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domingo, 29 de setembro de 2019

40 mulheres sobrevivem à maratona mais dura da história

Helalia Johannes, da Namíbia, terceira classificada na maratona, após cruzar a linha de chegada.
Helalia Johannes, da Namíbia, terceira classificada na maratona, após cruzar a linha de chegada.ALI HAIDER (EFE)
CARLOS ARRIBAS                 Doha - 28 SEP 2019                        El País

Nunca tinha havido tantas desistências. Houve dezenas de atendimentos médicos. A queniana Chepngetich vence uma prova disputada à meia-noite com 30 graus e quase 80% de umidade, no limite do suportável


Um jovem diria que aquilo parecia o final de uma festa regada a álcool que saiu do controle. Havia garrafas de água vazias espalhadas pelo chão (a bebedeira teria sido sem álcool, portanto) e sacos de gelo derretendo. E em cadeiras de plástico, com o olhar perdido e os ombros caídos, desorientadas, algumas mulheres suadas e caladas, rodeadas de assistentes médicos medindo sua temperatura e cobrindo-as com sacos de gelo ainda inteiros. Mais ao fundo, um trânsito constante de grandes carrinhos de golfe transformados em ambulâncias silenciosas que transportavam, com as janelas fechadas, algumas jovens à beira do desmaio. Outras eram levadas em cadeiras de rodas.
Uma pessoa mais velha pensaria na cena final de A Noite dos Desesperados (ou no livro homônimo de Horace McCoy, que o inspirou), filme que conta a miséria das maratonas de dança que, nos anos da Grande Depressão norte-americana, atraíam pobres coitados que queriam ganhar alguns dólares e acabavam como as jovens que, de short, camiseta furada e boné, colocam gelo, meio com pudor, no peito e depois na cabeça, correndo como autômatas, porque o cérebro ordena que suas pernas se movam e avancem, que dancem, embora seus movimentos sejam de zumbis. Algumas nem correm; andam em ziguezague.
Poderia ser isso, ainda mais pelo fato de que tudo tenha ocorrido quase às três da manhã num cenário de filme idealizado por um louco — como um grande estacionamento com enormes torres de iluminação e vários telões gigantes, do tamanho dos que vemos nos estádios, ante uma tribuna de honra como a de um hipódromo, com centenas de poltronas de couro vazias, salvo as ocupadas pelo emir e alguns de seus xeques abanando-se com leques, e pelo presidente da Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF), Sebastian Coe  —, com 40 graus de sensação térmica no asfalto (30 graus de temperatura, mais 75% de umidade). Poderia ser isso, mas não. Era o final da maratona do Campeonato Mundial de Atletismo, era o Corniche, o calçadão à beira-mar de Doha (Qatar), onde as torres grandes são hotéis chamados Sheraton. Assim foi disputado o esporte, nessas condições contrárias à saúde, e assim foi exibido o valor da competição, onde não havia nenhum espectador que não fosse dominado por certa tristeza reforçada pela raiva ao ver o sacrifício, quase humilhação, imposto a algumas das melhores atletas do mundo. Foram 42.195 metros. Seis voltas num circuito de sete quilômetros.
A italiana Giovanna Epis (no chão) recebe atenção médica durante a prova.
A italiana Giovanna Epis (no chão) recebe atenção médica durante a prova.ALI HAIDER (EFE)
“Isso não é uma maratona, não é esporte. É um descontrole”, diz um renomado técnico, que sofre observando o patético espetáculo.
“Teria sido pior para a reputação da IAAF suspendê-la que disputá-la nessas condições?”, pergunta-se em voz alta um membro da equipe de saúde (16 médicos e mais de 40 assistentes) mobilizada. “A IAAF joga com os números. Decidiu de manhã que as condições previstas entravam razoavelmente dentro dos limites considerados seguros, entre 28 e 30,9 graus de sensação térmica, combinando temperatura e umidade, mas não dá uma cifra oficial real, que certamente será superior."
Outros técnicos (99% dos espectadores eram técnicos dos diferentes países) se perguntavam por que, sabendo como é Doha, a IAAF não preferiu que as corridas de longa distância fossem disputadas em outro país. Venceu, com um tempo de 2h32m43s (a maratona mais lenta da história dos Campeonatos Mundiais de Atletismo, dois segundos a mais que a duríssima maratona dos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992, com a subida da colina de Montjuïc), a queniana Ruth Chepngetich, a atleta que possui o terceiro melhor tempo da história, 2h17m8s, obtido em Dubai em janeiro passado. Também subiram ao pódio Rose Chelimo, do Bahrein, e Helalia Johannes, da Namíbia. A espanhola Marta Galimany terminou em 16º lugar (2h47m45s), uma colocação magnífica e inesperada, a única alegria que lhe deu uma noite alucinada, que do contrário teria querido esquecer. A disputa começou com 68 atletas e terminou com 40. Nunca tinha havido tantas desistências. Duas competidoras acabaram no hospital. Dezenas foram assistidas na tenda médica logo após cruzar a linha de chegada. A 40ª classificada, a costarriquenha Gabriela Traña, chegou 47 minutos depois da vencedora.
Às 3h30 da madrugada, a atleta bielorrussa Volha Mazuronak, quinta colocada, resumiu em várias frases lapidares, advindas do seu sofrimento, o que a maioria pensava: “A umidade mata. Você não tem ar para respirar. Pensei que não terminaria. Foi uma falta de respeito com as esportistas. Meia dúzia de dirigentes se reuniram e decidiram trazer até aqui o campeonato, mas eles estavam sentados com ar condicionado, e certamente agora já estão dormindo.”
Os responsáveis pela federação espanhola se sentem orgulhosos porque, durante a noite lamentável, demonstrou-se que os países que haviam trabalhado com mais seriedade na aclimatação tinham sobrevivido, como a Espanha, e os técnicos espanhóis de marcha, a outra disciplina que desfilará pelo Corniche à meia-noite, tentam não pensar em voz alta sobre os medos que os afligem em relação aos próximos dias. Hoje, sábado, será a vez da marcha de 50 quilômetros, nas versões masculina e feminina; amanhã, domingo, os 20 quilômetros femininos; na sexta-feira, os 20 quilômetros masculinos; e no próximo sábado, a maratona de homens.

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