Em 2016, o Brasil registrou que 55,6% dos partos foram cesáreas, ocupando o segundo lugar no mundo, perdendo apenas para a República Dominicana com 56%. A OMS considera que a taxa ideal seria entre 10% a 15% dos partos.
Está em discussão acelerada na Assembleia Legislativa de São Paulo o PL 435/2019, de autoria da deputada Janaína Paschoal, com a proposta de garantir à gestante a opção pela cesárea a partir da 39ª semana de gestação, bem como analgesia, na opção pelo parto normal.
Não vou discutir aqui os riscos e desdobramentos negativos da realização de uma cirurgia de grande porte, como a cesárea, sem necessidade, nem como o parto normal é a via mais indicada para mãe e nascituro. Também não farei um recorte social, de como o acesso à saúde entre a mulher pobre e rica é separado por um abismo, amplificado no período da gestação e maternidade. Não vou comentar como a cesárea eletiva é mais cômoda para médicos, mais lucrativa para os hospitais e planos de saúde, e até mais conveniente para o empregador da mãe trabalhadora.
Todos os assuntos são pertinentes e merecem extensas análises. Análises que deveriam ter sido feitas para a criação de um projeto de lei que trata sobre vias de parto e, supostamente, sobre autonomia da mulher, mas parte de pressupostos deturpados, como o de que “a maioria” impõe a convicção de que o parto normal é a única via de parto que deve ser respeitada.
A PL 435/2019 tem seis curtos parágrafos que versam resumidamente do direito da parturiente em escolher a via de parto, respeitando sua autonomia. Inclusive, consta do art. 1º, § 1º que a parturiente deverá ser conscientizada e informada acerca dos benefícios do parto normal e riscos de sucessivas cesarianas, caso opte por cesárea.
A justificativa se mostra um discurso acalorado em defesa da autonomia das mulheres que também devem ter o direito de optar pelo parto cesariano. A autora do projeto argumenta que os formadores de opinião têm defendido o parto normal, sem respeitar verdadeiramente as mulheres que optam pela cesárea eletiva. Esse mesmo grupo de “defensores pelo parto normal” frequentemente denunciam como violência obstétrica a má indicação de cesáreas, sem entender como violência, segundo a deputada, os desejos não atendidos das mulheres que pedem pela realização da cirurgia na rede pública de saúde.
Os dados de cesárea no Brasil já são conhecidos. Em 2016, o país registrou que 55,6% dos partos foram cesáreas, ocupando o segundo lugar em taxas de cesáreas no mundo, perdendo apenas para a República Dominicana com 56%.
A OMS – Organização Mundial de Saúde – considera que a taxa ideal de cesáreas no mundo seria entre 10% a 15% dos partos. Essa taxa foi estabelecida por um grupo de especialistas em saúde reprodutiva durante uma reunião promovida pela OMS em 1985, em Fortaleza, e foi baseada na análise de poucos dados disponíveis na época – provenientes principalmente de países europeus.
Em 2014, a OMS realizou novo estudo para definir qual a taxa mínima de cesáreas com indicação médica que ao mesmo tempo evite cirurgias desnecessárias, reavaliando os dados produzidos nesses últimos 30 anos. Segundo a declaração publicada em 2015, a definição percentual não é muito fácil de se apurar, mas o estudo demonstrou que taxas de cesárea maiores que 10% não estão associadas com redução de mortalidade materna e neonatal.
Na rede de saúde suplementar, os números são mais impactantes. Em 2015, foram realizados 569.118 partos na rede credenciada, em todo o País. Desse total, 481.571 ocorreram por cirurgias cesarianas, o que corresponde a 84,6% do total de nascimentos realizados na saúde suplementar. Comparando com o ano de 2014, houve queda de 1% na taxa de cesarianas realizadas pelos planos de saúde. As informações são da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Diante desses dados, um projeto que pretende garantir à mulher sua autonomia para a escolha do parto cesáreo perderia o objeto, já que, documentalmente, já é a via de parto mais realizada no país. Porém, se a pretensão é garantir a autonomia da mulher para um parto respeitoso, em que não lhe neguem atendimento digno e humanizado, faz-se necessária uma análise profunda sobre a questão social, sobre a estrutura da saúde pública no país, sobre a conscientização de profissionais de saúde sobre a fisiologia do parto e do corpo feminino, sobre a questão da violência obstétrica.
