Alteridade no direito: que chances terá um jovem preto da periferia que comparece à audiência algemado, em vestimentas laranjas, chamando a juíza de “tia”?
Por Victor Hugo Siqueira de Assis
Quarta-feira, 12 de junho de 2019
Mia Couto é um autor que dispensa maiores apresentações. Biólogo, jornalista e literato, transita magistralmente entre a poesia, o conto e o romance. Seus escritos ecoam espíritos de uma Moçambique mítica, impregnada de uma ancestralidade africana calcada nas tradições orais, mas também fruto de um sistema colonial que deixou marcas indeléveis. Sua primeira incursão na prosa se deu com o livro Vozes Anoitecidas (1987) [1]. A obra reúne doze narrativas, tendo o conto Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? me chamado bastante atenção. A partir dele foram problematizadas as questões abordadas nesse texto.
À primeira vista, pode parecer inadequado utilizar um trabalho literário de Mia Couto para refletir sobre a realidade social e judicial brasileira. De fato, uma pergunta salta à mente: quais contribuições um literato africano poderia nos propiciar que um autor brasileiro não faria de forma mais apropriada? Existem pensadores extremamente importantes e estudos de fôlego no Brasil para que se busque respostas além-mar. Contudo, proponho observar o cenário sob uma perspectiva diferente, apartada de um suposto anacronismo espacial.
À primeira vista, pode parecer inadequado utilizar um trabalho literário de Mia Couto para refletir sobre a realidade social e judicial brasileira. De fato, uma pergunta salta à mente: quais contribuições um literato africano poderia nos propiciar que um autor brasileiro não faria de forma mais apropriada? Existem pensadores extremamente importantes e estudos de fôlego no Brasil para que se busque respostas além-mar. Contudo, proponho observar o cenário sob uma perspectiva diferente, apartada de um suposto anacronismo espacial.
Quando analisamos cenários e períodos históricos distintos aos que estamos inseridos, somos capazes de exercitar a abstração de forma mais efetiva, extraindo conclusões oportunas que, muitas vezes, não se delineariam diante da imersão no contexto vivido. Assim, ao confrontar esses diferentes quadros, mais do que realidades ligadas por um idioma comum, visualizamos vínculos partilhados que remetem à indiferença, ao descaso e à exclusão.
O conto Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? narra a história de um homem que, acreditando que sua esposa era afeita à feitiçaria, fantasiando-se de animal durante a noite em seu vilarejo, ataca-a com água fervente a fim de verificar se as suspeitas se confirmariam, terminando por matá-la.
Estruturada em quatro partes, a história se desenvolve da seguinte forma: o narrador, que não recorda mais o próprio nome (agora era apenas algarismos), resultado de uma despersonalização após seis anos no cárcere, escreve quatro cartas ao seu advogado. Elas são tratadas em capítulos próprios, onde são expostas a dinâmica do evento, os motivos que ensejaram o suposto delito, a confissão do fato e o deslocamento sentido pelo narrador ao ser colocado diante de um sistema de justiça que não reconhece e pelo qual não é compreendido.
Esse homem simplório, oriundo de uma localidade africana que muito parece um povoado do Nordeste brasileiro, personifica o rústico que, preso no embate entre o mundo tradicional e o moderno, nunca consegue se fazer inteiro:
“Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências.” [2]
A sensação de desalento sentida pela personagem é evidenciada logo no início da primeira carta quando se dirige ao advogado contratado para fazer sua defesa:
“O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa, doutor?” [3]
Interessante notar que o narrador, apesar de ter consciência de que matou sua esposa, jamais admite que cometeu um crime. Para ele, a partir das crenças professadas na localidade a que pertence, o que ocorreu foi um triste engano: “O senhor pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita.” [4]
Outro fator acentuado pelo texto é o de que a personagem, em que pese entender que suas ações possam ser justificadas a partir da cultura por ela vivenciada, arrepende-se do ocorrido e deseja ser punida:
“De escrever me cansei das letras. Vou ultimar aqui. Já não preciso defesa, doutor. Sou culpado. Quero ser punido, não tenho outra vontade. Não por crime, mas pelo meu engano. Há seis anos me entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu me condeno.” [5]
No final, encontra-se a parte mais relevante do conto para a análise aqui empreendida. É quando o narrador expõe todo o seu desconforto em ser julgado não pelos seus pares, mas por quem não entende sua cultura, seus modos de vida e suas motivações. Isso vale, inclusive, para o próprio advogado responsável pela sua defesa. Uma justiça que é incapaz de se colocar em seu lugar e buscar compreender os conflitos de sua gente, não passa de injustiça:
“Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar minha vida a este mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar.” [6]
O conto em apreço permite esboçar debates extremamente interessantes sobre uma diversidade de assuntos. Trazendo a discussão para o âmbito nacional, tem-se que tanto o cenário quanto a personagem principal se assemelham bastante às localidades rurais que se espraiam pelo nosso país. De norte a sul, o campo mantém raízes bem fincadas e ainda resiste aos influxos mais modernizadores. Por isso, a sensação de não pertencimento a uma nova realidade que lhes é imposta tem se mostrado constante, notadamente na seara judicial.
Primeiramente, o desconhecimento acerca de direitos básicos é a tônica. Com uma educação formal praticamente inexistente e a ausência do poder público na figura de órgãos como a Defensoria Pública, ainda inacessível para a maior parte da população, o acesso à justiça se mostra uma promessa distante. Por outro lado, mesmo nos locais onde existe atuação da Defensoria Pública, levando educação em direitos e uma conscientização maior acerca dos ditames constitucionais, o choque cultural se mostra uma barreira ainda difícil de transpor.
