A dependência financeira é o principal motivo do silêncio de mulheres agredidas em casa. Ações de ONGs e políticas públicas que visam inserir vítimas no mercado de trabalho podem ajudar a quebrar o ciclo de violência.
Projeto RestaurAÇÃO capacitou profissionalmente oito mulheres vítimas de violência doméstica em Curitiba
03.06.2019
Laís Modelli
Nos anos 2000, a concierge Fernanda*, de São Paulo, sofreu por três anos seguidos violência psicológica, verbal e física de seu companheiro, com quem tinha uma filha de dois anos.
"Um dia estávamos no carro, e meu companheiro começou a mandar eu calar a boca. Vendo-o gritar, minha filha repetiu o que o pai dizia: 'Cala a boca'", lembra. "Outra vez, também durante uma briga, minha filha imitou o pai e me bateu. Decidi que, por ela, era hora de me separar."
"Um dia estávamos no carro, e meu companheiro começou a mandar eu calar a boca. Vendo-o gritar, minha filha repetiu o que o pai dizia: 'Cala a boca'", lembra. "Outra vez, também durante uma briga, minha filha imitou o pai e me bateu. Decidi que, por ela, era hora de me separar."
A questão financeira, contudo, impedia a concierge de colocar um ponto final no relacionamento. "Eu trabalhava, mas dependia do salário do meu companheiro para complementar a renda e pagar a escolinha da nossa filha", conta a paulistana, que na época ganhava R$ 1.800.
Em 2009, Fernanda – diagnosticada com depressão durante o relacionamento abusivo – foi afastada do trabalho por causa do agravamento da doença mental. "Com o afastamento remunerado, pude economizar o dinheiro da escolinha e não depender, por ora, do salário do pai da minha filha. Era o que bastava para eu ter coragem de me livrar dele."
Fernanda contou com o apoio emocional e econômico da família durante a licença médica de um ano, conseguiu um segundo emprego e, pouco tempo depois, conquistou sua independência financeira. Em 2019 fez dez anos que ela se separou e se livrou da violência doméstica.
Mais da metade das mulheres que relatam ter sofrido violência doméstica não denunciou seu agressor, apontou um levantamento do Datafolha divulgado em fevereiro. Segundo o Ministério Público de São Paulo, a dependência financeira é o principal motivo do silêncio: uma em cada quatro vítimas não abandona ou denuncia o agressor porque depende financeiramente dele.
"A violência doméstica não se relaciona somente com a renda e a dependência financeira, já que muitas mulheres bem-sucedidas profissional e economicamente também estão sujeitas a esse fenômeno", destaca Ana Carolina Querino, representante interina da ONU Mulheres Brasil. "Mas a dependência financeira dificulta a quebra do ciclo de violência doméstica, pois as mulheres, nesse caso, não contam com as condições materiais para seguir adiante."
Autonomia contra a violência
Pensando nas estatísticas, a restauradora artística Tatiana Zanelatto criou um projeto para capacitar vítimas de violência doméstica. "Trabalho há 15 anos com recuperação artística de paredes e tinha dificuldade para contratar mão de obra especializada. Então pensei que seria importante capacitar mulheres para atuarem profissionalmente nesse ramo", explica.
Em parceria com a ONG paranaense Unicultura, a restauradora criou em 2018 o projeto RestaurAÇÃO, que capacitou profissionalmente oito mulheres atendidas pela Casa da Mulher Brasileira, instituição de Curitiba que orienta e acolhe mulheres em situação de risco.
"Recebemos a candidatura de 60 mulheres para participar do projeto. Foram escolhidas, dentro das vagas, aquelas que combinavam interesse pelo tema, disponibilidade para as aulas, vulnerabilidade social e histórico de violência", explica o diretor da Unicultura, Ricardo Trento.
As escolhidas foram mulheres de 25 a 60 anos e com histórias de violência doméstica variadas. Um dos casos, por exemplo, é de uma mulher que deixou a casa da família com os dois filhos pequenos depois de eles terem sido maltratados por seu namorado.
"O grupo [de oito mulheres] passou por um curso de três meses, em que aprendeu restauração artística de paredes, assim como a trabalhar com pintura simples de superfícies, como é exigido na construção civil", conta Zanelatto.
Além da capacitação, as alunas receberam uma bolsa de R$ 800, auxílio-transporte e atendimento psicológico. No final do curso, em dezembro, as mulheres começaram a restaurar uma sala do Museu Casa Alfredo Andersen, na capital paranaense, que agora conta permanentemente com o trabalho das participantes do RestaurAÇÃO.
O projeto é o primeiro da ONG Unicultura voltado a mulheres em situação de risco. "Essa experiência abriu nossos olhos sobre a importância da capacitação profissional para uma maior autonomia financeira e, consequentemente, independência das mulheres", afirma Trento.
Segundo especialistas, a capacitação de vítimas de violência doméstica é importante porque expande as opções de atuação profissional dessas mulheres, que muitas vezes perdem o emprego em consequência da rotina de violência que sofrem no âmbito familiar.
"A violência doméstica traz efeitos negativos para a produtividade e rendimento das mulheres, para seus níveis de estresse e para sua capacidade de tomar decisões", explica Querino, da ONU Mulheres Brasil.
"Mulheres em situação de violência doméstica possuem salário cerca de 10% menor do que aquelas que não sofreram violência. Com relação à estabilidade no trabalho, elas têm, em média, uma queda de 22% na duração no emprego em relação às que não sofrem violência", acrescenta ela, citando uma pesquisa feita em 2016 pela Universidade Federal do Ceará e o Instituto Maria da Penha.
Políticas públicas
Por meio de convênios e parcerias com o governo federal e com as instituições Senac e Senai, a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Goiânia já capacitou mais de 800 mulheres em situação de risco e vulnerabilidade social entre 2012 e 2018.
"São mulheres com idade entre 18 e 65 anos e com renda familiar incompatível com as necessidades básicas que precisam ser supridas na família", afirma Ana Carolina Almeida, secretária municipal de Políticas para as Mulheres de Goiânia. "Chegamos a essas mulheres através das redes sociais da prefeitura e dos centros a vítimas de violência, como o Centro de Referência da Mulher Cora Coralina e a Casa Abrigo Sempre Viva, além de mutirões."
De acordo com Almeida, atualmente a secretaria oferece às vítimas de violência doméstica os cursos de assentamento de cerâmica, panificação, modelagem industrial para jeans, corte de tecidos para confecção de roupas, costura industrial e inclusão digital.
Em São Paulo, o programa Tem Saída é outro exemplo de política pública voltada à autonomia financeira de vítimas de violência doméstica. Com o apoio de empresas privadas sediadas na capital paulista, o programa é o único no Brasil a oferecer vagas de emprego exclusivamente para mulheres em situação de violência.
"Ao ser atendida pelo sistema judiciário, a vítima é encaminhada ao Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe), equipamento da Prefeitura de São Paulo de inserção no mercado de trabalho", explica a secretária municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho, Aline Cardoso. "No CATe, uma equipe técnica fará o cadastro da mulher e uma pré-seleção para as vagas de emprego disponibilizadas pelas empresas parceiras."
Lançado em agosto de 2018, o Tem Saída já atendeu 352 mulheres em situação de risco. "Dessas, 307 foram encaminhadas para uma seleção de emprego, e 37 conquistaram uma vaga de emprego", informa Cardoso.
*Nome fictício para preservar a identidade da vítima
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