Crimes de tortura ainda ocorrem com suporte de médicos
Por Igor Truz - igor.moraes@usp.br
A Medicina continua presente e é elemento indispensável no aprimoramento da prática do crime de tortura, mostra pesquisa da Faculdade de Direito (FD) da USP. O estudo aponta indícios que exércitos de muitos países continuam adotando métodos de obtenção de informação pelo uso da força. Mudanças nas legislações ao redor do mundo, criação de Códigos de Ética, inegáveis avanços no campo dos Direitos Humanos, e do Direito Internacional, não foram capazes de impedir a participação de médicos nestes crimes, desde a Segunda Guerra mundial, até os nossos dias.
Após mais de dois anos de pesquisa, consultas a periódicos de medicina, publicações jurídicas e diversos materiais de organizações internacionais de Direitos Humanos, a advogada Virginia Novaes Procópio de Araujo acredita ser possível afirmar que atos de tortura não apenas continuam ocorrendo, como também foram aprimorados com auxílio da Medicina. Os dados estão na pesquisa O ato médico no crime de tortura, realizada na Faculdade de Direito (FD) da USP sob a orientação do professor Roberto Augusto de Carvalho Campos. O foco da dissertação de mestrado foi a atuação de médicos militares, ou seja, médicos que fazem parte das Forças Armadas ao redor do mundo.
“Durante a Segunda Guerra Mundial, o papel do médico era criar uma ‘linha de produção da morte’ que aparentasse algo científico. Hoje, podemos dizer que a maleficência médica ‘evoluiu’, no sentido de aprimorar a obtenção de informações com menores danos físicos e, portanto, menos evidências de tortura”, afirma a advogada.
Para Virginia, procedimentos hoje classificados como meio de obtenção de informação de segurança nacional são, na verdade, atos de tortura mascarados, brechas legais encontradas para justificar o uso da força, com participação decisiva dos médicos. “Na atual guerra norte-americana contra o terrorismo, por exemplo, a Cruz Vermelha não teve acesso aos prisioneiros, o que evidencia desrespeito dos médicos ao Protocolo de Istambul, que os obriga a documentar abusos a que foram submetidos os prisioneiros do exército, e solicitar auxílio internacional. Estes profissionais também violaram seu papel de médico de guerra, conforme expõe as Convenções de Genebra, que prevê auxílio de saúde para todos, inclusive inimigos”, afirma.
Bioética
A Bioética é uma ciência interdisciplinar dedicada a refletir e discutir sobre valores próprios da saúde e vida humana presente nos currículos de formação acadêmica de profissionais na área da saúde. A Bioética aplicada à Medicina é baseada nos seguintes princípios: a “Beneficência”, a qual obriga o médico a sempre optar por um tratamento para o bem do paciente; a “Não maleficência”, que obriga o médico a não gerar nenhum dano intencional ao paciente; a “Justiça”, que recomenda a imparcialidade do médico na distribuição de riscos e benefícios de todos os pacientes, sem nenhuma distinção e por fim, a “Autonomia”, em que o médico deve respeitar a vontade do paciente.
A advogada explica que, ao utilizar seus conhecimentos técnicos para aprimorar os métodos utilizados nos crimes de tortura, driblar as novas legislações – seja reduzindo evidências de danos físicos aparentes dos torturados, seja compartilhando informações obtidas em exames que revelem fraquezas físicas e psicológicas dos torturados a serem exploradas, ou, até mesmo falsificando atestados de óbito, – os médicos incorrem em comportamento maleficente, e violam o seu próprio código de ética.
Além da Lei
Virgínia relata que relatórios recentes produzidos pelas organizações “Médicos pelos Direitos Humanos” e “Comitê Público contra Tortura”, de Israel, denunciam o comportamento maleficente de médicos envolvidos em crimes de tortura no país, onde a própria Suprema Corte parece aceitar uso de força física em interrogatórios, justificado pelo princípio da necessidade para conseguir obter informação e o decorrente salvamento de vidas.
“Em similar postura, a existência do Centro de Detenção de Guantánamo, em Cuba, onde os Estados Unidos mantêm centenas de prisioneiros de guerra, é um forte indício de que a tortura continua a ser praticada pelos norte-americanos, sob o nome de ‘técnicas reforçadas de interrogatório’”, aponta Virgínia. “No relatório oficial da CIA [Agência Central de Inteligência dos EUA] sobre essas técnicas, no método ‘afogamento simulado’, é indispensável a presença de um médico e um oxímetro para avaliar a quantidade de oxigênio do interrogado e eventual risco de morte. Apesar de o presidente norte-americano Barack Obama ter admitido que essa prática não seja mais utilizada, pouco se sabe do que ocorre em Guantánamo”, completa a pesquisadora.
Para Virginia, o endurecimento das legislações, sozinho, não é eficaz para solucionar este problema: “Os médicos não conseguiram evitar uma violação ao Juramento Hipocrático, ao Código de Nuremberg, aos preceitos da Associação Médica Mundial e Bioética, a Convenção contra a Tortura, etc. Normas não foram aptas a coibir a participação dos médicos e lacunas legais foram preenchidas permitindo abusos e impunidade”.
Somente um esforço conjunto, em múltiplas frentes, pode, no ponto de vista da pesquisadora, representar um avanço na resolução da questão: “Devemos reconhecer que o problema existe, e que alguns médicos desrespeitam seu juramento e tratados internacionais. É preciso investir na educação e formação humanizada dos futuros profissionais. Além disso, é necessária a criação de órgãos de proteção dos médicos, para que os mesmos possam delatar crimes de tortura sem sofrer nenhum tipo retaliação. Por fim, é indispensável a condenação dos envolvidos, seja criminalmente ou perante seu Conselho de Medicina, e a ampla divulgação deste ilícito, a fim de demonstrar que existem consequências para aqueles que auxiliam na prática de tortura”.
Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Mais informações: email ginnynpa@hotmail.com, com a pesquisadora Virginia N. P. de Araujo
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