Se há casos em que elas sobrevivem à tentativa de feminicídio é, em larga medida, porque o instrumento de violência foi de mais baixa letalidade
DEBORA DINIZ E GISELLE CARINO
16 JAN 2019
El País
Arma de fogo é um objeto de desejo dos homens. Há gênero na política de armas: em quem ambiciona sua posse e em quem a utiliza para matar. É, particularmente, um instrumento de guerra e de poder dos homens latino-americanos. Brasil, Colômbia, México e Venezuela juntos somam um quarto de todos os homicídios do planeta. Homens matam homens, homens matam mulheres. É verdade que homens morrem mais do que mulheres por homicídio – são eles que estão diretamente envolvidos no narcotráfico, nos conflitos armados, nas lutas por propriedade. Se homicídio é a categoria penal genérica para este tipo de crime, feminicídio foi palavra inventada na América Latina: somos a região do mundo em que as mulheres mais morrem por maridos, namorados, pais ou filhos.
De 25 países com altas taxas de feminicídio, 14 estão na América Latina. São os homens das relações afetivas e familiares que matam as mulheres por feminicídio. Na maior parte dos casos não é um desconhecido da rua que mata uma mulher, mas alguém que justifica a matança porque houve uma “provocação da vítima”. A provocação foi, no século 19, descrita como “crime passional” pela legislação penal e a justiça inocentava os homens. Em muitos países não há mais a categoria jurídica “crime passional”, mas a ideia de que houve “provocação da vítima” ainda ronda o imaginário social. Por isso é tão comum a pergunta: “o que será que ela fez?”. As razões, para os que buscam resposta a um feito injustificável, é que os homens matam as mulheres por ciúme, por duvidar de sua palavra ou de sua conduta. Mas, principalmente, por considerar que as mulheres sejam sua propriedade e que precisam controlá-la. Nem que seja matando-as.
De 25 países com altas taxas de feminicídio, 14 estão na América Latina. São os homens das relações afetivas e familiares que matam as mulheres por feminicídio. Na maior parte dos casos não é um desconhecido da rua que mata uma mulher, mas alguém que justifica a matança porque houve uma “provocação da vítima”. A provocação foi, no século 19, descrita como “crime passional” pela legislação penal e a justiça inocentava os homens. Em muitos países não há mais a categoria jurídica “crime passional”, mas a ideia de que houve “provocação da vítima” ainda ronda o imaginário social. Por isso é tão comum a pergunta: “o que será que ela fez?”. As razões, para os que buscam resposta a um feito injustificável, é que os homens matam as mulheres por ciúme, por duvidar de sua palavra ou de sua conduta. Mas, principalmente, por considerar que as mulheres sejam sua propriedade e que precisam controlá-la. Nem que seja matando-as.
É assim que a alteração na política de armas no Brasil ou em outros países latino-americanos precisa ser analisada. Propriedade não é apenas o território da casa a ser protegido do malfeitor – propriedade é tudo aquilo sob o domínio de homens que já matam as mulheres com armas, mesmo antes de a posse ser reconhecida como um direito. Se, hoje, há casos em que as mulheres sobrevivem à tentativa de feminicídio é, em larga medida, porque o instrumento de violência foi a força física ou outros instrumentos com mais baixa letalidade, como facas ou cordas. Em caso de uso de armas, as chances de uma mulher sobreviver são muito mais raras.
A política criminal de armas necessita ser sensível às normas de gênero de nossos países. Não há importação neutra de dados populacionais em que se sustenta haver menor índice de criminalidade nos países em que a posse ou porte de armas é legalizado, como é o caso dos Estados Unidos. Há dois erros neste argumento. O primeiro é sociológico – são fenômenos multicausais os que levam à redução ou aumento de homicídios. O segundo é cultural – há uma realidade patriarcal em que as armas serão uma tática de domínio na casa. Mesmo em países pacíficos, como o Uruguai, as armas são o principal instrumento para matar mulheres em violência de gênero ou doméstica. É assim na Colômbia, será ainda mais no Brasil caso se altere a política de armas.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, professora da Universidade de Brasília. Giselle Carino é argentina, cientista política e diretora da IPPF/WHR
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