O ambiente jurídico é permeado por códigos de conduta específicos, regras de vestimenta rígidas, vocabulário técnico pomposo. A própria arquitetura de um fórum ou a organização de uma sala de audiências/tribunal do júri contribuem para o distanciamento da população mais simples. Qual ator do sistema de justiça nunca presenciou uma pessoa pobre ser barrada na entrada do fórum por estar trajando bermudas ou chinelos ou ter esquecido seu documento de identidade? Quem nunca viu uma testemunha necessitada se sentir acuada por não responder às perguntas feitas em audiência quando ela sequer compreendia o teor do questionamento? E a repreensão por não tratar determinadas personagens por “excelência”?
Além disso, se não conseguimos nos colocar no lugar do outro, como atender, conciliar e julgar situações que nos passam completamente ao largo? Lembro de um caso em que atuei na sede da Defensoria Pública na cidade de Icatu-MA, onde buscava conciliar dois ex-companheiros em relação ao valor da pensão alimentícia para os três filhos. O pai ofertava R$ 30,00. A mãe pedia R$ 80,00. Na minha cabeça, aquilo soava absurdo. Como alguém conseguiria sustentar três crianças com R$ 80,00 mensais? Indignado, primeiro com o pai e depois com a mãe, acabei iniciando uma lição de moral que não me cabia. Foi quando a mãe me interrompeu e disse algo como: “doutor, sei que o senhor quer ajudar. Mas, pelo visto, não tem noção de como as coisas funcionam por aqui. Até três meses atrás, vivíamos juntos e nossa renda mensal girava em torno de R$ 250,00. Um acordo em R$ 80,00 seria uma benção. Ele não tem como pagar mais do que isso.” Envergonhado, prosseguimos com a sessão de conciliação, que acabaria em um acordo no valor de R$ 60,00.
Apesar de mais acentuado, não é apenas no cenário interiorano que essas práticas excludentes são verificadas. No contexto urbano, a segregação de determinados grupos sociais é de fácil observação e a falta de conhecimento acerca das peculiaridades a eles inerentes influenciam diretamente a forma como encaram o sistema de justiça e a maneira pela qual são por ele considerados.
O espaço citadino possui regras próprias à medida que se distancia do seu centro. Zonas de incumprimento do Direito estatal proliferam, culminando em ordens paralelas. Esses regimes podem ser de origem comunitária, religiosa ou criminosa. A lógica da exclusão sociogeográfica determina de que forma os indivíduos nela inseridos podem e devem se comportar. Os vácuos deixados pela ausência estatal não demoram a ser preenchidos.
Além do aspecto geográfico relativo à periferia, diversos grupos minoritários também se encaixam nesse cenário de segregação, muitas vezes de forma sobreposta. É o caso do movimento negro que, apesar de congregar diversas vertentes e formas de atuação, pauta como objetivos primordiais a luta contra o racismo e a busca pela igualdade, seja através de políticas administrativas, pautas legislativas ou através do Poder Judiciário. Um exemplo elucidativo dessas dificuldades é o das cotas raciais para universidades e concursos públicos. Chamado a se manifestar diante de violações aos direitos dos possíveis cotistas, não foram raros os pronunciamentos judiciais que reconheciam a política afirmativa como inconstitucional ou fruto de um suposto “racismo reverso”. Se diante de uma questão amplamente debatida e alicerçada em critérios científicos, a resposta judicial vem nessa toada, quais chances terá um jovem preto da periferia, que comparece à audiência algemado, em vestimentas laranjas, utilizando um linguajar próprio, e chamando a juíza de “tia”? A partir daquele momento, o ônus da prova se inverte. Ele terá que provar que debaixo de toda aquela couraça marginalizada existe alguém que merece o benefício da dúvida.
É por situações como essas que, para uma prestação jurisdicional mais justa, é preciso que se pratique a alteridade, tanto dentro quanto fora do processo. Apenas com a exata compreensão das singularidades e agruras enfrentadas pelos grupos minoritários, sejam eles o movimento negro, as comunidades periféricas, os povos tradicionais, as populações LGBTQI+, as mulheres (não apenas as vítimas de violência), é que o Direito deixará de ser visto apenas como um instrumento de poder.
Esses são alguns exemplos acerca desses “mundos que não se encostam”. Faltam aos juízes, promotores, defensores públicos, advogados, mais empatia com aqueles a quem devem servir. O encastelamento em gabinetes ou escritórios herméticos, blindados aos odores e ruídos das ruas, contribuem cada vez mais para o distanciamento e para uma violência simbólica exercida pelo mundo jurídico.
Cumpre esclarecer que o intuito destas reflexões não é o de promover o reconhecimento de um relativismo cultural frente ao universalismo dos direitos humanos, muito menos de minimizar ou romantizar um delito de homicídio cometido no conto tratado no início do texto, especialmente no que tange à violência contra a mulher, de todo execrável e que precisa ser combatida. O que se pretende é indicar que, apesar de não se poder utilizar o argumento do desconhecimento da lei para não cumpri-la, nosso país é constituído de realidades plurais, onde o contexto social precisa ser levado em consideração de forma séria e empática na resolução de conflitos e na implementação de políticas públicas.
Victor Hugo Siqueira de Assis é mestrando em Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Maranhão. Defensor Público do Estado do Maranhão.
Notas:
[1] COUTO, Mia. Vozes Anoitecidas. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[2] Ibid., p. 75.
[3] Ibid., p. 75.
[4] Ibid., p. 81.
[5] Ibid., p. 82.
[6] Ibid., p. 84.
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