No país que aboliu o termo de documentos de políticas públicas e que instituiu no mês de maio uma data de mobilização contra a mortalidade materna, o silêncio pode colocar em risco a vida de mais mulheres, avalia especialista em saúde pública da Universidade Federal da Paraíba
Em 1994, a morte de gestantes no país motivou a criação do Dia Nacional pela Redução da Mortalidade Materna, celebrado em 28 de maio. Segundo os números mais recentes do Sistema Único de Saúde (SUS) , em 2017 foram registrados 1.718 óbitos maternos no país. Ou seja, a cada dia, quatro mulheres morreram em consequência de complicações na gestação, parto e pós-parto.
“Temos um grande índice de mortalidade materna, porque temos um alto número de casos de violência obstétrica. A morte materna é o ápice da violência obstétrica. Por isso, se enfrentarmos esta questão, sem negligenciar ou esconder esse termo, nós também iremos diminuir mortes maternas”, explica a professora Waglânia Freitas, doutora em Saúde Pública e enfermeira obstétrica da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e presidente da Associação de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras no estado (ABENFO-PB). Ainda assim, no início do mês o Ministério da Saúde decidiu abolir a expressão “violência obstétrica” de documentos oficiais e campanhas. Em uma conversa didática e contextualizada, Freitas falou com a Gênero e Número sobre a situação da mortalidade materna no país e sobre o impacto da decisão do ministro Luiz Henrique Mandetta.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Gênero e Número: Uma em cada quatro mulheres no Brasil já sofreu violência obstétrica, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo e do Sesc. O que é violência obstétrica e como essa violência ocorre na prática?
Waglânia Freitas: Violência obstétrica é qualquer violência que ocorra no transcurso da gravidez, trabalho de parto e pós-parto, e que venha a trazer qualquer dano físico, emocional ou psíquico para a mulher. Atualmente, também temos falado de violência obstétrica contra o neonato [termo obstétrico para se referir ao feto ou ao recém-nascido], já que a violência contra a mulher também traz sérios danos à vida de seu filho. O Brasil tem esse dado amargo mostrado pela pesquisa. É um dado epidêmico, que precisa ser olhado com muita atenção.
Ela acontece na prática, no dia a dia, quando exames pré-natal são negados, quando o acompanhante não pode estar ao lado da gestante na gravidez e no trabalho de parto. Muitos profissionais também usam expressões grosseiras que geram dor e sofrimento mental e psicológico para as mulheres, como “se você não ajudar seu filho vai morrer”, “você tem a bacia muito larga, então é uma boa parideira”, “ você não gritou na hora de fazer, por que está gritando agora?”.
Do ponto de vista físico, a violência obstétrica também engloba o uso da ocitocina [hormônio que contribui para gerar contrações] na fase de pré-parto, sem indicação rigorosa e clara. Muitas mulheres chegam à unidade de saúde e são colocadas no soro, com o remédio, para agilizar o trabalho de parto. Hoje, pesquisas já apontam que o máximo o que acontece é uma redução de 20 a 30 minutos na duração do processo. A mulher sofre com as mesmas dores, o risco de hemorragia pós-parto aumenta, bem como o risco de redução de oxigênio para o bebê.
Outro tipo de violência obstétrica é o corte na vagina, chamado episiotomia. Embora a Organização Mundial de Saúde reconheça que não há justificativa clara para sua realização, ela recomenda que no máximo 15% das mulheres que passam por parto normal sejam submetidas a este tipo de intervenção. É muito importante que essa intervenção seja comunicada e acordada com a mulher. Caso o procedimento seja realizado, deve ser feita sutura utilizando anestesia local, orientando e respeitando a paciente e sua anatomia. Ao receberem a sutura, muitas mulheres recebem o chamado “ponto do marido”, que causa uma diminuição do diâmetro da vagina para produzir mais prazer para os homens, tornando-se um verdadeiro desastre na vida sexual dessas mulheres.
Quais as consequências da violência obstétrica para a vida das mulheres?
As mais imediatas são o aumento do risco de hemorragias, de depressão pós-parto, dificuldade de adaptação no puerpério, e mesmo de vinculação com a criança. , porque depois de sofrer violência, ela pode começar a associar a experiência de parto com o bebê que está ali. Esse processo pode ainda dificultar a amamentação.
A médio e longo prazo, a violência obstétrica pode trazer sérios danos a essa mulher em sua vida sexual. Ela podem ter dificuldades ou não conseguir restabelecê-la após o nascimento do filho, vivenciando conflitos no pós-parto com seus companheiros. Essa é uma questão bem importante, que traz sérios comprometimentos. Além disso, a mulher pode ter um comprometimento na questão reprodutiva. Muitas gestantes que passaram por uma experiência negativa na gravidez, em decorrência da violência obstétrica, não querem ter mais filhos. A depender da intervenções que essa mulher foi submetida, ela pode perder o útero e, como consequência mais grave, morrer.
