Dillyane de Sousa Ribeiro
Quarta-feira, 16 de janeiro de 2019
No Ceará, vive-se uma explosão do poder da morte sobre a vida de meninas. A morte em nosso território tem desafiado a longa trajetória de organização popular. Também tem sido sentida sobretudo nas periferias onde o Estado insiste em transformar em territórios de exceção e os corpos jovens correm os maiores riscos. Fortaleza e o Ceará são respectivamente a capital e o Estado com os maiores índices de homicídio na adolescência do Brasil. Os meninos aqui morrem demais, mas as meninas têm morrido cada vez mais.
Entre 2016 e 2017, houve um aumento de 196% no número de meninas de 10 a 19 anos assassinadas no Estado, segundo os dados sistematizados pelo Comitê Cearense de Prevenção aos Homicídios na Adolescência. Em 2018, o número de mortes não parou de aumentar: até 26 de dezembro de 2018[1], 106 meninas de 10 a 19 anos haviam morrido de maneira violenta no Ceará. Considerando apenas Fortaleza, o aumento foi de 417%, indo de seis meninas assassinadas em 2016 para 31 em 2017. Em 2018, foram registradas 56 meninas de 10 a 19 anos mortas em Fortaleza[2]. Antes da explosão de mortes de meninas em 2017, os números vinham caindo pelo menos desde 2014.
Por enquanto, a fonte pública de informações disponível sobre as circunstâncias da morte das meninas são apenas notícias de blogs e jornais. Não há uma narrativa única que explique as mortes de tantas meninas, mas algo muito grave está acontecendo no Ceará.
No monitoramento que o Fórum Cearense de Mulheres vem realizando, as notícias sobre esses assassinatos deixam perceber que muitos deles são cometidos com vilipêndio ao corpo e sobretudo a sinais padronizados de feminilidade: raspar os cabelos, decepar os seios e o próprio estupro anterior à morte. Outras vezes a velha inscrição do território no corpo feminino ocorre mais uma vez.
Os homens destroem um corpo de menina para expressar sua vontade de domínio sobre o território que este corpo habita, como na Chacina de Cajazeiras. Nesse caso, ocorrido em 27 de janeiro de 2018, três meninas de 15, 17 e 19 anos estavam entre as 14 vítimas fatais de um ataque atribuído a uma facção em território dominado por outro grupo.
Em seus estudos sobre violência, Rita Laura Segato tem afirmado que a morte, muito mais que uma função instrumental, exerce uma função expressiva. Isto é, mais do que servir para obter algo, a morte na maioria das vezes quer dizer algo.
Ciudad Juaréz é um caso emblemático disso. Trata-se de uma cidade mexicana na fronteira com os EUA, que tem metade da população de Fortaleza e que, nos anos 1990, começou a apresentar uma série de assassinatos de mulheres jovens com um modus operandi marcado pela crueldade. Familiares de vítimas, ativistas feministas e acadêmicas se dedicaram a interpretar e se engajar contra o fenômeno. A partir do caso de Ciudad Juarez, o conceito de feminicídio ganhou impulso.
Analisando esse contexto, Rita Segato interpreta a função expressiva das mortes sobretudo no âmbito da interlocução horizontal com os outros homens da fratria, com o grupo de pares, e com seus antagonistas. Segundo Segato, em Ciudad Juarez, matam-se mulheres para provar o pertencimento a um grupo e atacar os homens que as protegem. Na lógica que mata as mulheres, seus corpos são meros dejetos do processo.
Ainda não sabemos se a mesma tese se aplica à morte de meninas no Ceará. Em alguns casos fica evidente que sim, como as meninas que são “decretadas” por ter um relacionamento afetivo com antagonistas. A ordem mafiosa das facções é um dramático sintoma de uma opção política pelo encarceramento em massa e da falida “guerra às drogas”. Quando se debate a questão, pouca ênfase tem sido dada na dor das mulheres.
Mas se a morte é linguagem, Segato faz perguntas que também são pertinentes ao Ceará: “quem está falando? Para quem? O que está lhe dizendo? Qual é a língua do feminicídio? Qual o significante da violação?”[3]. Na busca dessas respostas em cada uma das vidas e mortes, encontram-se pistas sobre as operações de poder que determinam quais vidas importam e quais não importam, quem deve viver e quem deve morrer.
Faz parte da necropolítica brasileira a inibição já de longa data do luto público pela morte matada de mulheres e, por consequência, a capacidade de indignação diante delas, que se expressa até mesmo nos meios acadêmicos.
