Talvez Margaret Atwood tenha certa razão.
O mundo está ardendo em chamas. Literalmente, em alguns lugares. A mudança climática provocada pelo homem está devastando o planeta em uma escala que ainda não conseguimos prever plenamente. Lançando gritos nacionalistas e xenófobos febris, pedindo o fechamento de fronteiras, políticos de extrema-direita comandam países que até poucos anos atrás eram tidos como as maiores democracias do mundo. A dissidência e as liberdades civis estão sendo reprimidas, especialmente as das minorias. Enquanto isso, gigantes da tecnologia agem com impunidade, acumulando e concentrando poder, dados e controle sobre o consumo e o comportamento humano.
“Parece algo saído de um romance distópico”, as pessoas comentam com tanta frequência que a palavra distopia está perdendo seu poder. O fato é que a realidade está parecendo tão ou mais bizarra, cruel e arrebatadora do que qualquer distopia.
“Parece algo saído de um romance distópico”, as pessoas comentam com tanta frequência que a palavra distopia está perdendo seu poder. O fato é que a realidade está parecendo tão ou mais bizarra, cruel e arrebatadora do que qualquer distopia.
No entanto, e possivelmente justamente por isso, parece que não conseguimos nos fartar deste tipo de ficção, um gênero que está mais em alta que nunca. E hoje, uma das histórias mais duradouras e populares desse gênero voltou.
Publicado em 1985, O Conto da Aia está longe de ter sido o único romance distópico de sua época a destacar os horrores de uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero, tanto que está na companhia de obras de grandes nomes da ficção científica como Ursula K. Le Guin e Octavia Butler.
Mas suas semelhanças alarmantes com os Estados Unidos de hoje sob o comando de Donald Trump (cuja presidência está levando os leitores a mergulhar fundo na ficção distópica, tanto que as vendas de 1984 de George Orwell, por exemplo, cresceram tremendamente logo após a vitória eleitoral de Trump) significam que o romance, ambientado em um futuro em que a sexualidade das mulheres, seus direitos reprodutivos e sua própria existência são brutalmente vigiados e controlados, virou símbolo do presente misógino.
Seu poder também se deve à regra adotada por Margaret Atwood, que prometeu que “não colocaria nesse livro nada que a humanidade já não tivesse feito em algum lugar e algum tempo, ou que ainda não possuísse as ferramentas para fazer”.
Mas o fato é que detalhes sobre Os Testamentos, a muito aguardada sequência escrita por Margaret Atwood de O Conto da Aia, estão começando a vir à tona. Ele é um livro que virou a síntese do gênero distópico feminista. Ambientada 15 anos após a cena final de O Conto da Aia, a sequência é relatada através dos testamentos de três narradoras do estado teocrático de Gilead. O romance ainda não foi lançado, mas já é candidato ao Prêmio Booker de 2019.
Evidentemente, boa parte do ressurgimento recente do livro – que já vendeu mais de 8 milhões de cópias desde seu lançamento – também se deve à popular adaptação para a TV. A primeira temporada é em grande parte fiel ao livro original (que deixa o destino de Offred em suspenso no final), incluindo sua base humanizadora crucial; mas a partir dela a série entrou em queda livre, quase sendo cúmplice em submeter sua protagonista à violência sem sentido.
Com cada vez mais espectadores desnorteados abandonando a série, a pergunta que se impôs é: se a distopia é a única lente pela qual a ficção pode nos mostrar a perversidade do mundo, qual seria a cara de uma utopia feminista, por exemplo?
Mais de um século atrás, Herland – A Terra das Mulheres, da autora americana Charlotte Perkins Gilman, imaginou uma terra habitada apenas por mulheres e livre de crime, violência, guerras, fome ou conflitos. No romance, os homens foram extintos 2.000 anos atrás e desde então as mulheres se reproduzem por partogênese, ou assexualmente, dando à luz apenas bebês do sexo feminino.
Publicado inicialmente em 1916 em forma de série numa revista da qual Gilman era editora na época, Herland foi trazido de volta em 1976 como romance. A história é contada desde o ponto de vista de um sociólogo, um de três homens a partir em busca dessa sociedade exclusivamente feminina. Quando eles se encontram com as mulheres de Herland e são facilmente capturados por elas.