Quais as consequências da abolição do termo violência obstétrica pelo Ministério da Saúde? Como esta decisão pode afetar políticas públicas?
Do ponto de vista das políticas públicas, o grande problema da abolição do termo é o desconhecimento das pessoas sobre o problema. Se o termo e o seu significado não são reconhecidos, a mulher não vai fazer a denúncia. Na área de assistência à saúde, quando uma mulher for na ouvidoria fazer uma denúncia, o termo não vai mais existir no rol de procedimentos ou queixas. É um grande erro. O fato não vai deixar de existir porque o termo foi abolido. Não é porque não há intencionalidade que não há violência obstétrica.
Eu compreendo que a abolição desse termo também tenha outra razão. As mulheres têm se empoderado, se apropriado do próprio corpo, feito denúncias e procurado estratégias de enfrentar a violência. Elas buscam outros caminhos para ter acesso a um parto mais respeitoso. O movimento Parto do Princípio afirma que “parto violento vem de cesárea”. Então retirar o termo violência obstétrica também é mascarar esse fenômeno no Brasil. Atualmente somos o segundo país com maior taxa de cesarianas do mundo.
A Gênero e Número mostrou que a cada 100 mil internações de mulheres pretas para parto, 22 morrem. O número cai para a metade quando a paciente é branca. Como a questão racial contribui para a desigualdade no sistema de saúde?
A questão racial permeia todo o sistema de saúde. A situação das mulheres negras é muito mais séria e gritante. O que faz com que mulheres negras sofram mais violência e sejam submetidas a mais intervenções e menos cuidados é o racismo e o mito da mucama, de que a mulher negra é forte, de que aguenta dor e sofrimento. A partir desse mito, o processo de assistência dessas mulheres acaba por expô-las a maior risco, aumentando a mortalidade materna.
A morte materna comove, mas não mobiliza, embora o impacto seja enorme, tanto para a criança que fica, quanto para a família que vai receber essa órfã de mãe. As mulheres negras têm o direito ao acompanhante negado com mais frequência, bem como o acesso à analgesia de parto e a métodos de alívio da dor reduzidos. O problema é muito sério. E isso tem tudo a ver com a desigualdade do sistema de saúde e fora dele. Essa é uma questão que precisamos olhar com muito cuidado e não perder o ânimo de manter o enfrentamento à violência, porque são as negras e pobres que morrem mais nesse sistema.
Quais os canais mais eficientes para denunciar essas agressões?
As denúncias devem ser feitas pelo Disque 136, serviço de ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS), e junto ao Ministério Público Estadual e Federal. Como no Brasil não temos a tipificação da violência obstétrica, não há uma lei federal que criminalize esses procedimentos e abordagens. É importante destacar ainda que a violência em situações de aborto precisa ser denunciada e também é considerada violência obstétrica. Na Paraíba, conseguimos instituir desde 2017 o Fórum Interinstitucional de Enfrentamento à Violência Obstétrica, em que recebemos relatos de mulheres e discutimos ações de enfrentamento.
O que precisa ser feito para prevenir ou diminuir os casos?
A melhor forma de prevenir a violência obstétrica é a educar, dar conhecimento à população, principalmente às mulheres. Um caminho que tem dado certo em outros países e em cidades brasileiras onde há casas e centros de parto é mostrar às mulheres seus direitos desde o pré-natal e conversar sobre violência obstétrica, além de construir um plano de parto com elas, em que tomem as decisões entendendo o que cada passo significa. Além disso, é preciso ter um modelo colaborativo de cuidados, com a participação de enfermeiras, obstetras e parteiras, além de separar o processo de cuidado por classificação de risco. Também é importante articular com deputados e vereadores a aprovação de Lei das Doulas em todos os municípios e estados. Na Paraíba temos uma lei estadual e uma municipal, em João Pessoa, que garantem à mulher no sistema público e privado o acesso à doula.
Outro elemento importante é a capacitação dos profissionais que estão no processo de cuidado. É preciso capacitar, instruir e utilizar principalmente as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal como base para criação de protocolos nas maternidades. Nós temos um grande índice de mortalidade materna, porque temos um alto número de violência obstétrica. Para cada uma mulher que morre, 35 adoecem ou ficam com sequelas. A morte materna é o ápice da violência obstétrica. Por isso, se enfrentarmos a violência obstétrica, sem negligenciar nem esconder esse termo, nós também iremos diminuir mortes maternas.
* Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número
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