O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa também atuou no Brasil. Ainda que a Inquisição aqui não tenha agido com o furor e com a obsessão perseguidora com os quais atuou em Portugal, esse tribunal de triste memória deixou, entre os habitantes da Colônia, marcas profundas e cizânias de difícil cicatrização. Acentuou as diferenças entre os cristãos-velhos e os cristãos novos, esses últimos judeus convertidos ao cristianismo. Sempre se desconfiava do judaizante. Desde os tempos coloniais, o Brasil vive na busca de bodes expiatórios para seus desacertos. A culpa é uma transposição hereditária de Portugal.
Conta-nos o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) que em 1591 a Inquisição de Lisboa enviou um visitador para Salvador, Heitor Furtado de Mendonça, confessor do próprio Rei. Com a chegada do Tribunal, abria-se um tempo de graça, no qual se recebiam confissões. Pecados seriam remidos ou ligeiramente apenados, se as confissões se fizessem antes da instauração dos processos. Então, testemunhas e confissões foram tomadas, denúncias foram colhidas.
Os registros dos depoimentos foram conservados em arquivo. Com o título de Confissões da Bahia esses comoventes relatos foram selecionados e publicados pelo competentíssimo historiador Ronaldo Vainfas, professor na Universidade Federal Fluminense, na coleção Retratos do Brasil, da Companhia das Letras.
Os registros dos depoimentos foram conservados em arquivo. Com o título de Confissões da Bahia esses comoventes relatos foram selecionados e publicados pelo competentíssimo historiador Ronaldo Vainfas, professor na Universidade Federal Fluminense, na coleção Retratos do Brasil, da Companhia das Letras.
As narrativas são assustadoras. Algumas, provavelmente mais graves. Outras, derivavam do medo. Há registros de sodomitas, blasfemos, bruxas, leitores de livros proibidos, simpatizantes do protestantismo e de todo o tipo de pecadores ou transgressores. À época, fins do século XVI, não eram claras e contundentes as fronteiras entre o pecado e o crime. A leitura desses depoimentos nos oferece um amplo painel das aflições dos habitantes da colônia, de quem descendemos, também em nossos medos, tormentos e martírios.
Exemplifico esses dramas humanos com as andanças e desencontros de uma Catarina Morena, cujo depoimento foi tomado pelo Inquisidor em 21 de agosto de 1591. Dizia ser cristã-velha, nasceu na Espanha, no arcebispado de Toledo. Ainda jovem, com 18 anos, casou-se em Málaga, no bispado de Granada, com Francisco Durán, dono de uma hospedaria. O marido, segundo a depoente, era “acostumado a embebedar-se e ser homem de ruins manhas e lhe dar mau trato”. Catarina foi vítima de agressões.
Corajosamente, fugiu para o Brasil, em companhia de um espanhol, Francisco de Burgos, com quem passou a viver em Salvador. Separou-se de Francisco e foi para a capitania de Pernambuco. Contou que “vendo-se ela muito pobre e desremediada de se casar, fez uma carta fingindo que lhe vinha de Málaga em que se dizia como o dito seu marido Francisco Durán era morto, a qual deu a ler a muitas pessoas”. Simulou a morte do marido distante. Fingiu ser viúva e casou-se com um Antônio Jorge, português.
Depois de quinze meses de casada, tomada pela dor na consciência, confessou a falta a um padre jesuíta, que secretamente relatou o ocorrido a um padre no Pernambuco. Violou o sigilo do confessionário. Revelou-se a trama ao marido enganado, aconselhando que se “apartasse dela confessante, porque ela não era sua mulher legítima”. Catarina Morena retornou para Salvador, pedindo misericórdia e perdão, no tempo de graça, afirmando ter errado “como mulher pecadora”. Misericordioso, o Inquisidor apenas lhe apenou com penitências espirituais.
O caso dessa infeliz Catarina Morena nos mostra que simbolicamente somos predicados de uma cultura da culpa, porque é da culpa que se alimenta a opressão. Somos ao mesmo tempo opressores e oprimidos. Protagonizamos um enredo existencial de acusações e libelos. A culpa nunca é nossa, justamente porque fomos educados para confessar que somos sempre culpados. Os tropeços da vida privada de Catarina Morena eram tomados como transgressões dignas de pena, em ambos os sentidos, figurado e criminal.
Uma releitura contemporânea desses fatos sugere, no entanto, uma incontida admiração por uma mulher vitimizada, de quem simbólica e culturalmente, de alguma forma, todos brasileiros descendemos. E também ilustram que inquisições aparecem e desaparecem. Os textos não esclarecem se foi penalizado o padre que violou seu dever de ofício, que era manter o sigilo das confissões. Esse pode ser o mais grave comportamento que o caso misteriosamente sugere, revelando abuso de confiança, uma grave forma de desprezo para com nosso semelhante.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.
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