Continuação de “Corpo Fechado” e “Fragmentado” traz o confronto final do diretor com aquilo que é talvez o maior vilão de seus filmes: o ceticismo
por Pedro Strazza
17.jan.2019
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Embora novos atos terríveis se anunciem todos os anos no noticiário, o 11 de setembro ainda permanece aos olhos do americano médio como a grande tragédia do século XXI. O atentado terrorista que derrubou os dois edifícios do World Trade Center – e levou em suas chamas quase três mil vidas – foi além da ferida no sentimento engrandecido da nação bélica, compondo-se como um horror não só incapaz de ser desfeito mas ocorrido no coração da maior e principal metrópole do país. É um sentimento de dor tão grande que o cinema estadunidense até hoje retorna como tema, ora ou outra trazendo de volta a imagem dos dois edifícios (ou as consequências do ato, como a declaração de guerra ao Oriente Médio) em busca de novas interpretações que deem cabo de traduzir e remendar o sofrimento e o pessimismo que circundam um momento tão assustador da História nacional – e esta alusão pode acontecer de diferentes formas na produção norte-americana.
Em “Vidro”, a imagem de duas torres gêmeas habita o imaginário dos personagens durante praticamente todo o andamento da trama. Prestes a serem inauguradas, as Osaka Towers são mergulhadas na história em um momento de risco criminal, com o Senhor Vidro (Samuel L. Jackson) ameaçando destruir os edifícios com uma explosão no intuito de revelar ao mundo a existência de seres superpoderosos – no caso, o Vigilante de David Dunn (Bruce Willis) e a Horda que é umas das 24 personalidades de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy).
Mesmo nunca materializada de fato na tela (fora imagens do noticiário e um ou outro plano capital, o espectador nunca chega muito próximo dos prédios), a incidência destas figuras já é o bastante para trazer à tona parte das intenções do novo trabalho de M. Night Shyamalan, que com o filme encerra uma trilogia iniciada em 2000 com “Corpo Fechado” e retomada há dois anos com “Fragmentado”. Não deixa de ser uma alusão que faça sentido aos rumos da “franquia”; por mais que a história sobre super-heróis “reais” tenha começado meses antes da queda do WTC, os entornos e efeitos morais da tragédia encontram muitas semelhanças com o mal estar que envolve os destinos finais de Dunn, Crumb e Elijah Price no longa.
Este clima de fragilidades, no caso, também se relaciona muito com as bases do cinema de seu diretor. Sempre por trás de projetos que passeiam pelos valores absolutos e um tanto destituídos da realidade da fábula (exceção feita a “A Vila”, outro obra cujo tema tem a ver com o contexto do 11 de setembro), Shyamalan nunca deixou de procurar entender o que movimenta os males do mundo moderno, mesmo quando imerso em questões de âmbito pessoal e de seu próprio modo de operação (“A Visita”, “A Dama da Água”). Dentro disto, “Corpo Fechado” serviu a ele (ainda no começo da carreira) como forma de estabelecer os princípios de sua lógica, apresentando o extraordinário típico de seus roteiros como uma faca de dois gumes que abençoa ou amaldiçoa a vida de seus personagens ao lhes conferir propósito – um jogo que, bem ou mal, ele viraria às avessas mais de uma década e meia depois com “Fragmentado”.
Com “Vidro”, porém, Shyamalan mostra-se menos interessado em extremos de sua equação que na oportunidade de confrontar seu cinema com aquilo que de fato lhe serve como antagonista maior de suas fábulas: o ceticismo. Se a oportunidade de “cruzar” as tramas de seus filmes anteriores e ver o tão esperado (mas ao mesmo tempo surpreendente) embate entre o herói de Dunn e o vilão de Crumb servem de grande chamariz publicitário do longa, a história deste capítulo final no fundo procura na figura da doutora Ellie Staple (Sarah Paulson), a psicóloga da vez, uma nêmesis maior ao trio de protagonistas, já que ela carrega exatamente este elemento da descrença sobre as capacidades sobrenaturais do trio como uma semente de discórdia.
Sob este olhar, não é tão difícil entender porque a produção se passa na esmagadora maioria do tempo em um hospício, além de o porquê da primeira hora se fazer quase inteira de conversas entre os personagens. Enquanto “Corpo Fechado” e “Fragmentado” partiam do princípio de que o extraordinário era uma inevitabilidade à condição humana e seus personagens, nutrindo seu drama no choque de crenças (como todas as outras fábulas de Shyamalan), “Vidro” tem no questionamento deste ponto de partida o seu mote de existência: Por que devemos acreditar no inacreditável? Qual é o sentido de passar por esta transformação? A fé no fantástico é realmente tão benigna assim?
