Filme “Compra-me um revólver”, de Cordón, apresenta um México dominado por traficante, onde as mulheres “desaparecem”. Em meio a geografia mágica, a brutalidade do real transforma-se em algo belo e rico em potencialidades
Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Cinema
As distopias estão em voga, e não é por acaso: o mundo, em especial o chamado Terceiro Mundo, vive uma alarmante situação de anomia e insegurança, em que predomina a sensação de que o que é ruim pode ficar ainda pior. Cada artista, dependendo de sua formação e sensibilidade, de seu “lugar de fala”, para usar uma expressão corrente, reage de maneira diferente a esse cenário conflagrado.
O mexicano Julio Hernández Cordón optou por construir, em Compra-me um revólver, uma fantasia ao mesmo tempo sangrenta e poética, em que o épico se alterna, ou antes se engalfinha, com o lírico. Sua história se passa num local e num tempo indeterminados, mas muito próximos do México de hoje. Tudo está dominado pelo narcotráfico e as mulheres desapareceram – ou melhor, só aparecem, desfrutáveis, nas festas de embalo dos bandidos.
Lógica dos sonhos
Quem narra a história é uma menina, Huck (Matilde Hernández), que vive num trailer com o pai, Rogelio (o músico Rogelio Sosa, em seu primeiro trabalho como ator). Viciado em cocaína, Rogelio é uma espécie de zelador de um estádio de beisebol que se ergue no meio do nada, frequentado pelo chefão do narcotráfico e sua gangue. Usando um capacete e uma máscara, Huck passa por menino para não ser sequestrada como foram sua mãe e sua irmã.
Isso é praticamente tudo o que se pode dizer sem estragar as surpresas e espantos que o filme reserva ao espectador. Mistura improvável de Mad Max e Huckleberry Finn (evocado nos nomes dos personagens – Huck, Sawyer, Tom – e numa estranha viagem fluvial de jangada), a narrativa se desenvolve com a lógica inverossímil dos sonhos, ou da fantasia infantil.
Falsas mortes, personagens que são ao mesmo tempo masculinos e femininos, mudanças de paisagem (deserto, mata, montanha, rio) que desafiam a geografia, meninos que se camuflam de árvores e surgem em qualquer parte, a obsessão de um deles por recuperar seu braço decepado, tudo isso se torna possível e crível graças à mise-en-scène envolvente do diretor, que tende a arrastar até mesmo o mais relutante espectador.
Filtro subjetivo
É a sensibilidade de Huck, em sua mistura de percepção e desejo, que parece determinar, em última instância, a leitura desse mundo em convulsão.
Há uma cena notável que indica esse “filtro” subjetivo. Numa espécie de rave no meio do deserto, um acerto de contas entre gangues redunda numa pavorosa chacina. A menina, que estava escondida durante a fuzilaria, sai para o campo e se depara com dezenas de corpos ensanguentados. No plano seguinte, esses cadáveres são apenas figuras de pano, bidimensionais, espalhadas como numa grande instalação.
Contra o horror, a fantasia. Contra a brutalidade, o sonho – que não foge do real, mas o transfigura em algo belo e pleno de potencialidades. Essa parece ser a postura estética e ética do cineasta Julio Hernández Cordón. Sua distopia, no fundo, talvez seja uma utopia.
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