PENGUIN RANDOM HOUSE |
Os estudos e a educação ocupam o mais alto pedestal em Herland – A Terra das Mulheres. Mesmo quando se defrontam com os invasores homens e suas muitas tentativas de fuga ou agressão, as habitantes de Herland são pacíficas e compreensivas. Os homens são alimentados e alojados confortavelmente, e as mulheres lhes ensinam a língua e os costumes de Herland. A maternidade amorosa está no cerne do mundo imaginado por Gilman, em que o cuidado individual dos filhos por cada mãe deu lugar à criação coletiva das crianças pelas mulheres.
Marcado pela época em que foi escrito, o romance foi criticado por sua postura explicitamente antiaborto, o essencialismo de gênero e menções eugênicas sinistras à ideia de “aprimoramento” racial. Mas se destaca por uma visão radicalmente clara e uma imaginação fértil que serviriam de base para escritoras de gerações posteriores.
Por mais icônico que seja Herland – A Terra das Mulheres, dizer que o livro foi a primeira representação fictícia de uma utopia feminina seria ignorar uma obra satírica deliciosa lançada em Bengala no início do século 20. Escrito pela renomada reformista social muçulmana, ativista política e pensadora feminista Rokeya Sakhawat Hossain, conhecida popularmente como Begum Rokeya, Sultana’s Dream (O sonho de Sultana), publicado em 1905, inverte o mundo repleto de divisões de gênero que Hossain conhecia e contra o qual lutou.
Em Ladyland (Terra de Mulheres), as mulheres comandam tudo e os homens são relegados “ao seu lugar devido”: a zenana (a parte interior e enclausurada da casa reservada às mulheres na tradição indiana muçulmana e hindu).
Com os homens submetidos à purdah (a prática de impedir as mulheres de serem vistas por homens que não sejam seus parentes diretos), as mulheres ficam livres para fazer estudos científicos, praticar horticultura (Ladyland é um paraíso verdejante para os olhos e a alma) e realizar todas as tarefas com muito mais eficiência (as mulheres realmente fazem os trabalhos, em vez de ficar sentadas o dia inteiro fumando charutos).
TARA BOOKS"Sultana’s Dream" de Rokheya Sakhawat Hossain. |
Como ocorre na utopia de Gilman, em Ladyland não existem crimes, tanto que o país não precisa de juízes ou policiais. Em vez disso, seus habitantes desenvolvem tecnologias para utilizar a energia solar, tirar água da atmosfera (nesse processo também impedindo a ocorrência de tempestades e inundações) e voar em aeronaves movidas a eletricidade que desafiam a gravidade através do uso de “bolas de hidrogênio”.
A narradora da história acaba acordando e descobre que tudo não passara de um sonho, mas o texto alegre de Hossain corrigindo as desigualdades brutais que testemunhou em sua própria vida é um deleite que pode ser curtido na edição de 2015, magnificamente ilustrada, de Tara Books.
Apesar dessas primeiras incursões, a exploração mais ampla de utopias feministas só aconteceria na década de 1970, durante a segunda onda do movimento feminista, quando essas utopias proliferaram principalmente nos Estados Unidos. “As utopias feministas nasceram da sede de algo que não tínhamos, num momento em que uma transformação era vista como algo não apenas possível, mas até provável”, escreveu em 2016 a autora Marge Piercy, 40 anos após o lançamento de seu livro Woman on the Edge of Time (Mulher à beira do tempo, em tradução livre).
PENGUIN RANDOM HOUSEWoman on the Edge of Time (Mulher à beira do tempo, em tradução livre) de Marge Piercy. |
No romance poderoso de Piercy, uma mulher internada à força em um hospício consegue comunicar-se com uma figura andrógina do ano 2137. Esse mundo do futuro representa o fruto das metas dos movimentos sociais radicais da década de 1970 – uma sociedade justa em que as divisões de raça, classe social e, especialmente, gênero, foram eliminadas, dando lugar em vez disso às liberdades pessoais e a modos de vida ecologicamente corretos.
