'Rafiki' (Quênia), 'Rainhas do Crime' (EUA) e 'Não mexa com ela' (Israel) são três filmes dirigidos por mulheres de diferentes partes do mundo
09/08/2019
Há alguns anos, diretoras reivindicam maior participação na criação de filmes. O espaço dado às mulheres na indústria cinematográfica sempre foi reduzido, e mesmo aquelas que tiveram destaque muitas vezes foram apagadas pela historiografia oficial. Aos poucos essa situação começa a mudar. Pioneiras do cinema mudo, como a francesa Alice Guy Blaché, são celebradas. E a filmografia de diretoras fundamentais, como a tcheca Vera Chytilová e a belga Agnès Varda, é revista e discutida com seriedade.
No Brasil, o lançamento do livro de ensaios Feminino e Plural – Mulheres no cinema brasileiro , organizado por Karla Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco, colocam em evidência criadoras que não tiveram reconhecimento à altura de sua obra, como Ana Carolina, Helena Solberg e a pioneira Cléo de Verberena, primeira diretora brasileira, que comandou e protagonizou O mistério do dominó preto (1931), filme silencioso que encontra-se hoje perdido.
Nesse contexto, o lançamento de três filmes dirigidos por mulheres de diferentes partes do mundo na mesma semana é algo a ser comemorado. E nos possibilita pensar em como o olhar feminino amplia nossas possibilidades de perceber o mundo a partir do cinema.
Rafiki , da premiada diretora queniana Wanuri Kahiu, nos apresenta o romance proibido de duas meninas, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), cujos pais são rivais políticos em uma pequena cidade do Quênia. A violência do machismo e a homofobia são apresentados em um cotidiano onde aquela paixão não poderia terminar em bom termo.
O filme é competente em demonstrar o ambiente opressivo da cidade e tem boas interpretações do elenco central. Constrói a atmosfera em torno do romance das duas meninas de um modo terno e delicado, que se contrapõe à violência estruturante da sociedade em que vivem. A diretora conduz o trabalho com competência e, mesmo em alguns momentos em que parece pesar a mão na caricatura, consegue desvencilhar-se da armadilha, voltando o foco para os sentimentos da dupla de protagonistas.
Esteticamente, Rafiki é um filme convencional. Abusa do uso de uma estética pop contemporânea, que o aproxima em alguns momentos do formato de videoclipe. Repete um discurso apresentado em muitos filmes de coprodução europeia que contrapõem a civilidade dos europeus à barbárie do Terceiro Mundo. Obviamente, tem razão quando aponta o atraso do Quênia (e de tantos outros países africanos) em relação às mulheres e aos homossexuais. Mas fica a sensação de um olhar externo àquela sociedade, tanto no discurso quanto na forma, ainda que a diretora tenha origem Queniana.
É a mesma impressão que tive ao ver Eu não sou uma bruxa , da talentosa diretora Rngano Nyoni, da Zâmbia, que esteve em cartaz no último mês em alguns cinemas brasileiros. Fica no ar em Rafiki uma espécie de redenção do amor proibido com a adoção do modo de vida ocidental moderno, representado no filme pelo universo pop de uma juventude “globalizada”. Feito este reparo, é um filme que vale a pena ser visto, pela sensibilidade que conduz o romance entre as duas meninas na África contemporânea.
O mesmo não vale para o americano Rainhas do crime , dirigido pela atriz e roteirista Andrea Berloff. Nesse seu primeiro filme como diretora, Berloff conta a história de três mulheres casadas com mafiosos irlandeses (vividas pelas atrizes Melissa McCarthy, Elisabeth Moss e Tiffany Haddish), que resolvem assumir os negócios dos maridos quando estes vão presos. Para isso, enfrentam os homens que tomaram a frente nos negócios.
Adaptação do HQ da DC, Vertigo , que no Brasil foi lançado como A cozinha: rainhas do crime , o filme não decola. A narrativa é pouco convincente, e a todo momento recorre a bordões emancipatórios contemporâneos, que, se possuem força inconteste junto à sociedade em geral, soam deslocados no universo da máfia irlandesa de Nova York dos anos 70. Tudo soa artificial em Rainhas do crime . O universo da máfia parece um pastiche de outras obras do gênero, sem, no entanto, carregar a densidade de seus filmes mais clássicos.
A passagem de donas de casa para mafiosas é dada como natural, uma questão de emancipação das mulheres, como em outros setores da sociedade. Uma das protagonistas é apresentada como uma carinhosa e delicada dona de casa, que prepara o jantar com zelo e busca os filhos na escola, e no horário comercial dirige com profissionalismo e racionalidade os negócios da máfia. A afirmação das mulheres no mundo do crime pode render bons filmes. Mas é preciso para isso mergulhar nesse universo com mais cuidado, compreendendo sua lógica própria e seus valores. Rainhas do crime trata a máfia como mais um ramo do mundo corporativo, com seus jargões e lógica de funcionamento.
A ascensão das mulheres ao topo da máfia se dá pelo empreendedorismo, pela eficiência e pela meritocracia, como se fosse mais um capítulo na luta por direitos civis. Creio que nem o mais empedernido liberal defenderia que essa lógica pode operar dessa maneira no mundo do crime.
O destaque entre os lançamentos é Não mexa com ela , dirigido pela israelense Michal Aviad. Orna (Liron Ben Shlush) é uma jovem mãe de três crianças que, junto ao marido, passa por dificuldades financeiras. Consegue um trabalho promissor em um grande empreendimento imobiliário, comandado por Benny (Menashe Noy), um homem de meia-idade, com poder e dinheiro. Orna destaca-se pela competência no trabalho, mas é constantemente assediada por Benny, comportamento que gera na protagonista um crescente sentimento de angústia e culpa. A diretora consegue arquitetar com sutileza as relações de poder e gênero dentro do ambiente corporativo, construindo uma atmosfera angustiante a partir do olhar de Orna.
O assédio no filme é sustentado pelas relações hierárquicas, e nem sempre é tão transparente para a protagonista. Essa zona de desconforto e falta de clareza em que opera colocam Orna em um lugar de fragilidade e insegurança que é muito bem delineado pela diretora. É sob o ponto de vista de Orna e sua jornada de autoconhecimento que o filme constrói um olhar nada açucarado das relações de abuso no mundo do trabalho.
Michal Aviad, de 64 anos, é uma diretora experiente, embora pouco conhecida no Brasil. Destacou-se em sua carreira como documentarista, sendo este o seu segundo longa-metragem ficcional. É uma bela surpresa para o público brasileiro: uma diretora talentosa, que estrutura sua narrativa com segurança e sobriedade. Dificilmente um homem conseguiria retratar com tanta contundência e simplicidade a violência psíquica contra as mulheres como o faz este filme.
No mundo do cinema, ainda predominantemente masculino, o olhar feminino aos poucos consegue seu espaço, trazendo novas leituras para velhos problemas que ainda estão longe de ser superados.
Rafiki, de Wanuri Kahiu (Quênia, África do Sul, França, Holanda e Alemanha, 2018)
Em cartaz em São Paulo, Brasília, Aracaju, Curitiba, Florianópolis, Manaus, Maceió, Porto Alegre, São Luís, Teresina e Vitória
Rainhas do crime, de Andrea Berloff (Estados Unidos, 2019)
Em cartaz em Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Fortaleza, Maceió, Recife, Porto Alegre, Curitiba, São Luís, Goiânia, Cuiabá, Nova Iguaçu, São José dos Campos, Barueri e Campinas
Não mexa com ela, de Michal Aviad (Israel, 2019)
Em cartaz em Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Niterói, Porto Alegre, Recife, Salvador, Santos e Vitória
Thiago B. Mendonça é crítico de cinema, diretor e roteirista. É mestrando em meios e processos audiovisuais pela Universidade de São Paulo.
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