Litografia de Fernand Léger (1881-1955), Arthur Rimbaud: Les Illumination (Reprodução) |
Ao final do século 19, início do século 20, em meio a uma cultura europeia centrada em “famílias tradicionais” (homens “chefes de família”, mulheres dedicadas a filhos, tarefas domésticas e crianças sem infância), Sigmund Freud criou a psicanálise. A Europa fervia: revolução industrial, invenção da imprensa, arte impressionista… E, em poucos anos, os anúncios de uma primeira guerra mundial.
Freud se dispôs a escutar o silêncio dos lares vienenses, assim como o sussurrar dos ventos de sua época. Seu trabalho transformou nosso olhar sobre o sujeito moderno ocidental, fruto do Iluminismo, que se viu derrubado do lugar de “centro da razão”.
Foram as mulheres quem primeiramente fizeram o criador da psicanálise perceber o que pulsava por trás dos incompreensíveis sintomas em seus corpos e lares. Sintomas que faziam enigma a um universo masculino da época, que recorria aos saberes prescritos de então, para tentar “curá-las”, sem sucesso algum. A escuta atenta de Freud ao que elas se dispunham a lhe falar provocou uma abertura no mundo científico e, com isso, o início da psicanálise.
Foram as mulheres quem primeiramente fizeram o criador da psicanálise perceber o que pulsava por trás dos incompreensíveis sintomas em seus corpos e lares. Sintomas que faziam enigma a um universo masculino da época, que recorria aos saberes prescritos de então, para tentar “curá-las”, sem sucesso algum. A escuta atenta de Freud ao que elas se dispunham a lhe falar provocou uma abertura no mundo científico e, com isso, o início da psicanálise.
As mulheres ensinaram a Freud que o sofrimento que lhes acometia não se dispunha a ser tratado com prescrições médicas, mas com suas próprias palavras. Que as palavras que encontravam inicialmente para tentar bendizer suas dores puxavam outras, e outras, e memórias infantis, e sensações corporais, até o espanto de perceberem que sabiam sobre si o inimaginável.
Os efeitos da linguagem e da cultura no corpo feminino se destacaram na escuta freudiana. Já nos idos 1900, as mulheres portavam em seus corpos o anúncio do que falhava nas estruturas viris europeias de então (como sempre, algo falha em qualquer estrutura). Apontavam para o que estava para além das construções dos saberes e dos circuitos politicamente corretos. Faziam entender que a cultura não se separa dos corpos, que a linguagem não se separa do erotismo e que a maternidade não é idílica. Anunciavam que, no encontro entre a linguagem e o corpo, algo escapa às montagens significantes e aos infinitos significados de nossas histórias. Às parcerias perfeitas, entre casais ou entre mãe e filho, as mulheres respondiam com seus corpos em descompasso com a suposta harmonia da época.
Instinto materno?
São elas, ainda, que seguem a tanto nos ensinar. Ensinam, por exemplo, que a experiência da maternidade – pelo menos a da maternidade humana, linguageira – de natural e “instintiva” nada tem. Ensinam que, como mães, podem vivenciar a chegada de um bebê não apenas em seu aspecto fálico, mas como algo muito angustiante. Não deveria lhe envolver de imediato um amor incondicional e um saber se virar com colos, choros e afagos? Eis que nasce o bebê, mas – surpresa difícil – a sua chegada não coincide necessariamente com a da mãe. Peito e boca não se encontram. Choro e colo não se abraçam. Exaustão e sono não se acalantam.
Seu corpo de mulher se tornou uma massa amorfa a fazer peso escorrendo por um peito de dor e fissuras; um peito sugado e abocanhado por horas e horas e horas por uma boquinha mínima, linda, doce. E infinitamente voraz. Uma boquinha aberta em modo constante para um peito do qual pende a inconsistência de um corpo que já não é mais o daquela mulher que antes podia usufruir do mesmo, oferecendo-o ao prazer, seu e de parceiros. Experimenta a perda de suas bordas corporais.
Gozos
Uma forma de a psicanálise lacaniana pensar a experiência, no corpo, de perda das bordas e de apagamento dos contornos, é através do conceito de “gozo feminino” (ou “gozo nãotodo”).
O “gozo”, conceito tão fundamental aos lacanianos, é constituído pelo encontro da linguagem com o corpo. Refere-se aos excessos de prazer e de desprazer tão únicos a cada um; a algo que experimentamos singularmente, sempre como um profundo estranhamento, embora também de modo familiar. Em seu seminário de número 20, o psicanalista Jacques Lacan nos apresenta uma fórmula com dois tipos de gozo, o “fálico” e o “feminino” (ou o gozo “todo” e o “nãotodo”).
