Enquanto a guerra explodia na Europa, mulheres artistas reencontravam sua arte no México. A pintora foi a guia de várias delas
NINA FINCO
25/09/2015
Ao chegar ao México, em 1938, o poeta francês e teórico do surrealismo André Breton declarou que aquele era “o país mais surrealista do mundo”. Lá vivia Frida Kahlo, uma pintora cujas obras misturavam sofrimento, feminilidade e elementos do folclore e da natureza mexicanos. A aparente falta de racionalidade em suas pinturas impressionou Breton, mas Frida rechaçou o título de surrealista. “Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade”, dizia. O encontro mudou o rumo da arte. A porta que Breton entreabriu no México, mais tarde, escancarou-se. Os adeptos do estilo que desejavam fugir de uma Europa endurecida e em guerra encontraram um destino que serviria como refúgio e inspiração. Entre os muitos exilados estavam mulheres que haviam conhecido a vanguarda artística por meio de seus maridos, pais e amigos. No México, conheceram Frida e criaram laços mais estreitos entre si. Cada uma se sentiu à vontade, também para criar o próprio surrealismo.
A exposição Frida Kahlo: conexões entre mulheres surrealistas no México, que ficará em cartaz no Instituto Tomie Ohtake de 27 de setembro a 10 de janeiro de 2016, reúne 16 dessas artistas. Serão cerca de 100 obras, incluindo 33 de Frida.
Artistas como a espanhola Remedios Varo, a inglesa Leonora Carrington e a francesa Jacqueline Lamba tiveram o primeiro contato com a vanguarda surrealista em solo europeu, por meio dos ensinamentos de seu grupo fundador, quase inteiramente composto de homens. No México, aos olhos delas escaldante, atrasado e exótico, encontraram artistas surrealistas mexicanas, como Maria Izquierdo, e uma atmosfera criativa e intelectual bem diferente da que haviam experimentado em Madri, Londres e Paris. Passaram também a se encontrar, ao circular num ambiente intelectual muito menor que o das capitais europeias.
O ideário e as práticas surrealistas ganharam outros contornos, ao beber mitos, rituais e crenças da cultura nativa. O círculo de companheiras artistas as incentivou a tratar de temas como identidade e feminilidade, mesmo sem nunca formular uma cartilha ou teoria para essa experiência. “A sensibilidade dessas mulheres criadoras era muito diferente da masculina”, afirma a historiadora mexicana e curadora da exposição Teresa Arcq. Surrealistas como Salvador Dalí e Juan Miró representavam o corpo da mulher como objeto do desejo. Por representar seu corpo do jeito que imaginava, sem medos ou podas, Frida ganhou fama de feminista. Numa época em que pouco se falava sobre o assunto – nem ela própria teorizava a respeito dos direitos das mulheres –, a artista esfacelou tabus sem nem pensar muito a respeito deles. “Frida não teve uma atuação social, mas marcou a história ao retratar em suas obras a condição dela como mulher”, afirma o professor Marcos Moraes, coordenador do curso de artes visuais da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap). “As imagens que ela produziu mostravam um universo feminino muito diferente do que se via até então. Não havia suavidade, nem delicadeza. Tudo era retratado com força e dor.”
O que mais chamou a atenção no trabalho de Frida ao longo dos anos foram seus autorretratos. Seis deles fazem parte da exposição. Ao vê-los, é impossível não reconhecer o olhar observador, adornado por um conjunto de traços facilmente reconhecíveis – sobrancelhas vastas que se unem no topo do nariz, a pele escura, de herança indígena, e uma fina penugem sobre sua boca séria.
Frida começou a pintá-los após sofrer um acidente de bonde, em 1925, em que fraturou sua coluna e dilacerou seu útero. Obrigada a ficar de cama, a pintura tornou-se uma distração. De dentro do quarto, não tinha o mundo a inspirá-la. Resolveu usar um espelho para pintar a si mesma. Com o tempo, o trabalho evoluiu. Ela abraçou as culturas pré-hispânicas de seu país e acrescentou às imagens frutas, animais e plantas. Frida voltou a caminhar, mas nunca deixou de sentir dores atrozes. Passou a usar o retrato como uma forma de expressar esse desespero. Mostrou a si mesma com o corpo esgarçado, crivada de flechas, com os órgãos expostos. Nunca ninguém pintou a dor física como Frida.
Assim como ela, as mulheres surrealistas partiram numa jornada de autoconhecimento por meio de retratos. “Pintar um autorretrato é uma autoafirmação, uma visão feminina do universo feminino”, afirma o professor Marcos Moraes.
As obras do grupo marcaram época, assim como suas personalidades fortes. Jacqueline Lamba, mulher de Breton, inspirou um dos mais famosos livros do poeta, L’amour fou (O amor louco). Em uma viagem com Breton ao México, ela se hospedou na casa de Frida, e as duas, acredita-se, iniciaram um romance (Frida era bissexual assumida). A vida agitada e cheia de amores de Leonora Carrington foi contada em livro pela escritora mexicana Elena Poniatowska. Sua arte é admirada pela rainha Elizabeth, que a condecorou com a Ordem do Império Britânico, em 2005. Remedios Varo, grande amiga de Leonora, ficou conhecida por pintar telas que misturavam ciência e fantasia e participou do Salão da Arte da Mulher, em 1958. Maria Izquierdo foi uma boêmia cujas obras cheias de cores conquistaram a admiração de artistas como o muralista Diego Rivera, marido de Frida. Elas tiveram sorte de se encontrar. Cada uma a sua maneira, fizeram suas vidas e sua arte florescer sob o sol tórrido do México.
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