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quarta-feira, 5 de junho de 2019

Autonomia financeira como saída para a violência doméstica

A dependência financeira é o principal motivo do silêncio de mulheres agredidas em casa. Ações de ONGs e políticas públicas que visam inserir vítimas no mercado de trabalho podem ajudar a quebrar o ciclo de violência.
Projeto RestaurAÇÃO capacitou profissionalmente oito mulheres vítimas de violência doméstica em Curitiba
Projeto RestaurAÇÃO capacitou profissionalmente oito mulheres vítimas de violência doméstica em Curitiba
03.06.2019
Laís Modelli
Nos anos 2000, a concierge Fernanda*, de São Paulo, sofreu por três anos seguidos violência psicológica, verbal e física de seu companheiro, com quem tinha uma filha de dois anos.

"Um dia estávamos no carro, e meu companheiro começou a mandar eu calar a boca. Vendo-o gritar, minha filha repetiu o que o pai dizia: 'Cala a boca'", lembra. "Outra vez, também durante uma briga, minha filha imitou o pai e me bateu. Decidi que, por ela, era hora de me separar."
A questão financeira, contudo, impedia a concierge de colocar um ponto final no relacionamento. "Eu trabalhava, mas dependia do salário do meu companheiro para complementar a renda e pagar a escolinha da nossa filha", conta a paulistana, que na época ganhava R$ 1.800.
Em 2009, Fernanda – diagnosticada com depressão durante o relacionamento abusivo – foi afastada do trabalho por causa do agravamento da doença mental. "Com o afastamento remunerado, pude economizar o dinheiro da escolinha e não depender, por ora, do salário do pai da minha filha. Era o que bastava para eu ter coragem de me livrar dele."
Fernanda contou com o apoio emocional e econômico da família durante a licença médica de um ano, conseguiu um segundo emprego e, pouco tempo depois, conquistou sua independência financeira. Em 2019 fez dez anos que ela se separou e se livrou da violência doméstica.
Mais da metade das mulheres que relatam ter sofrido violência doméstica não denunciou seu agressor, apontou um levantamento do Datafolha divulgado em fevereiro. Segundo o Ministério Público de São Paulo, a dependência financeira é o principal motivo do silêncio: uma em cada quatro vítimas não abandona ou denuncia o agressor porque depende financeiramente dele. 
"A violência doméstica não se relaciona somente com a renda e a dependência financeira, já que muitas mulheres bem-sucedidas profissional e economicamente também estão sujeitas a esse fenômeno", destaca Ana Carolina Querino, representante interina da ONU Mulheres Brasil. "Mas a dependência financeira dificulta a quebra do ciclo de violência doméstica, pois as mulheres, nesse caso, não contam com as condições materiais para seguir adiante."
Autonomia contra a violência
Pensando nas estatísticas, a restauradora artística Tatiana Zanelatto criou um projeto para capacitar vítimas de violência doméstica. "Trabalho há 15 anos com recuperação artística de paredes e tinha dificuldade para contratar mão de obra especializada. Então pensei que seria importante capacitar mulheres para atuarem profissionalmente nesse ramo", explica.
Em parceria com a ONG paranaense Unicultura, a restauradora criou em 2018 o projeto RestaurAÇÃO, que capacitou profissionalmente oito mulheres atendidas pela Casa da Mulher Brasileira, instituição de Curitiba que orienta e acolhe mulheres em situação de risco.
"Recebemos a candidatura de 60 mulheres para participar do projeto. Foram escolhidas, dentro das vagas, aquelas que combinavam interesse pelo tema, disponibilidade para as aulas, vulnerabilidade social e histórico de violência", explica o diretor da Unicultura, Ricardo Trento.
As escolhidas foram mulheres de 25 a 60 anos e com histórias de violência doméstica variadas. Um dos casos, por exemplo, é de uma mulher que deixou a casa da família com os dois filhos pequenos depois de eles terem sido maltratados por seu namorado.
"O grupo [de oito mulheres] passou por um curso de três meses, em que aprendeu restauração artística de paredes, assim como a trabalhar com pintura simples de superfícies, como é exigido na construção civil", conta Zanelatto.
Além da capacitação, as alunas receberam uma bolsa de R$ 800, auxílio-transporte e atendimento psicológico. No final do curso, em dezembro, as mulheres começaram a restaurar uma sala do Museu Casa Alfredo Andersen, na capital paranaense, que agora conta permanentemente com o trabalho das participantes do RestaurAÇÃO.
O projeto é o primeiro da ONG Unicultura voltado a mulheres em situação de risco. "Essa experiência abriu nossos olhos sobre a importância da capacitação profissional para uma maior autonomia financeira e, consequentemente, independência das mulheres", afirma Trento.
Segundo especialistas, a capacitação de vítimas de violência doméstica é importante porque expande as opções de atuação profissional dessas mulheres, que muitas vezes perdem o emprego em consequência da rotina de violência que sofrem no âmbito familiar.
"A violência doméstica traz efeitos negativos para a produtividade e rendimento das mulheres, para seus níveis de estresse e para sua capacidade de tomar decisões", explica Querino, da ONU Mulheres Brasil.
"Mulheres em situação de violência doméstica possuem salário cerca de 10% menor do que aquelas que não sofreram violência. Com relação à estabilidade no trabalho, elas têm, em média, uma queda de 22% na duração no emprego em relação às que não sofrem violência", acrescenta ela, citando uma pesquisa feita em 2016 pela Universidade Federal do Ceará e o Instituto Maria da Penha.
Programa da prefeitura de Goiânia capacita mulheres em situação de risco e vulnerabilidade
Programa da prefeitura de Goiânia capacita mulheres em situação de risco e vulnerabilidade
Políticas públicas
Por meio de convênios e parcerias com o governo federal e com as instituições Senac e Senai, a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Goiânia já capacitou mais de 800 mulheres em situação de risco e vulnerabilidade social entre 2012 e 2018.
"São mulheres com idade entre 18 e 65 anos e com renda familiar incompatível com as necessidades básicas que precisam ser supridas na família", afirma Ana Carolina Almeida, secretária municipal de Políticas para as Mulheres de Goiânia. "Chegamos a essas mulheres através das redes sociais da prefeitura e dos centros a vítimas de violência, como o Centro de Referência da Mulher Cora Coralina e a Casa Abrigo Sempre Viva, além de mutirões."
De acordo com Almeida, atualmente a secretaria oferece às vítimas de violência doméstica os cursos de assentamento de cerâmica, panificação, modelagem industrial para jeans, corte de tecidos para confecção de roupas, costura industrial e inclusão digital.
Em São Paulo, o programa Tem Saída é outro exemplo de política pública voltada à autonomia financeira de vítimas de violência doméstica. Com o apoio de empresas privadas sediadas na capital paulista, o programa é o único no Brasil a oferecer vagas de emprego exclusivamente para mulheres em situação de violência. 
"Ao ser atendida pelo sistema judiciário, a vítima é encaminhada ao Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe), equipamento da Prefeitura de São Paulo de inserção no mercado de trabalho", explica a secretária municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho, Aline Cardoso. "No CATe, uma equipe técnica fará o cadastro da mulher e uma pré-seleção para as vagas de emprego disponibilizadas pelas empresas parceiras."
Lançado em agosto de 2018, o Tem Saída já atendeu 352 mulheres em situação de risco. "Dessas, 307 foram encaminhadas para uma seleção de emprego, e 37 conquistaram uma vaga de emprego", informa Cardoso.
*Nome fictício para preservar a identidade da vítima

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