Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

TRABALHO DO PAI VISTO COMO MAIS EXAUSTIVO SUBVALORIZA O CUIDAR

Neste domingo, Dia dos Pais, a mensagem é: todos os pais deveriam estar aptos e disponíveis para acordar de madrugada
GIULLIANA BIANCONI
11/08/2019
Época

O debate sobre parentalidade tem ganhado espaço, principalmente em bolhas privilegiadas, influenciando também comportamentos, gerando novas referências para os homens Foto: bernie_photo / Getty Images

O debate sobre parentalidade tem ganhado espaço, principalmente em bolhas privilegiadas, influenciando também comportamentos, gerando novas referências para os homens Foto: bernie_photo / Getty Images
Aconteceu há alguns anos, mas poderia ter sido ontem: fui visitar uma amiga que acabara de ser mãe. Não nos víamos há anos. Cheguei à casa dela num fim de tarde, o bebê de dois meses dormia e ela estava exausta. Senti que mesmo assim ela gostou da minha presença. Fomos amigas muito próximas na infância e na adolescência. Na sala, conversamos amenidades, relembramos histórias, ela contou como estavam sendo difíceis as madrugadas e, em algum momento, eu fiz a fatídica pergunta: "Mas e seu marido?” Foi então que obtive como resposta: “Não tenho coragem de incomodá-lo durante a noite porque ele trabalha o dia todo”. Eu recostei no sofá.

Observei o contexto. Ela contava com uma empregada doméstica, então não acumulava o limpar e arrumar a casa e ainda cuidar do filho. Mas existe uma carga mental imensa mesmo assim, sabemos, sobre o cuidar da casa. Além disso, todos os cuidados de um bebê, por si só, somam bastante trabalho. Pensei se falava ou não. Preservei a leveza do reencontro, avaliei que não seria um bom momento para contestar o modelo. Me despedi depois das seis da tarde, sem nem cumprimentar o pai trabalhador, que ainda não havia retornado. 

Resgato essa história aqui por duas razões: primeiramente para vociferar contra a licença-paternidade padrão no Brasil, de 5 dias, que desafia qualquer um a pensar como começar a fomentar um cenário menos desequilibrado. Afinal, a legislação diz, ao garantir licença de pelo menos quatro meses apenas à mãe, que é ela a responsável pelos cuidados com os filhos. Sim, tem a amamentação. Mas não é sobre tirar das mães, é sobre ampliar aos pais. Da forma como é definido, temos uma “natural” definição de papéis que vão além dos meses de licença-maternidade. É um mercado inteiro de trabalho padrão que olha estranho para o pai quando essa figura “cisma” de reivindicar o direito de cuidar do filho num dia que seria “útil”. Se a mãe não pode, “Cadê a babá? Cadê a avó?”.
Segundo, é uma deixa para citar o ótimo artigo “Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016”, assinado pelos pesquisadores Clara Araújo, Felícia Picanço, Ignácio Cano e Alinne Veiga, no livro Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências , publicado em 2018. O texto destaca que “família, na perspectiva sociológica, é fruto de processos específicos de interação social. Consequentemente, estamos o tempo todo ‘fazendo famílias’, no sentido de que hábitos sociais são reproduzidos e transformados através das interações cotidianas do dia a dia”. Portanto, a mudança de prática no cotidiano de cada casal com filho disposto a contestar padrões que forjam essa divisão sexual do trabalho estabelecida também a partir da assimetria das licenças é importante para avançar. “O pessoal é político”, já nos ensinou a feminista americana Carol Hanisch no final dos anos 60.

A depender do ponto de onde se observa paternidade e maternidade, levando em conta raça, classe, gênero e até de religião, encontra-se dinâmicas bem diferentes da que vi na casa da amiga de infância. A “instituição família” é diversa e, como já nos mostrou o IBGE, vem passando por rearranjos radicais, com aumento expressivo de casais homoafetivos na última década, maternidade mais tardia, queda da taxa de fecundidade etc. Além disso, o debate sobre parentalidade tem ganhado espaço, principalmente em bolhas privilegiadas, influenciando também comportamentos, gerando novas referências para os homens.  

Neste domingo, Dia dos Pais, a mensagem é: todos os pais deveriam estar aptos e disponíveis para acordar de madrugada. Sem isso, melhor nem começar o debate sobre uma paternidade à luz da divisão equilibrada de tarefas. O trabalho “fora de casa” visto como mais exaustivo é apenas uma subvalorização do cuidar, historicamente assumido pelas mulheres. Fica aqui um outro trecho do artigo citado: “As instituições, em suas lógicas de conformação, decorrem de práticas instituídas, recorrentes e aceitáveis por coletividade, envolvendo dimensões e ações intencionais e não intencionais; instituições tendem a aparentar estabilidade, e tendem a ser conservadoras no sentido de inerciais”. Saiamos da inércia.
Giulliana Bianconi é jornalista, cofundadora e diretora da Gênero e Número, organização de mídia que atua na interseção entre pesquisa, jornalismo de dados e debate sobre gênero e direitos das mulheres.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário