“Il fallait que je vous le dise“: eu precisava contar para vocês. Esse é o título do romance ilustrado de Aude Mermilliod, grafista, escritora e autora de histórias em quadrinhos. Na obra, a francesa conta a consciente, mas também complexa decisão de interromper uma gravidez e fala do sofrimento pouco considerado e minimizado pela sociedade: o luto do aborto.
Em 2011, Aude Mermilliod tinha 24 anos, morava em Bruxelas, onde trabalhava como garçonete e dividia um apartamento com uma amiga. A jovem havia recém terminado um namoro de três anos, utilizava um DIU como contracepção, mas engravidou após uma relação sexual sem preservativo.
O drama pode parecer comum para qualquer mulher no auge da juventude, com todas as dúvidas e incertezas desta fase da vida. Mas, através da dinâmica dos quadrinhos, regado à espontaneidade da personagem principal, a autora traz à tona emoções e detalhes de um dilema que mais de 200 mil mulheres enfrentam por ano ao realizar um aborto na França; no Brasil, esse número ultrapassa 500 mil intervenções clandestinas por ano.
Na obra, Aude destaca o apoio dos pais e de amigos, entre elas, Vic, grávida de oito meses, e Christophe, o homem de quem engravidou. A jovem conta que, mesmo convicta da decisão de abortar, lidar com um imenso sofrimento foi inevitável, bem como gerenciar reações contraditórias e inconscientes para a proteção do feto, até antes da interrupção da gravidez. “Nada de bebida alcoólica, cigarro, e descanso”, escreve a quadrinista no livro.
Com a mesma sinceridade e transparência, Aude desenha a ida ao médico, a espera obrigatória imposta por lei de uma semana antes da realização do procedimento, a surpreendente agonia e desconhecida dor durante a concretização do aborto, “como se eu não suspeitasse que pudessem ir tão longe no meu ventre”. Ela também evoca a indiferença do ginecologista que repete, institivamente, “é normal sentir dor”, além do descarte dos restos fetais, realizado diante da paciente, em um vaso sanitário. “Preferia nunca ter ouvido aquela descarga”, desabafa a autora.
A quadrinista francesa também não esconde as dificuldades físicas e mentais após o aborto, como os sangramentos, a falta de libido e a permanente e imensurável tristeza. “Impossível definir essa dor. Ela não era avassaladora. Eu trabalhava, saía, ria. No entanto, ela continuava a estragar tudo”, descreve.
Na segunda parte da obra, a quadrinista também narra o encontro com o médico e escritor Martin Winkler, militante feminista e autor de livros emblemáticos sobre a saúde da mulher. Precursor e defensor da IVG (interrupção voluntária da gravidez), através dos desenhos de Aude, o especialista é retratado desde a época em que começou a estudar medicina, passando por sua militância durante o debate nos anos 1970 - antes da legalização do aborto na França -, que resultou no desenvolvimento de métodos vanguardistas para tornar o procedimento menos doloroso para as mulheres. O tema desenvolveu no médico uma espécie de obstinação pela compreensão do corpo e da saúde feminina, que passaram a ser relatados em seus livros, a partir do final dos anos 1990.
Aborto continua sendo um tabu, 40 anos após a legalização na França
Em entrevista à RFI, Aude conta que a ideia de escrever sobre o sofrimento desta escolha veio muito antes da revogação do direito do aborto em alguns estados americanos, ou o debate sobre a legalização do procedimento na Argentina e no Brasil. Segundo ela, sua motivação foi pessoal, com o objetivo de falar sobre o assunto com mulheres que passaram por uma experiência similar à sua, mas também às mães - que desejaram e tiveram filhos - e homens, sejam eles pais ou não, com o objetivo de expandir a compreensão e a tolerância sobre uma questão que continua sendo tratada como um tabu.
“A sociedade não fala suficientemente sobre a prática do aborto, mesmo se aqui na França ele é autorizado por lei. Ao passar por isso, fiquei muito chocada ao perceber até que ponto a IVG permanece algo silencioso e escondido, até entre pessoas próximas e no setor médico. É uma questão que continua sendo evitada. Então pensei que, contando minha experiência pessoal, eu pudesse ajudar as pessoas”, afirma.
Ao retratar abertamente a experiência do aborto, Aude percebeu também a falta de informação das pessoas sobre o procedimento, além do preconceito e peso que paira sobre as mulheres que decidiram interromper a gravidez por vontade própria.
“Muitas pessoas pensam que o aborto é uma medida de conforto para as mulheres, porque o enxergam como método de contracepção. Geralmente esse tipo de pessoa acredita que a IVG é feita por garotas jovens que só pensam em transar e são inconsequentes. Cada vez que eu ouço esse tipo de coisa, eu tenho vontade de perguntar: você realmente acredita que entre tomar um anticoncepcional e ir aspirar o interior de seu ventre por um desconhecido, as mulheres preferem a segunda opção?’”, diz.
Segundo ela, essa concepção existe devido à persistência do machismo e das sociedades patriarcais.
“Na França, eu percebo que quando as mulheres têm 28, 29 anos, todos começam a perguntar se elas são mães. A verdade é que a ideia geral é que as mulheres existem para gerar e criar filhos. E elas ainda têm a obrigação de se realizarem através da maternidade. Tenho a impressão de que, ao viverem abortos naturais ou voluntários, depressões pós-parto, se arrependerem de serem mães ou até mesmo por não quererem ser mães, as mulheres são extremamente e frequentemente culpabilizadas.”
Aude percebe a evolução dos comportamentos em alguns setores da sociedade com movimentos como o #MeToo ou com vitórias como a da legalização do aborto na Irlanda. Ao mesmo tempo, vê que com a ascensão de governos ultraconservadores no mundo, os direitos das mulheres estão sendo atacados ou até mesmo revogados, como é o caso das leis sobre o aborto nos Estados Unidos. Apesar de se considerar privilegiada por ser uma mulher livre na França, acredita que é preciso continuar lutando contra uma possível regressão.
“Considerando os resultados da Reunião Nacional [partido da extrema direita francesa] nas eleições europeias, é preciso manter a vigilância. Há cada vez mais médicos franceses que se recusam a realizar abortos. No interior do país, há muitas mulheres que precisam viajar para realizar a IVG em cidades distantes porque os hospitais de seus municípios não oferecem essa possibilidade. O próprio presidente do sindicato francês de ginecologia afirmou que considera a IVG como um homicídio. Isso tudo nos faz ter medo de um futuro recuo dos direitos das mulheres na França também”, conclui.
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