Shyamalan nunca deixou de procurar entender o que movimenta os males do mundo moderno
Para isso, Shyamalan não economiza nos diálogos para aumentar esta dualidade do roteiro. Além da ambientação hospitalar, o tom dos diálogos nutridos entre Ellie com seus pacientes e as famílias destes ajudam a fomentar um clima de descrença generalizado, cuja desconstrução de discursos passa não só pelas habilidades daqueles que acreditam serem super-poderosos como do próprio fetiche nutrido por outros sob estas condições extraordinárias. Estes momentos, que tomam as atenções de quase todo o segundo ato, funcionam como o mais puro desconforto por no fundo também afetarem a percepção do próprio espectador sobre a relação que tece com o longa, ainda mais em um cenário onde o gênero dos filmes de super-heróis representam a força maior da indústria – afinal, não deixamos de ser versões particulares de Casey (Anya Taylor-Joy) e em especial Joseph (Spencer Treat Clark), cujos traumas pessoais em parte movimentam seu fascínio por aquelas figuras.
Mas se o trauma serve como espécie de grande antagonista não anunciado de “Vidro”, que valor mora no outro lado da balança do filme? Esta é uma questão que movimenta todos os passos da trama na mesma intensidade com o qual esta alterna seu protagonismo entre os três “pacientes”, uma dúvida que parece ir além da ridícula quantidade de conversas sobre “super-poderes” e arquétipos dos quadrinhos para alcançar um valor mais essencialista. Como a recorrência do reflexo (do vidro, da tela do computador, do espelho de segurança da loja de quadrinhos) na narrativa bem sugere, a revelação final deste bem maior vai além das aparências da imagem, mas está na própria interação humana.
É por meio dos momentos de conexão e contato físico que Shyamalan melhor canaliza esta redenção, mesmo quando tudo passa a desmoronar perante uma força superior. Das poucas interações de Casey com a personalidade central da Horda (resumidas, não por acaso, nas mãos unidas) até a hora em que Elijah, David e Kevin enfim são “abatidos” e entregues às portas da morte – seus últimos momentos no filme, afinal, se dão nos braços de seus companheiros mais próximos – o longa entende as relações humanas como alicerce fundamental de nossa existência, uma espécie de valor máximo perdido que é resgatado na história sob os ares de libertação, seja ela física ou subtextual.
O longa entende as relações humanas como alicerce fundamental de nossa existência
É esta concepção do elemento humano como essencial, por sua vez, que talvez explique o fato do filme possuir duas grandes reviravoltas, até porque elas reiteram o eterno combate a ser desempenhado. A primeira, criada na descoberta de uma sociedade maligna como vilão da história, reforça o mal maior do mundo que o diretor sempre busca combater: um universo impessoal, desprovido de qualquer contato (as reuniões se dão todas em salas ocupadas por membros que deixam de se comunicar ao sinal de início dos trabalhos) e munido por uma forte necessidade de reiterar uma padronização de olhar sobre feitos fora da dita normalidade.
Já a segunda reviravolta – e talvez a mais potente das duas – mora no plano final de Vidro para revelar ao mundo a existência do extraordinário porque ele, de algum jeito, sempre promoverá a união promulgada pelas fábulas do diretor. É aí que Shyamalan enfim encontra o ponto de equilíbrio dentro de seu próprio cinema, pois é neste momento que suas concepções perante o fantástico efetivamente se consumam em uma mensagem maior – e que o desfecho seja os três principais coadjuvantes unidos e de mãos dadas à espera de novos momentos de deslumbre e fascínio apenas reforça o teor desta elucidação perante uma fé maior, ingênua e mais potente.
No mais, este jogo de valores absolutos e feitos no superlativo nunca soa cafona em “Vidro” porque, na busca para processar o mal vigente, este abraça-os pelas estruturas da típica história em quadrinhos de super-heróis – que, convenhamos, sempre se pautaram em cima destes valores essenciais. Aos olhos de Shyamalan e de sua obra, para cada “adulto” teimando em desacreditar os outros (“Vocês já viram o público de Comic-Cons?”) existe uma criança interior que insiste em ver o mundo como ele o é, extraordinário.
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