Os conflitos são resolvidos de modo pacífico, pronomes neutros de gênero (“per”) são usados para todos os seres humanos, e os bebês se desenvolvem fora do útero e são criados por três pessoas. Pouco a pouco, porém, o romance interessantíssimo de Piercy revela que esse não é o único futuro possível, e a protagonista luta para fazer a humanidade seguir esse caminho e não o de uma distopia segregada e hipercapitalista.
As possibilidades de futuros alternativos são levadas um pouco mais longe ainda no imaginativo The Female Man, de Joanna Russ, publicado em 1975. Não inteiramente utópico, o romance mesmo assim nos proporciona um vislumbre de uma utopia. Quatro mulheres de mundos paralelos veem suas vidas se entrecruzar quando comparam as diferenças nelas, que as espantam. Joanna vem de um mundo semelhante à Terra da década de 1970.
Ela conhece Jeannine, em cujo mundo a Grande Depressão nunca chegou a terminar, Jael, de um mundo distópico onde homens e mulheres se enfrentam numa guerra que se arrasta há décadas, e Janet, que vive no mundo utópico futurista de Whileaway. Este guarda semelhanças com o universo de Herland, sendo habitado exclusivamente por mulheres – todos os homens foram exterminados 800 anos atrás por uma peste.
GATEWAY 'The Female Man' by Joanna Russ |
Essa utopia é imbuída da visão do movimento ambientalista; apesar de terem conquistado grandes avanços tecnológicos, as mulheres vivem numa sociedade agrária. Formando relacionamentos homoafetivos, elas se reproduzem por partogênese. Tendo sido alteradas para sempre pela interação que viveram, as quatro mulheres do romance de Russ se despedem novamente para cada uma seguir seu caminho, agora dotadas de uma compreensão radicalmente diferente da existência feminina.
Um tema ecofeminista e lésbico também marca o romance de ficção especulativa The Wanderground (O andar na terra, em tradução livre), de Sally Miller Gearhart. Através de narrativas curtas, o livro conta a história das “mulheres dos morros” numa versão futura dos Estados Unidos, onde elas vivem em comunhão com a natureza e umas com as outras, até que o mundo dos homens ameaça dominá-las.
SPINSTERS INK"The Wanderground" (O andar na terra, em tradução livre) de Sally Miller Gearhart. |
Unidas na visualização de um mundo fortemente influenciado pela política de seus tempos, as utopias feministas dos anos 1970 perderam espaço quando o mundo idealista, que em certo momento parecia estar ao alcance das pessoas, se distanciou novamente no horizonte. Marge Piercy explicou: “Quando nossa energia política é gasta na defesa dos direitos e quando projetos que conquistamos e criamos agora estão ameaçados, sobra muito menos energia para imaginar sociedades futuras em que gostaríamos de viver”.
O que essas utopias nos deixaram é toda uma série de explorações fictícias inteligentes, iluminadas, mas em última análise distópicas. Mas para Margaret Atwood as duas coisas não são tão diferentes assim. “Cada distopia contém uma pequena utopia, e vice-versa”, ela fala, preferindo o termo “ustopia” para descrever seu romance mais famoso. Mas que forma esse imaginar pode assumir em nosso momento atual e no século 21 cada vez mais inóspito – um divisor de águas em nossas visões do gênero e do poder?
PENGUIN UK |
No romance especulativo The Power (O Poder, em tradução livre), de 2017, escrito por Naomi Alderman, mulheres jovens desenvolvem a capacidade de dar choques elétricos que podem ferir, torturar e até matar homens; com isso, elas de repente colocam de ponta-cabeça a hierarquia do poder baseado no gênero.
É uma inversão espantosa que abre o caminho para uma potencial utopia empática e não-violenta moldada por mulheres, como o que imaginaram aquelas escritoras de décadas atrás. Mas em vez disso o romance assustador de Alderman envereda pela sede de vingança e a atração inexorável do poder estrutural.
“Não é preciso considerar todos os homens uns monstros para saber que alguns homens fazem mau uso de sua força”, disse Alderman em entrevista. “Por que a mesma coisa não se aplicaria às mulheres?”
Talvez Margaret Atwood tenha certa razão.
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