Mas, o que é violência obstétrica?
Não faz um mês que o Ministério da Saúde proibiu o uso do termo violência obstétrica em normas e políticas públicas, usando como justificativa que o termo tem “conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado”. A expressão seria imprópria, “pois acredita-se que, tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”.
Bom, talvez a intenção da autora da PL 435/2019 também não seja de prejudicar ou causar dano. Mas se o objetivo é garantir a autonomia das mulheres no momento do parto, seja cesárea ou normal, porque não conceituar e proibir a violência obstétrica, para que o parto seja respeitoso independentemente da via?
Porque a violência obstétrica tem um sujeito causador do dano.
Conceituar juridicamente a violência obstétrica é ter mais ferramentas institucionais para lutar contra ela. Sem legislação, deixamos a critério dos juízes decidirem se a mulher parturiente sofreu violência ou passou por um mero dissabor da vida, afinal, o médico só quer ajudar e as mulheres não sabem parir. Inclusive, porque ela não escolheu cesárea?
Na justificativa do projeto de lei, a deputada menciona a violência obstétrica como se fosse uma bandeira exclusiva dos “grupos que defendem que o parto normal e o parto natural são melhores que a cesárea”, apresentando, como solução, o favorecimento da ampliação da cesárea eletiva, como se essa via de parto estivesse blindada da violência.
No entanto, é impossível regular via de parto, utilizando como princípio elementar a autonomia da mulher, sem regular primeiramente o conceito de violência obstétrica.
É falacioso achar que a cesárea eletiva protege a mulher de sofrer violência obstétrica, uma vez que o problema não se encontra na via de parto, nem na escolha da mulher pela analgesia ou não. O problema é estrutural e reside, verdadeiramente, na ausência de autonomia das mulheres sobre seus corpos na sociedade patriarcal em que vivemos.
A verdadeira construção da autonomia da mulher exige uma rede de políticas públicas voltadas para o seu empoderamento. Requer uma rede de saúde pública ampla e eficiente, com profissionais capacitados e humanizados, que não neguem analgesia para mulheres negras e pobres, que realize exames pré-natais tempestivamente, que acolham mulheres em situação de violência e vulnerabilidade. Deve possibilitar a ampliação de programas de redistribuição de renda, para que as mulheres tenham mais independência financeira na estrutura familiar. Buscar a ampliação de direitos e garantias trabalhistas às mães que precisam se inserir ou retornar ao mercado de trabalho, incluindo a garantia e acesso a creches públicas de qualidade. Garantir a ampliação de políticas de seguridade social para as mães que não tem a possibilidade de trabalhar fora de casa. Possibilitar a criação de redes de apoio para a gestante e puérperas, contando com psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais pertinentes. Reconhecer a regulamentação das doula, profissionais que comprovadamente reduzem os índices de cesáreas e intervenções no parto quando prestam seu suporte. Ampliar casas de parto no país, o fortalecimento da profissão das obstetrizes e enfermeiras obstétricas, bem como dos médicos de família, que atuem nas comunidades mais carentes. E, se tratando da discussão sobre a autonomia dos corpos femininos, exige, por fim, a legalização do aborto.
Fingir de autonomia algo que se trata de violência estrutural não é um projeto que pode ser admitido. O que pretendem é calar os gritos da violência responsabilizando a mulher por escolhas nada autônomas, desde a concepção.
Mariana Teresa Galvão é formada em direito pela Universidade de São Paulo, assistente jurídica no Ministério Público do Trabalho. Mãe do Emílio, e pesquisadora sobre maternidade e direito das mães.
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