A esses dois tipos de gozo, somos todos suscetíveis, homens, mulheres, lésbicas, gays, héteros, trans, cis… Quando nossa referência é a teoria psicanalítica lacaniana, o gozo feminino não se restringe a um gozo “de mulher”. Referimo-nos a um gozo opaco, que não faz conjunto, não é compartilhável, não faz unidade, não se permite delimitar ou definir; é um gozo líquido e não sólido; um acontecimento de corpo que faz enigma e que pode vir a desmanchar os contornos de todos os seres falantes, dos mais consistentes aos mais líquidos. Neste sentido, o gozo feminino está em oposição ao gozo fálico que seria, por sua vez, enlaçado aos enredos da vida, referido ao jogo binário entre presença e ausência, às palavras, aos discursos e a uma unidade corporal (mesmo sendo ele estranho a imagem que temos de nosso corpo).
Devastação
Quando o gozo nãotodo vem se situar de modo avassalador numa relação, uma leitura possível dessa vivência é através do que em psicanálise nomeamos de “devastação”.
A “devastação materna” é bastante abordada pela teoria psicanalítica como um aspecto do infantil, devastado, enquanto objeto, pela presença de uma faceta materna totalizante. O ponto aqui é como a criança pode ser atravessada pelo que, da mãe, não encontra ponto de parada. Hoje, no entanto, perguntamo-nos se, no lugar de mãe, uma mulher também pode passar pela experiência de devastação quando a presença de um bebê passa a ser sentida por ela como “devoradora”.
Não estamos acostumados a pensar a devastação do lado da mãe (embora atualmente se fale muito de patologias como depressão pós-parto e do que se chama de “baby blues”), pois a leitura mais conhecida ainda é a da maternidade como uma experiência fálica (e por vezes idílica). E talvez, de fato, tenha sido essa a vivência preponderante em relação à maternidade em tempos passados.
O que constatamos hoje, no entanto, é que ela pode ser vivida de um modo bastante angustiante. Neste sentido, “longe de encontrar uma satisfação apaziguada em sua relação com o filho objeto de seu desejo, [uma mulher] pode, inversamente, passar pela experiência da devastação, sendo engolfada, deportada dela mesma por um gozo louco, enigmático, fora do sentido”, como afirma a psicanalista Esthela Solano-Suárez, estudiosa do tema.
Tornar-se mãe
Não é evidente – e muito menos natural –, portanto, a operação que irá possibilitar que, ali onde os contornos se desfizeram, apresente-se um sujeito a ocupar o lugar materno. A construção da maternidade, para algumas mulheres, exige que elas se desloquem do lugar de “objeto devorado”, ao qual, como vimos, podem ser lançadas sem esperar, para alçar o bebê ao lugar de “objeto fálico”.
Essa expressão é bastante conhecida entre leitores de Freud e faz menção a um lugar muito especial do bebê na cadeia simbólica materna. É nesta cadeia que a mulher poderá vir a localizar, entre ela (enquanto mãe) e o bebê, algo relativo ao que não se encaixa e não se encerra entre eles, algo que os remeterá, a ambos, ao ponto de impossível a se localizar neste “entre”. Um impossível encaixe a se localizar no desencaixe completo. Com isso, permitir-se-á que toda uma cadência se construa, não apenas entre peito e boca, passos e descompassos, entre mãe e filho, mas para toda uma vida que se abrirá para ambos a partir daí.
O feminino que não se lê
Em nossa sinfonia contemporânea, atonal, as mulheres seguem prenhas da pulsação do que destoa da norma. Mas se pluralizaram de tal modo na cultura, que o enigma feminino, antes pensado e localizado apenas em bruxarias e histerias, espalhou-se e disseminou-se pelos múltiplos corpos da cidade.
Ao impacto da linguagem nos corpos, erotizados pelo banho com que os lambe a língua do Outro, os corpos reagem feminizando-se (talvez cada vez com mais intensidade), em deságue, escorrendo por entre os filetes da linguagem, fazendo-se ilegível aos textos sociais, traçando caminhos de gozo que não respondem ao status quo, à melodia quo, à harmonia social.
Em Um útero é do tamanho de um punho, a poeta Angélica Freitas, mágica, maravilhosa, nos dá a ler “MULHER DE”, com suas tantas tentativas de escritas: mulher de vermelho; mulher de valores; mulher de posses, mulher depois; mulher de rollers; mulher depressa; mulher de um homem só; mulher de respeito; mulher de malandro; mulher de regime.
“Mulher de” traz o impossível de uma escrita total, o silêncio, no lugar do que não encontrará jamais as palavras para dizer, toda, uma mulher, ou, na leitura lacaniana, o feminino. As leituras de uma época não podem prescindir do trabalho de aprender a ler, no texto de cada civilização, aquilo que justamente não se dá ao sentido.