Lendo o clássico artigo de Michel Misse “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro” em que o autor desenvolve uma tese sobre a escalada do número de homicídios a partir da conformação de grupos de extermínio de “ladrões” nos anos 1950, chamou-me a atenção o seguinte trecho:
“Até meados dos anos 1950, os crimes mais comuns, aqueles que enchiam as delegacias de polícia, aqueles que produziam maior volumes de inquéritos policiais, aqueles que produziam maior volume de condenações, eram as contravenções penais e os crimes de menor gravidade: brigas com ferimentos leves, pequenos furtos, estelionato, todos crimes que não envolviam, necessariamente, violência como também, por exemplo, a sedução, o adultério, o lenocínio. (…) Esses eram os crimes que abundavam no Brasil nos anos 1950. Os crimes violentos, como o homicídio, eram principalmente os crimes de paixão, algumas vezes acompanhados do suicídio do assassino.”
Crimes de paixão ou um projeto de poder de aniquilar os corpos femininos para regular a vida das que restarem? Se a partir dos anos 1950, o discurso sintetizado em “bandido bom é bandido morto” legitima uma prática beligerante de extermínio sobretudo de homens negros, o feminicídio sempre esteve ali naturalizado como “crime passional”.
Ocorre que hoje no Ceará o racismo e o machismo tem se imbricado de uma maneira letal para muitas meninas. Vive-se hoje uma realidade bastante complexa e busca-se entender o que tem matado adolescentes para minimizar os fatores de risco e potencializar os fatores de proteção. Deve-se encontrar as chaves de compreensão nas histórias de vida das vítimas. Mas quem vai reconstruir essas histórias se já não se pode contar com suas vozes? Há de se buscar as interlocutoras entre as que sobreviveram e que criam resistência nos territórios onde a vida pulsa para fazer frente às máquinas de exceção e morte.
As notícias nos jornais falam sobre a morte mas não falam sobre a vida. Não falam sobre o que poderia ter sido diferente. Pensar nisso é um momento do luto. Quando perde-se alguém importante para nós, logo pensamos no que poderia ter acontecido ou deixado de acontecer para que a perda tivesse sido evitada. Trata-se de uma afirmação de que as vidas dessas meninas importam e seu luto não é tarefa apenas de suas familiares e amigas, mas da sociedade como um todo. Deve-se aprender com as vidas que foram tiradas.
Numa sociedade marcadamente adultocêntrica e profundamente racista e misógina, as respostas oficiais apressam-se em regular o luto ao afirmar que a maioria das mortes das adolescentes se deve ao “envolvimento com o tráfico”[4]. Põe-se em circulação novamente uma narrativa que culpabiliza a vítima por sua morte.
Ora, o recrutamento, oferta, recrutamento de adolescentes para produção e tráfico de drogas está entre as piores formas de trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Se adolescentes estão sendo utilizadas para o tráfico de drogas, isso deveria inspirar urgência no fortalecimento das medidas de prevenção e proteção ao invés de servir de álibi para desresponsabilização do poder público diante de suas mortes.
Na lógica de se desresponsabilizar pela morte de meninas e meninos, a rede de atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência vem se precarizando cada vez mais. Por exemplo, Fortaleza deveria ter 13 Centros de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS)[5], equipamento responsável pelo atendimento multidisciplinar de indivíduos e famílias em situação de violência; mas tem seis. Deveria ter 25 Conselhos Tutelares (CT)[6]; mas tem oito.
Quando o Estado só se faz presente em sua face violenta e extremamente frágil em suas instâncias que poderiam promover o cuidado, resta às redes familiares e comunitárias protagonizadas sobretudo por mulheres negras a tarefa de tornar possível a vida.
A necropolítica que se desenha na vida e morte das meninas no Ceará tem amalgamando as lógicas misóginas e racistas do espaço da intimidade, da violência institucional e urbana. No entanto, o trabalho de construção de vida tem sido feito pelas que sobrevivem. É preciso ouvi-las, criar espaços em que possam se expressar e elaborar suas reflexões e que nós adultas e adultos sejamos capazes de realmente escutar, entender suas necessidades e dialogar para uma proteção eficaz.
Dillyane de Sousa Ribeiro é mestranda em Estudos de Gênero pela Universidad Nacional de Colombia, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará) e membro do Fórum Permanente de Ong’s de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente do Ceará (Fórum DCA Ceará). Advogada.
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