma facada e 40 pontos na barriga. Foi durante esse conturbado período que Vilma e Manuel perderam definitivamente a guarda de Welington.
CENAS DE INFÂNCIA 1. Welington com 2 anos, no abrigo onde morou antes de ser adotado. 2. Um passeio no parque com sua família. 3. Em viagem para conhecer o Brasil com os pais,  em 2004. 4. Welington de férias, esquiando em Serfaus, nos Alpes austríacos. 5 (Foto: álbum de família)
CENAS DE INFÂNCIA
1. Welington com 2 anos, no abrigo
onde morou antes de ser adotado.
2. Um passeio no parque com sua família.
3. Em viagem para conhecer o Brasil
com os pais, em 2004.
4. Welington de férias, esquiando em Serfaus,
nos Alpes austríacos.
5. Com familiares holandeses 
(Foto: álbum de família)
Tirar a guarda da família é uma das medidas mais graves no Direito Civil. Isso ocorre quando se constatam negligência, abandono ou maus-tratos. “A gente só lembra os extremos, os casos muito felizes ou os muito infelizes. Esse menino, Welington, era um caso muito triste. Lembro-me bem dele. Parecia um bichinho acuado”, diz a desembargadora Maria Isabel de Matos Rocha. Como juíza, ela assinou a sentença de destituição do poder familiar sobre Welington, em 1996. Nascida em Moçambique, e com um leve sotaque português, Maria Isabel ficou 12 anos à frente da Vara de Proteção dos Direitos da Infância de Campo Grande. Tem a convicção de que muitas crianças estariam mortas se não fossem salvas pela Justiça. Maria Isabel diz que tanto a Justiça quanto o Ministério Público tentam convencer as famílias a abrir mão da guarda, mostrando que elas, por algum motivo, não estão em condições de cuidar da criança. “A tendência da família é se defender e negar tudo, os maus-tratos. Acaba sendo pior”, diz. Casos graves, em que sobram provas de maus-tratos, são os mais fáceis de resolver, afirma Maria Isabel. Era o caso de Welington. O pai foi acusado de maltratar o menino. A mãe, de negligência, por ser incapaz de protegê-lo. Segundo a Promotoria de Defesa dos Direitos da Criança, Manuel chegou a afundar Welington num tonel para fazê-lo ficar quieto.
Ao visitar, tempos depois da adoção, o menino na Holanda, a procuradora Ariadne Cantú – autora do pedido de perda de guarda à Justiça – surpreendeu-se ao constatar que Welington não tinha traumas comuns, como o medo de água. Também estava na expectativa quando soube da intenção da família em retornar para apresentá-lo às origens. Temia o desfecho desse encontro. Escritora com diversos livros infantis publicados, mãe de três filhos, Ariadne é uma gaúcha alta e elegante, radicada em Campo Grande há mais de 20 anos. “É pesada a carga de mudar o destino de uma criança com uma canetada”, diz Ariadne. “Mas eles vieram para fechar uma lacuna na vida do filho. Isso é de uma generosidade imensa.”
Capítulo 3

Um intruso de boné e roupas de pedreiro 
No dia 10 de agosto deste ano, Vilma estava sentada numa cadeira armada na calçada, na porta da casa do irmão, José Vitório, com quem mora de favor. Ansiosa, aguardava. As ruas largas e asfaltadas quase não têm movimento em Taquaral do Bosque, bairro periférico de Campo Grande que, ironicamente, poucas árvores tem. No vazio urbano de Taquaral, foi fácil suspeitar do táxi rodando devagar, como se estivesse buscando um endereço. Vilma e sua cunhada Sandra acenaram sem saber muito bem para quem. O motorista parou no meio da rua porque alguém, lá dentro, tinha pressa. Welington desceu e correu para abraçar a mulher que vinha a seu encontro, Vilma. Não falavam a mesma língua, mas suas histórias voltavam a se cruzar.

Welington é um rapaz esbelto e forte, de olhar terno e tímido. Tem dreads no cabelo, brinco na orelha e pulseiras de couro. Toca violão e bateria. Dança. Faz um estilo descolado, típico dos amigos nascidos no Suriname, ex-colônia holandesa. É simpático e atencioso como os pais. Huizen, onde mora, é a cidade das celebridades holandesas. Welington cresceu convivendo com artistas da televisão, do rádio e do cinema holandês. Descobriu ainda na infância ter dislexia, um problema que complica a leitura, mas que não o impediu de aprender também inglês. Mora numa casa confortável de dois pavimentos, numa das muitas ruas tranquilas e bem cuidadas da cidade. Pratica esqui com regularidade e chegou a ser o quinto no ranking holandês para sua faixa etária. Não gosta do frio. Welington prefere o calor do Brasil. “Sentir o clima daqui é como estar em casa novamente. Moro lá, mas me sinto brasileiro”, diz, em inglês. Quer falar português. Em poucos dias no Brasil, aprendeu uma palavra ou outra. Feijoada. Futebol. Mãe. Essa identidade verde e amarela foi preservada graças a Paul e Iemke, que o trouxeram em viagens ao Brasil e até lhe deram de presente uma bandeira nacional. “Admitir que ele é adotado é apenas uma forma de reconhecer que ele tem um passado, antes da gente”, diz Iemke.
PROTEÇÃO CONTRA OS MAUS-TRATOS Maria Isabel Rocha, juíza que assinou a destituição do poder familiar sobre Welington. “Casos graves, como o dele, são os mais fáceis de resolver” (Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
PROTEÇÃO CONTRA OS MAUS-TRATOS
Maria Isabel Rocha, juíza que assinou a destituição
do poder familiar sobre Welington.
“Casos graves, como o dele, são os mais fáceis de resolver”
(Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
Com um boné surrado e roupas sujas como quem vinha de uma obra, Manuel entrou sem ser convidado. Sorriu e tirou foto abraçado ao filho. Era o Dia dos Pais. E aproveitou para dizer que tinha sido vítima da Justiça, repetindo o discurso que a desembargadora Maria Isabel de Matos Rocha conhece bem. Welington não esperava, mas a festa não podia parar, e o homem inesperado, tal como chegou, se foi. “Por mim, ele nem tinha entrado”, disse Vilma depois. Quando Welington já estava na Holanda, Vilma e Manuel tiveram mais uma filha. Vilma só se divorciou há cerca de dois anos, depois de ter retirado 36 queixas contra ele. “Tive de ir com ela ao cartório, porque ela tinha medo até de encontrá-lo”, diz Sandra de Sousa Costa, de 40 anos, a cunhada.E o passado correu para conhecer Welington. No domingo depois do primeiro abraço de Vilma, um churrasco promovido por Paul e Iemke selou o encontro de Welington com sua família brasileira. Contou com a participação especial do taxista que rodava devagar antes do primeiro encontro. Depois da cena no meio da rua, o motorista fez questão de voltar e cuidar da carne. A festa aconteceu no quintal de terra da casa de tijolos aparentes onde Cori, a detetive de cabelos brancos, encontrou pela primeira vez a família biológica de Welington. Estavam lá os dois irmãos, a irmã com a filha recém-nascida, a mãe, os tios e primos. Ao todo, havia cerca de 20 pessoas no quintal. Welington, à vontade no ambiente mais simples que já frequentara, era o centro das atenções. A notícia de que o rapaz que falava holandês chegara se espalhou e atraiu para a cena Manuel, o pai biológico.
No churrasco regado a refrigerante e cerveja, Welington mostrava fotografias de sua vida na Holanda. “Neve é fria?”, queriam saber os mais curiosos. Welington conta o episódio rindo, durante nossa primeira conversa, saboreando uma caipirinha. Jovens podem beber na Holanda a partir dos 16 anos. Welington fez 18 no dia 21 de novembro. Estava radiante. “Estou feliz, muito feliz”, disse. Relembrava o churrasco em Ribas, logo interrompido pelo celular. Ele atende. “Hã? Quê? Si. Si. Sim.” Monossílabos depois, Welington sorri e passa o celular para Cori. “Vilma? Welington não está conseguindo te entender... É para o encontro de amanhã, marcado para as 9 horas aqui no hotel, está bem? Pegue um táxi.”

Quando Vilma chega, Welington a abraça e beija. Ficam de mãos dadas. Ela o acaricia como se fosse um menino, recém-saído do ventre. No banco de trás do carro, durante um passeio, atropelou o embaraço para falar aos estrangeiros sobre seus sentimentos. “Agora, vocês são minha família também”, disse Vilma. E por que Welington tinha essa vontade de conhecer a família brasileira? “Queria saber como eles vivem, se são felizes”, diz. “Neste ano me senti pronto para isso.” Vilma parece não acreditar ainda em seus próprios olhos. Vê o filho “bonito e criado” e diz, com simplicidade: “Deus fez a coisa certa. Eu não tinha como proteger ele não. Manuel ameaçava nós dois”.

Agora Welington tem planos. Primeiro, estudar. Pretende ser guarda-costas. Na Holanda, essa é uma carreira de nível técnico. Começará o curso no próximo ano. “Gosto de pessoas, por isso quero protegê-las”, diz sobre a escolha profissional. Quer trabalhar, juntar dinheiro e se estabelecer no Brasil, ou melhor, sair da Holanda, como fazem os jovens holandeses. “Não vamos perdê-lo. É uma questão de compartilhar”, diz Paul, enquanto vê o filho conversando com Vilma, ajudado por Cori, agora tradutora oficial do reencontro. “Recebemos esse carinho dele o tempo todo, todos estes anos. Vilma, não”, diz Iemke, ao assistir às muitas cenas de apego explícito do laço sanguíneo. Olho calada para Iemke e sussurro uma pergunta: “Você não sente ciúme?”. Iemke pensa um pouco e sorri com os olhos. “Simplesmente tinha de fazer isso por ele. Por um filho, a gente faz qualquer coisa, ainda que signifique...”, ela diz. Para antes de terminar a sentença, em busca da palavra correta. “Sacrifício?”, digo, ajudando. “Isso, isso mesmo”, ela afirma, olhando para o filho de longe. “Ele agora é uma pessoa completa.”
A despedida foi triste, como costumam ser as despedidas. Houve choro, abraços e promessas de reencontro. Welington voltará, não se sabe quando, e Vilma, um dia, conhecerá a casa do filho holandês. Até lá, ele promete aprender português, ainda que sejam apenas noções básicas para conversas telefônicas semanais com Vilma. Welington diz ter perdoado todos e tudo, inclusive o pai. “É um novo começo. O passado ficou para trás. E vou sentir muita saudade.”

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